Capítulo 6 | O Olhar do Lorde(2)
Na noite que antecedeu a visita, o ar no túnel que os cinco chamavam de lar estava mais pesado que o normal. Reunidos ao redor de uma fogueira pequena e trêmula, eles dividiam uma porção miserável de pão amanhecido, e de silêncio preenchido apenas pelo crepitar das chamas e pela tosse seca de Teseu.
Foi Agouri, como sempre, quem tentou quebrar a melancolia.
— Dizem que a villa do Lorde tem fontes que jorram vinho e árvores que dão frutas de ouro! — soava esperançoso.
Teseu não pareceu animado como o irmão, tossiu uma vez, enquanto Ágatha, sentada ao seu lado, ajeitava um pano fino sobre seus ombros para protegê-lo do frio que emanava das paredes de pedra.
Sêneca, que observava as chamas com seus olhos calmos, finalmente falou.
— Não anseiem pelo olhar do Lorde. A atenção dos poderosos é como uma tempestade. É melhor ser a grama que se curva do que o carvalho que se quebra. —sua voz, como sempre, era desprovida de emoção.
— Talvez ele nos escolha! Pelo menos teríamos comida de verdade. — Agouri rebateu, fazendo beicinho.
— Acontece a cada dois ou três anos. Ele olha para nós, conta suas cabeças, e às vezes leva alguns dos mais fortes ou… interessantes… para sua villa.
— E isso é bom? — perguntou Ágatha brincando com os cabelo de Teseu.
Sêneca parou seu trabalho e a encarou. Pela primeira vez, Hermes viu um lampejo de algo que se assemelhava a piedade em seus olhos cansados.
O deus caído permaneceu em silêncio, observando a cena de seu canto. Eram um simulacro de família, um emaranhado de laços forjado na miséria, mas ele sabia que, por mais que quisesse negar, era um deles.
Convencia-se de que eram fardos, pesos que ele não pedira para carregar. No entanto, quando Agouri fez uma careta para Teseu em resposta à dose de sabedoria noturna de Sêneca, Hermes se percebeu com um curto sorriso de canto.
No dia da visita, eles foram arrancados de seus túneis antes do amanhecer e forçados a se alinhar no pátio principal, o fundo do poço da mina. Baldes de água fria foram jogados sobre eles para assentar a poeira e tornar sua musculatura e suas cicatrizes mais visíveis sob a luz do sol. Como gado.
Então, eles chegaram.
A descida pela rampa principal foi um espetáculo de opulência contrastante à miséria ao redor. O Lorde era um homem de meia-idade, alto e de ombros largos, vestido com uma túnica de um branco tão puro que feria os olhos. Seu rosto quadrado esbanjava indiferença aristocrática, os olhos cinzentos percorreram as fileiras de escravos como um fiscal.
Sua esposa, a Lady, flutuava em sedas tingidas de azul e púrpura. Joias de ouro e lápis-lazúli adornavam seu pescoço e pulsos. Seu rosto era belo, mas marcado pelo tédio e por um desdém mal disfarçado por tudo o que via. Não que alguém ousasse levantar os olhos, mas era digna dos mais lascivos olhares. A túnica colada nos pontos certos ajudava a manter uma imagem de elegância, mas também de beleza ousada. O negro de seus cabelos era o maior dos ornamentos.
Atrás deles, vinha o Jovem Lorde, seu filho. Um rapaz no final da adolescência, com uma expressão serena que contrastava fortemente com a dureza de seu pai e o tédio de sua mãe. Seus olhos percorriam as fileiras de escravos com o que parecia ser uma sombra de tristeza. De algum modo, o sofrimento abjeto à sua frente o afetava de forma diferente da de seus pais, genuína.

Gérion os seguia como um cão de caça, curvando-se e apontando, sua voz oleosa de vinho barato e rouca pelos gritos usuais ecoava pelo pátio.
