Capítulo 6 | Pegadas
O fogo da pequena fogueira crepitava, lançando sombras dançantes sobre os rostos da dupla acampada na orla da floresta. O ar da noite era frio, mas a atmosfera entre eles era ainda mais gélida. Plutarco, absorto em suas anotações, parecia o único alheio à tensão. Teseu, por sua vez, repassava os eventos do dia em sua mente, a mão ainda formigando com a memória fantasma da faca. A traição doía mais que o ferimento.
— Decidi-me. Partiremos pela manhã — declarou Teseu, a voz baixa e dura. Plutarco ergueu o olhar de sua tabuleta parando de rabiscá-la por um instante — Não faremos bem a esta cidade ou ao seu povo amedrontado enquanto nossa mera presença os atormentar.
Plutarco suspirou profundamente, o rosto inclinado, os olhos focados no jovem — Uma decisão prudente. O medo é um solo infértil para a razão.
Foi quando o primeiro grito cortou o silêncio da noite.
Não era humano. Era o balido agudo e desesperado de uma ovelha, um som de pura agonia que foi abruptamente silenciado. Seguiu-se outro, e depois outro, uma cacofonia de terror vinda da direção das fazendas que pontilhavam a base da colina.
Teseu se levantou de um salto, a mão instintivamente no cabo de sua xiphos.
— O que foi isso? — Plutarco perguntou, já guardando seus pertences.
— Fique aqui — ordenou Teseu, os olhos fixos na escuridão — Preciso ver.
— Teseu, não! — o escriba protestou. — Você ouviu o que eu disse. Eles procuram um culpado! Se aparecer lá, só confirmará as suspeitas deles!
Mas Teseu já se movia, correndo silenciosamente em direção aos sons, a preocupação com os aldeões superando qualquer ressentimento. Ele chegou à encosta que dava para a fazenda mais próxima a tempo de ver uma pequena sombra disforme e quadrúpede se afastar de uma figura branca caída na grama e disparar para a escuridão da floresta.
Ele desceu a colina com cuidado. A ovelha estava morta, a lã branca manchada de um vermelho escuro que brilhava sob a luz da lua.
A ferida em seu pescoço era a coisa mais bizarra que Teseu já vira. Não era o rasgo de garras de um lobo ou de um urso. Era uma mordida, mas uma mordida irregular e antinatural. Parecia que vários dentes, de tamanhos e formas nada harmônicas, haviam se cravado na carne. Alguns pontos eram perfurações profundas, enquanto outros eram apenas arranhões superficiais, como se a mandíbula da criatura fosse uma amálgama de dentições não resolvidas sobre o que deviam ser ou fazer.
Uma porta se abriu com um estrondo.
— Você! — uma voz irrompeu na noite, tomada pela fúria — Ladrão! Assassino de rebanho! Eu vou matá-lo!
Um homem corpulento corria, vindo da direção de uma casa na fazenda, segurando uma tocha e um machado. Seus olhos arregalados fixos em Teseu curvado sobre sua ovelha morta.
Ergueu-se de pronto.
Antes que Teseu pudesse tentar se explicar, Plutarco surgiu das sombras, agarrando seu braço.
— Eles não vão ouvir, Teseu. Vamos embora! Agora!
Puxado pelo escriba, Teseu recuou para a segurança da floresta, o grito enfurecido do fazendeiro ecoando atrás deles.
De volta ao acampamento, a adrenalina deu lugar a uma sombria ponderação.
— Que animal deixa uma marca como aquela? — Teseu perguntou, mais para si mesmo do que para os outros.
A voz da Dríade, um sussurro de folhas secas, respondeu do coração da floresta, e pela primeira vez, Teseu sentiu uma nota de perturbação em seu tom.
Aquilo… Não era um animal. Aquela… Coisa, não pertencia à ordem da natureza
Os olhos do jovem herói se voltaram para as luzes da cidade. Observou as nuvens. Com os olhos semicerrados, percebeu como elas pareciam se transformar numa névoa. Uma sombra profana que cobria e assolava toda a cidade.
…………
O sol da manhã, ainda baixo e frio, derramava sua luz sobre a fazenda do homem. Ele, com as vestes amassadas e sujas, estava no centro da pequena propriedade, um machado ainda em sua mão. Os vizinhos se juntaram a ele, seus rostos uma mistura de medo, raiva e desconfiança. Um grupo de caçadores locais também se aproximou, seus arcos e aljavas nas costas.
— Ele estava lá! Eu vi! — o fazendeiro gritou para o grupo, sua voz rouca de tanto berrar — O mercenário! Ele estava sobre o corpo da minha Madalena.
A pequena multidão murmurou, seus olhos se voltando para a ovelha morta no chão, a lã branca manchada de um vermelho escuro. O medo da besta e o medo do estranho se misturavam em suas mentes, deixando-os inquietos. Eles se viraram para a estrada, vendo o Curandeiro se aproximar. O homem, com o rosto sereno, os esperava no portão.
— Que confusão fazem tão cedo… — ele resmungou com voz suave, quase brincalhona.
— Curandeiro! — o fazendeiro gritou, apontando o machado para a floresta — A besta! Ela atacou de novo. Mas desta vez, eu vi quem estava lá! Era o Alexandrino!
— Vêem? Percebem agora o que eu disse? — um homem histérico surgiu da multidão gritando, o mesmo que havia acusado o jovem no dia anterior — Ele está com a besta, se aliou à fera da floresta para aniquilar nossa vila, como tentaram os desgraçados de Alexandre tempos atrás!
