Índice de Capítulo

    Os portões de Pella se fecharam atrás deles com um rangido cansado, o som pesado da madeira se assentando na pedra selando-os dentro da cidade. O barulho da rua principal, que eles esperavam, não existia. Em seu lugar, havia um silêncio estranho e opressivo, quebrado apenas pelo eco de seus próprios passos nos paralelepípedos e pelo assobio do vento que serpenteava pelas vielas estreitas.

    À medida que o trio avançava, uma quietude os seguia como uma praga. Conversas que flutuavam das portas e janelas murchavam e morriam no exato instante em que eles eram avistados. 

    Um grupo de homens que compartilhava um odre de vinho perto de um poço cessou a conversa, seus olhos seguindo Teseu até que ele passasse, para só então retomarem em sussurros urgentes. 

    Duas mulheres, que antes gesticulavam animadamente sobre um cesto de peixes, calaram-se e viraram as costas, fingindo arrumar a mercadoria.

    Teseu sentia o peso daqueles olhares em sua nuca, na forma como sua couraça de bronze parecia brilhar de forma acusadora sob o sol da tarde. 

    Incomodado, ele tentou uma abordagem direta. Viu um comerciante com um rosto cansado guardando algumas peças de cerâmica em caixotes.

    — Com licença, bom homem. Meu nome é Teseu. Estamos apenas de passagem e procuramos um lugar para pernoitar. Sabe dizer se há uma estalagem por perto?

    O comerciante não ergueu o olhar. Seus movimentos se tornaram mais rápidos, quase frenéticos. Ele encaixotou a última peça, empurrou o caixote para dentro de sua loja com o pé e fechou a porta de madeira, o som do ferrolho deslizando soou alto na rua silenciosa.

    Teseu ficou parado, a pergunta morrendo no ar. “O que há de errado com eles?”, ele murmurou, frustrado.

    — Talvez minha aparência seja menos… marcial — disse Plutarco, ajeitando a bolsa de papiros no ombro. — Deixe-me tentar.

    O escriba, com sua aparência inofensiva e acadêmica, aproximou-se de um homem que remendava uma rede de pesca, sentado em um banco de pedra.

    — Bom homem, perdoe a interrupção. Somos apenas viajantes em busca de uma estalagem. Poderia nos indicar o caminho?

    O pescador olhou para Plutarco, vendo apenas um erudito educado, e sua expressão tensa se suavizou por um instante. Ele abriu a boca para responder.

    — A estalagem… fica… — seus olhos, no entanto, desviaram-se por cima do ombro de Plutarco e pousaram em Teseu, que esperava a alguns passos de distância. 

    A visão da couraça de bronze, do cabo da xiphos e do porte físico do jovem guerreiro fez o homem empalidecer. Ele parou de falar abruptamente, soltou um suspiro assustado, juntou suas redes e se levantou, afastando-se apressadamente sem dizer mais uma palavra.

    A frustração de Teseu se transformou em irritação. Era ele. Era a ele que temiam. Como um último recurso, ele avistou uma senhora idosa que varria a entrada de sua casa, e se aproximou, determinado a obter uma resposta.

    — Com licença, senhora. Não queremos causar problemas. Apenas…

    A mulher se sobressaltou, quase derrubando a vassoura. Seus olhos se arregalaram ao ver a couraça de Teseu, e ela recuou um passo, apertando um amuleto de bronze que pendia em seu pescoço.

    — Pe-pelos Deuses… — ela murmurou, a voz trêmula. — Deixe-nos em paz!

    Antes que ele pudesse insistir, ela se virou e bateu a porta com uma finalidade que o deixou parado, a mão ainda no ar.

    — Povo acolhedor — Plutarco comentou em voz baixa, sem desviar o olhar de sua tabuleta onde já registrava a recepção.

    Teseu franziu a testa. “Paz?”. 

