Capítulo 48 | Réquiem para os Inocentes (2)
A exaustão era um abismo, e Hermes sentia-se despencando. A areia em suas veias agora era fogo, e os lamentos dos mortos em sua mente haviam se tornado um rugido que ameaçava consumir sua própria identidade.
Ele olhou para a aberração, que se regenerava lentamente, e para Kyros, escondido nas sombras, prolongando a agonia. Ele não tinha mais tempo.
“Preciso acabar com isso. Agora.”, a decisão foi fria, final.
Ele canalizou tudo o que restava, flexionando um dos joelhos atrás como se fosse saltar.
Toda a dor, toda a fúria, toda a energia profana que a moeda lhe oferecia. O brilho dourado em seus olhos se tornou ofuscante, e as veias negras em sua pele borbulharam. Ele se tornou um cometa de aura verde e obscura, cruzando a câmara em uma investida que não pertencia ao mundo mortal. A aberração ergueu um de seus braços à frente, e ele surgiu como uma parede que tentava parar o avanço de Hermes. Para nada.
O impacto foi colossal. O som foi o de uma montanha se partindo. O braço da criatura foi atravessado no meio como uma folha de papel.
O Hecatônquiro de Eros foi arremessado para trás com a força do golpe. A massa disforme de corpos infantes voou pela câmara, chocando-se violentamente contra um dos pilares de mármore, que se estilhaçou, desabando sobre a criatura.
O monstro caiu no chão com um baque surdo que fez a sala inteira tremer, a poucos metros de um Magno ainda catatônico.
O esforço foi demais para o corpo mortal de Hermes. Seus joelhos vacilaram. A luz dourada em seus olhos piscou e diminuiu, tornando-se apenas uma brasa fraca.
Ele cravou a ponta de sua espada quebrada no chão de mármore para se manter de pé, o corpo tremendo violentamente, a respiração ofegante, cada inspiração uma facada de dor.
Escondido nas sombras, Kyros viu sua criação derrotada e seu inimigo à beira do colapso. O pânico e a fúria tomaram conta dele.
— LEVANTE-SE! — ele gritou, erguendo para o ar a Moeda de Eros. — LEVANTE-SE E ESMAGUE-O!
A aberração, mutilada e quebrada, obedeceu. Ignorando um Hermes exausto, ela se virou para o alvo mais fácil, o mais imóvel: Magno. Com um gemido que era um coro de dor, a criatura ergueu seu braço, o único que lhe restava, pronta para esmagar o homem quebrado no chão.
— Magno- Mexa-se! — Hermes tentou gritar, incapaz de se mover, a voz saindo apenas um pouco mais alto que um sussurro.
Magno não reagiu. Seus olhos vazios encaravam o punho de carne que descia para obliterá-lo.
Não havia mais tempo.
Com a última gota de poder que lhe restava, com um grito que era mais dor do que fúria, ele se moveu. O mundo se tornou um borrão dourado e negro.

Um único som, o de carne e osso sendo cortados, ecoou pela câmara. O braço da aberração, decepado na altura do ombro, voou pelo ar, caindo inofensivamente ao lado de Magno em um estrondo alarmante.
Atrás dos dois, Hermes segurava sua espada apontada para cima, no ponto final do arco ascendente de seu golpe, seu corpo finalmente cedendo, colapsou no chão de mármore, a luz dourada em seus olhos se apagando em escuridão.
A aberração, agora mutilada e sem seu membro para se apoiar, desabou no chão, contorcendo-se. Ela se arrastou, pateticamente, até parar ao lado de Magno. O ladrão, ainda de joelhos, não se moveu. Ele apenas encarou a monstruosidade com um olhar perdido.
Então, do topo do corpo da criatura, uma cabeça disforme se ergueu, o movimento lento e doloroso. O cabelo escuro estava emaranhado e manchado, mas uma bandana vermelha, suja de sangue e fuligem, ainda estava presa a ele. Os olhos se abriram, revelando órbitas vazias de carne derretida, rasgada. Aflição, terror, medo, dor. A expressão dizia mais que qualquer palavra.
O olhar vazio e sem brilho de Magno vacilou quando viu a bandana. Ele se mexeu como se acordasse parcialmente de um transe.
— Neo… — Ele falou, cada letra escapando lentamente em uma compreensão gradual e dolorosa. — Não, não, não, não- Me mate, me mate, me mate, eu quero morrer!
Magno se desesperou. Ele se jogou no chão desolado, sem forças para encarar o que um dia foi o pequeno Neo. Seus dedos subiram compulsivamente ao rosto e se forçaram contra a pele da face, rasgando-a em sua própria aflição.
A boca do menino se mexeu, parecia costurada pela pele que tinha um aspecto derretido.
— Chefe… Pare… — o sussurro era fraco, mas cortou o coração de Magno como nenhuma lâmina jamais poderia. Suas mãos congelaram, parando de ferí-lo. — Viva… Por… favor…
Magno ouviu aquilo e ergueu os olhos mais uma vez, cheios de lágrimas. O pequeno garoto o visava, mesmo sem os olhos. Um fio de sangue escorreu das órbitas e a boca se retorceu em um choro infantil.