Hermes baixou a cabeça, tentando se fundir com a multidão. Ele sentiu o olhar do Lorde passar por ele, frio e calculista. Mas foi o olhar da Lady que se demorou. Como um toque físico, uma curiosidade mórbida.
Ela se inclinou e sussurrou algo no ouvido do marido. O Lorde olhou para Hermes novamente, desta vez com mais atenção, e deu um aceno quase imperceptível.
O coração de Hermes gelou.
A procissão continuou. Então, o olhar do Jovem Lorde encontrou o de Agouri. O rapaz, incapaz de fingir submissão completa, manteve os olhos erguidos, e o Jovem Lorde ofereceu-lhe um sorriso mínimo, quase solidário.
O desfile de horrores terminou. Gérion caminhou até o centro do pátio, com uma tabuleta de cera em mãos.
— Por ordem do nobre Lorde Kratos, os seguintes bens serão transferidos para o serviço doméstico. — A voz de Gérion era um trovão falso. — O de cabelo branco!
Guardas se moveram em direção a Hermes. Ele não resistiu. Sentiu os olhos de Sêneca e Ágatha sobre ele, pesados de preocupação.
— O magricela com a cicatriz na sobrancelha! — Gérion gritou em seguida. — Você!
Dois outros guardas foram em direção a Agouri. O rapaz empalideceu, mas manteve-se firme. Quando um guarda agarrou seu braço, ele o puxou de volta com força.
— Não! — A voz de Agouri ecoou, chocando a todos com sua audácia.
O guarda ergueu a mão para golpeá-lo, mas antes que o couro pudesse descer, uma voz calma, porém cheia de autoridade, o interrompeu.
— Basta.
Era o Jovem Lorde. Ele se adiantou num movimento gracioso e deliberado, colocando-se sutilmente entre o guarda e Agouri. Seu rosto estava curvado numa desaprovação à violência exercida. O guarda recuou imediatamente, curvando-se.
— O que o aflige, rapaz? — perguntou o Jovem Lorde a Agouri numa voz surpreendentemente gentil.
— Eu não vou sem meu irmão! — Agouri gritou, apontando para Teseu, que observava a cena com os olhos arregalados de pavor, uma tosse sacudindo seu corpo frágil.
Um silêncio mortal caiu sobre o pátio. Gérion parecia prestes a explodir. O Lorde Kratos franziu a testa, irritado com a interrupção.
O Jovem Lorde, no entanto, olhou de Agouri para Teseu, e seu rosto se suavizou com o que parecia ser genuína compaixão. Ele se virou para seu pai.
— Pai, eu peço por eles. — Sua voz era respeitosa, mas firme. — A lealdade desse rapaz é uma virtude, não um crime. Seria uma crueldade desnecessária separá-los. — Ele fez uma pausa, seu olhar encontrando o de Teseu, que tremia visivelmente. — Eu cuidarei pessoalmente para que o doente receba tratamento adequado na villa. Considere-os minha responsabilidade.
O Lorde Kratos encarou seu filho por um longo momento, uma expressão indecifrável em seu rosto. Finalmente, ele deu de ombros. A vontade de seu herdeiro, especialmente quando expressa com tal eloquência, era um pequeno preço a pagar pela paz.
— Que seja. Levem os três. — A ordem do Lorde foi final.
Os guardas, agora com novas instruções, agarraram Hermes, Agouri e um Teseu completamente atônito, que olhava para o Jovem Lorde com uma expressão de reverência e incredulidade. Foram puxados para fora da formação. Enquanto era arrastado, Hermes olhou para trás uma última vez. Ele viu Ágatha, com as mãos na boca, uma mistura de medo e talvez alívio em seu rosto. E viu Sêneca, que o encarava com uma expressão pesarosa e alerta.
Eles foram conduzidos para cima, para longe da escuridão da mina e para a luz ofuscante do sol. Hermes, pela primeira vez em meses, sentiu o vento em seu rosto.

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