    A frustração do rapaz se transformava em irritação. Era ele. Era a ele que temiam. Mas por quê? Por que se não o conheciam?

    Ele passou a mão pelo cabelo curto, o olhar varrendo as ruas silenciosas em busca de uma única face que não se desviasse da sua.

    Foi quando uma voz pequena e clara cortou a quietude.

    — Estão perdidos, senhores?

    Ambos se viraram. Parada na entrada de uma viela estreita, uma garotinha de talvez sete anos os observava com uma curiosidade destemida em seus olhos grandes e escuros. Segurava um pequeno cavalo de madeira, gasto pelo uso, e tinha uma mancha de poeira na bochecha. Ela era um ponto de pura inocência em meio à paranoia da cidade.

    O rosto de Teseu se suavizou instantaneamente. Um sorriso cansado, mas genuíno, tocou seus lábios. Ele se ajoelhou para ficar na altura dela, tentando parecer o menos ameaçador possível.

    — Um pouco — ele admitiu, a voz mais gentil. — Estamos procurando um lugar para ficar, mas parece que ninguém em Pella gosta muito de forasteiros.

    — Minha mãe diz que forasteiros trazem problemas — a menina respondeu com a lógica simples de uma criança, dando um passo hesitante para fora da viela. — Mas vocês não parecem maus. O senhor tem olhos tristes.

    Plutarco, que observava a cena com um leve sorriso, preparou sua tabuleta, fascinado pela interação. Teseu estava prestes a responder, encantado pela sinceridade da pequena, quando uma sombra pesada caiu sobre eles.

    — O que você está fazendo, menina? Volte para dentro! AGORA!

    Um rosnado grave irrompeu de uma das casas. 

    Com o susto do grito, a garota se apressou e recuou com curtos, porém ligeiros passos. O silêncio que se seguiu foi quebrado por uma marcha pesada que vinha por trás da dupla. Eles se viraram.

    Eram quatro homens, robustos e fortes, com as marcas do trabalho duro em seus corpos. Um deles, uma montanha de músculos com os braços e o rosto sujos de fuligem, segurava um pesado martelo de ferreiro. Outro, com a pele curtida pelo sol e as mãos grossas como raízes de oliveira, segurava uma enxada como se fosse um tridente.

    — O que um homem como você, com aço e bronze, quer com os nossos velhos? — rosnou o ferreiro, dando um passo à frente, o calor da forja ainda emanando dele. — Não tem vergonha? Chega em nossa cidade, desfilando armas, assustando os que já vivem com medo?

    Plutarco, calmamente, colocou uma mão no ombro de Teseu, um aviso sussurrado.

    — Cuidado, Teseu. Tem algo de estranho nesta cidade.

    Teseu ergueu as mãos em um gesto de paz.

    — Intimidando? Nós não fizemos nada. Apenas procuramos um lugar para passar a noite e talvez um pouco de comida e bebida.

    — Dormir, comida, bebida? E de onde você vem, estranho? — insistiu o fazendeiro, apertando o cabo de sua ferramenta.

    Teseu, pego de surpresa pela abordagem direta, respondeu com uma sinceridade que soou como evasão.

    — Ah, uhm, eu não tenho certeza. Do norte, talvez. Me perdoem, não tenho um mapa.

    A resposta vaga fez com que os homens trocassem olhares ainda mais suspeitos. A interação deles começou a atrair atenção. Portas se entreabriram. Mais rostos apareceram nas janelas. Uma pequena multidão, silenciosa e ameaçadora, começou a se formar ao redor deles.

    Foi então que um homem mais velho e de aparência histérica abriu caminho pela multidão, apontando com o dedo trêmulo para o peito de Teseu.

    — Esta armadura! É um dos malditos filhos de Alexandre! — sua voz era um grito agudo de pânico que rasgou o silêncio da cidade. — Ele é o culpado pelos nossos problemas! Pelos animais mortos!

