Índice de Capítulo

    O Bosque dos Anseios não era mais o mesmo. Ou talvez, Hermes não fosse. A floresta, que antes o havia confrontado com armadilhas e desejos crus, agora parecia apenas triste. O ar era pesado, não com magia, mas com o peso de memórias, e a névoa que se agarrava ao chão parecia um véu de luto.

    Ele caminhava, e cada passo era um esforço. Seu corpo, remendado às pressas, protestava com uma dor surda, mas era um incômodo distante, abafado pela agonia muito maior que residia em sua alma. 

    Seus olhos, antes focados e furiosos, agora estavam abatidos, perdidos em um horizonte que só ele podia ver. Estava lutando contra os fantasmas que a névoa da floresta conjurava em sua própria mente partida.

    Os sussurros de um tempo que não existira apareceram. Sonhos, anseios.

    Ao seu lado, surgiu Teseu, o menino fraco da mina, com seus cabelos negros e olhar simpático e apaquentador, sorrindo. Ele não tossia. Parecia saudável, em paz. “Fique um pouco”, a ilusão disse, a voz cheia de uma saúde que nunca conhecera. “Descanse conosco.”

    Hermes apertou os punhos e continuou a andar, o coração uma pedra em seu peito.

    Então, em uma clareira, viu Ágatha, com o sorriso gentil que ele se lembrava, estendendo-lhe um pedaço de pão. Ao seu lado, Magno, Neo e os outros meninos de Therma riam, jogando um jogo com pedrinhas. O som da risada deles, especialmente a de Neo, foi como uma faca em suas entranhas. “Vamos contar umas histórias juntos, chefe”, disse a ilusão de Magno, o sorriso de raposa de volta em seu rosto. “Fique. A noite ainda é jovem.”

    As lágrimas começaram a escorrer silenciosamente pelo rosto de Hermes. Ele não as enxugou. Apenas continuou seu caminho, a mandíbula cerrada com tanta força que doía.

    “Parem”, ele suplicou em sua mente, a voz um grito silencioso. “Por favor, parem com isso.”

    A floresta, cruel em sua misericórdia, conjurou mais dois. Teseu, o novo, o antigo Agouri, estava parado à sua frente, o rosto não mais marcado pela dor, mas com um aceno de despedida triste e resoluto. 

    O que viu de canto de olho fez Hermes fechar os olhos.

    Ao lado, sentado sob a sombra de um carvalho, com uma lira dourada nos joelhos, estava Apolo. Ele não tocava. Apenas o observava, o rosto uma máscara de uma tristeza que parecia antiga como o próprio tempo. O olhar de seu irmão era a única acusação que ele não podia suportar.

    Hermes cerrou os olhos com força como se isso fosse impedí-lo de ver o que sua mente jamais esqueceria, os soluços agora sacudindo seu corpo. Ele tropeçou, quase caindo, mas se forçou a continuar, cego, guiado apenas pela necessidade de fugir de seu próprio coração.

    Ele atravessou uma última cortina de trepadeiras e a luz o atingiu, banindo as sombras. As ilusões se foram. O som do choro silencioso foi substituído pelo canto suave de um riacho.

    Ele estava na clareira. A casa de Circe estava à sua frente, a chaminé fria, as flores em seus canteiros um pouco murchas. Parecia um lugar abandonado, um palco vazio após o fim de uma peça trágica. 

    Hermes parou, o corpo tremendo com o rescaldo de sua provação, e encarou o casebre. O lugar onde a esperança de uma cura havia se tornado a certeza de uma traição. Ele ficou ali por um longo momento, reunindo os fragmentos de sua alma partida.

    …………

    Abandonando a clareira silenciosa por uma floresta escura e primordial, em algum lugar distante, a luz do sol lutava para perfurar a copa densa das árvores. O ar pesado, antigo, cheirava a terra úmida e a folhas em decomposição.

    Um homem de cabelos longos e roupas rasgadas movia-se com dificuldade entre os troncos. Seu rosto, forte e tenso, era uma máscara de dor contida. Uma de suas mãos pressionava com força o ombro oposto, de onde o sangue escorria profusamente, manchando os trapos de um vermelho escuro. Ele estava coberto de ferimentos, seu corpo um testamento de uma batalha brutal e recente.

    Ele parou por um instante, encostando-se em um carvalho antigo para recuperar o fôlego, o peito subindo e descendo com esforço. 

    Seus olhos varreram a mata ao redor, não como os de um homem perdido, mas como os de um caçador, ou talvez, de uma presa que se recusa a cair. Com uma determinação sombria que endurecia suas feições, ele se afastou da árvore e continuou sua jornada, desaparecendo nas profundezas da floresta, uma sombra ferida em um mundo selvagem.