As vozes de todas as crianças se uniram nesse lamento. Choraram, soluçaram, gemeram. A sala se preencheu com a tristeza das pequenas almas condenadas apertando os corações de todos que estavam ali. Ou pelo menos, de quase todos…
Kyros, vendo sua obra-prima derrotada e seu inimigo principal à beira da morte, emergiu das sombras, a fúria desfigurando seu rosto nobre.
— LEVANTE-SE! — ele gritou para a aberração se aproximando a passos apressados. — INÚTIL! ATÉ PARA MORRER VOCÊS SÃO INCOMPETENTES!
Ele chutou um dos membros disformes da criatura caída. — Órfãos malditos! Deveriam ser gratos! Eu lhes dei um propósito! Uma chance de fazer parte de algo grandioso, de serem amados! E é assim que me retribuem?
O pedido de Neo e a crueldade de Kyros finalmente quebraram o que restava de Magno. Seu choro cessou por um momento. O sangue escorria dos sulcos que suas unhas abriram no rosto. Seu cabelo bagunçado caía em mechas sobre os olhos.
O mundo ao redor de Magno desapareceu. Havia apenas a voz de Neo em sua mente e o rosto sorridente de Kyros em sua visão.
Lentamente, como um homem se erguendo do próprio túmulo, ele se levantou. Pegou a espada quebrada que Hermes deixara cair, a lâmina irregular um reflexo de sua própria alma partida. Com um olhar de ódio e sofrimento tão profundo que parecia sugar toda a luz ao seu redor, ele caminhou na direção de Kyros.
O Arconte, vendo a morte em pessoa se aproximando, tentou recuar. Ele tropeçou, o medo finalmente destruindo sua fachada de controle. — Fique longe de mim, seu verme! Eu sou seu soberano! Seu Deus!
Em desespero, ele ergueu a moeda na direção de Magno com fervor. Magno não reagiu. Ele o alcançou. A espada quebrada e com um fio já cego se moveu numa trajetória selvagem, sem técnica, e decepou os três dedos com os quais Kyros segurava as moedas.
Um corte nada limpo. Bruto, irregular, furioso.
O Arconte gritou de forma patética e caiu de costas no chão erguendo a outra mão para tentar conter o ímpeto de Magno.
O ladrão rangeu os dentes e sua boca se curvou para baixo numa expressão de raiva fundamental. O cabo da espada girou em sua mão quando ele mudou a empunhadura de corte para uma de perfuração.
Sua mão desceu violentamente, cravando-se na mão de Kyros com fulgor e atravessando-a até atingir o rosto do nobre. A retribuição não foi rápida. Foi um ritual. Foi brutal.
— PARE! GAH- PARE! POR FAVOR! — A voz patética e desesperada do nobre soou enquanto ele tentava sobreviver ao frenesi.
Magno apunhalou o rosto de Kyros repetidamente com a ponta da lâmina partida, cada golpe um eco do choro de uma criança perdida, cada perfuração uma memória de um sorriso que ele nunca mais veria. Com o último grito engasgado do Arconte, um som de impacto pesado ecoou na câmara: o Hecatônquiro, sua força vital finalmente extinta, desabou em uma massa inerte de carne e tristeza.
O cessar do coro das lamentações fez Magno parar.
Ele caiu de joelhos ao lado do corpo de Kyros, o choro o dominando novamente, um som quebrado em uma sala cheia de silêncio e morte. Teseu, ainda no chão, com os dedos quebrados e o corpo dolorido, ergueu um dos braços sobre a testa tapando os olhos e chorou em silêncio. E Hermes, sua consciência por um fio, jazia em uma poça de seu próprio sangue, à beira da morte.
Foi então que a luz das tochas vacilou.
Atrás de um dos pilares estilhaçados, a sombra na parede parou de dançar. Ela parou de se comportar como uma sombra. Em vez de ser projetada, ela parecia se aprofundar, tornando-se um remendo de escuridão tão absoluto que parecia um buraco na própria realidade, um véu de negrume que ativamente engolia a luz da tocha mais próxima, drenando sua chama.
Daquela escuridão antinatural, uma figura começou a emergir. Não com um passo, mas como uma imagem se formando a partir da fumaça. Primeiro, a silhueta de uma mulher, alta e elegante. Então, a cor, o tecido de uma túnica escura que não refletia a luz do fogo. Seus pés tocaram o mármore ensanguentado sem fazer um único som.
Ela caminhou calmamente pela carnificina, sua serenidade uma blasfêmia em meio à devastação. Passou pelo corpo da aberração sem um olhar. Contornou o choro de Magno como se ele fosse uma pedra no caminho. Sua atenção estava focada em um único ponto.
Ela se ajoelhou ao lado do cadáver de Kyros. Com dedos delgados e pálidos, ela não tocou no corpo, mas alcançou o chão ao lado dele, onde a Moeda de Eros pulsava com um brilho carmesim fraco, como as brasas de um coração moribundo.
Ela a pegou. O brilho da moeda se intensificou em sua mão, lançando uma luz vermelha e doentia em seu rosto, que até então permanecera nas sombras.
Então, lentamente, ela se virou. E a luz das tochas finalmente revelou suas feições. O sorriso era gentil, a beleza, atemporal.

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