    As palavras do velho foram como uma faísca em um barril de pólvora. O ferreiro, cujo rosto agora estava vermelho de raiva, deu um passo à frente, fechando ainda mais a distância.

    — Já não bastou o ataque de meses atrás? Nós não os pagamos o suficiente? Acham que podem brincar com o nosso povo assim?

    Teseu ficou mudo, completamente perdido. “Filhos de Alexandre? Pagamos?”. 

    Ele não tinha a menor ideia do que estavam falando, e a hostilidade crescente o deixava sem saber como se defender, ansioso pela multidão que se formava ao redor deles com olhares julgadores. Ele pensou em dizer que não era quem eles pensavam, que era apenas um viajante. 

    Deu um passo à frente com a confiança de que poderia se explicar. A frustração e a necessidade de impor alguma ordem à situação o traíram.

    — Tenham calma. Vocês têm alguma ideia de quem eu sou? — Ele perguntou, a mão apontando para o próprio peito.

     Um desastre completo.

    Plutarco suspirou, um som de pura resignação. Ele se inclinou para o lado, como se quisesse se distanciar do desastre iminente, e começou a fazer uma anotação em sua tabuleta de cera.

    — Você tem muito o que aprender sobre comunicação clara, garoto — ele murmurou para si mesmo.

    Teseu não entendeu o que o escriba falou, mas entendeu perfeitamente o rosnado do ferreiro.

    — Acha mesmo que pode nos intimidar?! — O rosto do homem se desfez em raiva. — Você verá!

    Ele gritou e avançou.

    O grito do ferreiro foi o trovão que anunciou a tempestade. Ele avançou, o martelo pesado erguido não para forjar metal, mas para esmagar ossos. A multidão, antes hesitante, agora era uma onda de fúria, movida pelo grito de seu líder improvisado.

    Teseu recuou, não por medo, mas por instinto. O mundo se tornou um borrão de rostos raivosos e armas improvisadas. A enxada roçou o ar em um arco horizontal; o herói girou sobre os calcanhares e a madeira passou a centímetros de seu rosto. Um punho veio em sua direção e ele se abaixou, permitindo que o golpe encontrasse o ar acima da própria cabeça.

    Ele não contra-atacava. Seu corpo, aprimorado por um ano de treinamento solitário, movia-se com uma graça fluida e mortal que contrastava com a fúria desajeitada de seus agressores. Ele não via inimigos, via homens assustados. E um herói não feria os amedrontados e confusos.

    Em uma de suas esquivas, ele desviou de um golpe mais amplo do ferreiro. O impulso do ataque, não encontrando resistência, fez o homem corpulento perder o equilíbrio e tropeçar, caindo pesadamente no chão. 

    Vendo seu principal agressor desamparado, Teseu parou. A luta ao seu redor hesitou por um instante, os aldeões surpresos pela queda de seu campeão.

    Ele se aproximou do homem caído e, ignorando a espada em sua própria cintura, estendeu a mão desarmada, a palma aberta e suja de poeira.

    — Acalmem-se! — sua voz soou, clara e sincera, acima dos murmúrios da multidão. — Eu não sou seu inimigo! Eu não quero fazer mal a ninguém! Posso ajudá-los!

    O ferreiro olhou para a mão estendida, o rosto uma máscara de medo e confusão. Por um segundo, pareceu que a razão venceria. Então, seus olhos se desviaram para uma pequena faca de cortar couro em seu cinto. Em um movimento rápido e traiçoeiro, ele a sacou e a cravou com força na palma da mão que lhe era oferecida.

    — AARRGH!

    O urro de Teseu foi de pura dor e surpresa. Ele pulou para trás, olhando incrédulo para a faca cravada em sua mão, o sangue escuro escorrendo por seus dedos e pingando nos paralelepípedos. O ato de traição quebrou a última barreira de civilidade. A multidão, agora uma turba enfurecida, rosnou em uníssono.

    — Matem-no! — gritou alguém.

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