    …………

    No topo de uma colina verdejante, um garoto com armadura de bronze caminha lentamente, a passos pesados, o vento suave agitando seus cabelos escuros. Ele para, chegando em um ponto alto da colina e se vira para trás, para o caminho de onde veio. A espada que parecia um pouco grande demais para ele se agitou em sua cintura.

    Perto do horizonte, aninhada contra o mar, a cidade de Therma era uma silhueta escura contra o sol poente, uma cicatriz no mundo que ele estava deixando para trás. A distância a tornava pequena, quase insignificante. 

    Ele a observou por um momento, o rosto uma mistura de tristeza pelas memórias que deixava naquela terra manchada de sangue. Virou-se, de costas para o pôr do sol e para o fantasma de seu passado. Jogou um pequeno saco de suprimentos sobre o ombro, o peso leve, mas o significado, imenso. E então, começou a caminhar em direção ao leste, para o futuro desconhecido que havia escolhido, um herói em busca de seu próprio caminho, sob um céu que prometia o fim de um dia e o início de outro.

    …………

    O porto de Therma estava se aquietando. O sol, uma esfera de fogo laranja, começava a tocar a linha do horizonte, pintando o céu e o mar com tons de roxo e dourado. Os gritos dos mercadores e o barulho dos estivadores davam lugar ao som suave das ondas batendo contra o cais de madeira e ao choro distante das gaivotas. O caos da cidade, como o dos corações de seus novos salvadores, finalmente começava a se acalmar.

    Enquanto a luz do dia morria, dois pescadores, sentados na beira do cais, remendavam suas redes, as vozes baixas e carregadas de incerteza.

    — Primeiro o Arconte Dídimo, agora Kyros e toda a sua casa… — disse o mais velho, balançando a cabeça. — O que será de Therma? Não nos resta mais ninguém para governar.

    O mais jovem deu de ombros, sem tirar os olhos do nó complicado em suas mãos. — Não sei. Mas ouvi no mercado que um sobrinho de Dídimo está vindo de Atenas para reclamar as posses do tio.

    — De Atenas? — O velho parou seu trabalho, a curiosidade superando o cansaço. — O que um ateniense iria querer com este fim de mundo?

    — Dizem que ele é um homem importante. Um membro do conselho dos sábios de Atena. — O jovem pescador olhou para o horizonte, a preocupação em seu rosto. — Deuses… com a guerra se aproximando, será que a chegada dele significa que Therma terá que escolher um lado?

    O velho não respondeu. Apenas suspirou e voltou a remendar sua rede, enquanto a pergunta pairava no ar salgado, pesada como a névoa que começava a subir do mar.

    Sozinho em um dos cais mais afastados, um homem ajeitava as cordas de um pequeno veleiro de pesca, seus movimentos deliberados, quase mecânicos. O cabelo escuro, de comprimento médio, estava preso para trás por uma bandana vermelha. 

    Ele se virou por um instante para olhar o horizonte, e a luz do poente revelou seu rosto. Era Magno. O sorriso de raposa, sua marca registrada, ainda estava lá, mas era apenas um fantasma, um eco tingido por uma melancolia tão profunda que parecia ter envelhecido seu olhar em uma década. 

    Foi então que ele os viu. Duas figuras, caminhando lentamente pelo cais em sua direção. 

    Uma era a de Hermes, a postura ereta, o rosto uma máscara de uma resolução fria. A outra, ao seu lado, era uma figura misteriosa, completamente coberta por um capuz e um manto escuro que escondia seu rosto nas sombras crescentes da noite.

    Magno os observou se aproximarem, sem surpresa, como se os esperasse. Seu sorriso melancólico se firmou, não em alegria, mas em um entendimento compartilhado de sua jornada sombria. Quando Hermes parou em frente ao barco, o gatuno fez a única pergunta que importava.

    — Pronto?

    Hermes apenas acenou positivamente com a cabeça, uma única vez.

    Sem outra palavra, o deus caído subiu a bordo, seus movimentos ainda um pouco rígidos pela dor. A figura encapuzada o seguiu, um espectro silencioso que não oferecia pistas de sua identidade. Magno subiu por último, desfez as amarras que prendiam o barco ao cais e, com um empurrão, colocou a pequena embarcação à deriva.

    O barco deixou a baía de Therma em um silêncio pesado, as velas capturando a brisa da noite, navegando em direção ao sol poente. Eram três figuras em um mundo hostil, deixando para trás uma cidade de fantasmas, cada um carregando o peso de suas próprias e terríveis promessas.

    Fim do Segundo Arco.

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