O Curandeiro se aproximou da ovelha, a examinando com um olhar meticuloso. Os caçadores locais se reuniram, seus olhos, treinados para a natureza, se estreitaram ao ver a mordida bizarra no pescoço do animal.
— É uma mordida… mas que mordida é essa? — um deles perguntou, sua voz cheia de confusão. — Nunca vi nada assim.
O Curandeiro se abaixou, tocando a ferida. Sentiu o cheiro, examinou as marcas dos dentes. “Outra falha…” ele se levantou, as feições de seu rosto se retorcendo com um olhar de profundo desgosto.
O caçador estava certo. Eles nunca tinham visto nada parecido.
De repente, um brilho de compreensão (e de oportunidade) surgiu em seu olhar.
Ele se virou para os aldeões, os olhos brilhando com uma convicção ferrenha.
— Fiquem em alerta. Não o ataquem. Deixem-no acampado na floresta. Se ele for o culpado, tentará agir novamente, e quando ele o fizer, estaremos prontos.
Os homens, incertos, mas convencidos pela voz firme e calma do Curandeiro, assentiram. Eles se afastaram, retornando às suas casas, mas mantendo um olhar vigilante.
O Curandeiro permaneceu no local, olhando para o corpo da ovelha, a sombra de um sorriso se formando em seu rosto. Ele sabia a verdade. A criatura, aquela que ele havia criado, estava agora solta, e a isca perfeita havia chegado. Seu plano, estagnado há anos, novamente tomava forma.
O rapaz, sem saber, se tornou a cobaia perfeita, segundo a mente doentia do curandeiro. Uma determinação estranha se apossou de seu rosto quando ele se levantou ao lado do corpo da ovelha. Os fazendeiros o observaram ir embora em silêncio.
……………
Mata adentro, Teseu se aprontava, a despeito dos conselhos do escriba, para seguir em uma batida na floresta. Tinha que descobrir o mal que acometia a vila. Ontem havia sido uma ovelha, quanto tempo demoraria até ser uma criança?
Ajeitou a xiphos amarrada à cintura e com um olhar determinado, se virou para Plutarco.
— Você vem?
O homem suspirou, tinha um pergaminho em mãos. Seus olhos eram os de alguém que havia perdido a noite trabalhando. Ele acenou para o rapaz, havia um quê de mau humor no gesto.
Eles seguiram viagem e uma brisa leve denunciava que havia um terceiro elemento acompanhando-os em sua caminhada. A dríade.
Teseu andava com olhos atentos e braços rígidos. A floresta que por um ano fora sua casa, agora parecia-se mais com uma verdadeira selva aos seus olhos. Os carvalhos e bétulas, altos, de galhos magros e folhas fartas, serviam mais como barreira aos seus olhos buscadores que como colírio de beleza natural.
Os suspiros de Plutarco, em certo ponto, passaram a irritá-lo. Era como se o homem fizesse de propósito. Em algum momento, ele próprio veio a suspirar em resposta.
— Por que veio se estava tão indisposto? — perguntou sem se virar, seus olhos ainda focados nos labirintos de árvores.
Ironicamente, o homem não suspirou dessa vez.
— É meu dever seguí-lo e registrar suas façanhas, jovem Herói. Mesmo naquelas que julgo enganosas. Seu processo de aprendizado certamente será inspirador.
Teseu franziu o cenho, a frase pairou vazia por um momento em sua mente antes que o significado dela verdadeiramente viesse à tona. Ele se virou para o velho.
— Está me chamando de tolo? — seus olhos semicerrados mostravam irritação contida.
Plutarco estreitou os olhos enquanto olhava para seu pergaminho.
— Uhm… E também de pavio curto, creio eu… — rapidamente se seguiu em uma anotação fervorosa, como se a situação o tivesse inspirado profundamente sobre algo.
Teseu rangeu os dentes.
— Como é velhote?
Ele iniciou uma marcha na direção do escriba, os ombros rígidos e andar irritado.
Herói, veja…
Uma voz etérea preencheu o espaço entre as árvores e parou Teseu no meio de seu percurso.
Ele se virou, como se a voz apontasse fisicamente o que ele deveria ver. A sugestão implantada em sua mente. Plutarco escreveu isso, achava interessante como ocorria e funcionava o vínculo entre os dois, o herói e a dríade.
Teseu observava um conjunto de pegadas no chão da floresta, estavam marcadas um pouco à frente de onde haviam parado. Provavelmente teriam perdido elas de vista em poucos segundos de caminhada, visto que eram pequenas, cobertas por algumas folhagens caídas das árvores e ainda meio escondidas entre os troncos labirínticos da floresta.
Olhou em volta antes de se focar nelas. Para sua surpresa, percebeu à direita de onde andavam o que parecia ser o fim da floresta e, com um pouco de atenção, pensou ver as cercas de pedra nos limites da propriedade da fazenda que havia visitado ontem.
Baixou os olhos e se agachou contra uma das árvores, seu olhar se estreitou novamente, mas agora, confuso.
As pegadas não faziam sentido algum. Não pareciam pertencer a um único animal, era como se um amontoado de bichos se abraçasse por alguma razão e começassem a andar um atrás do outro. Eram três garras que lembravam as de pássaros, e uma pata parecida com a de um lobo de baixa estatura, entre elas, um rastro liso e roliço, como o de uma serpente. O jovem coçou a nuca, inquieto. Os galhos balançaram secamente, como se compartilhassem do mesmo sentimento.
Eram, no entanto, demasiado pequenas em comparação com animais que deviam habitar aquela floresta. Não remeteram, em Teseu, a nenhuma criatura em particular.

Tac tac tac
Plutarco quebrou o silêncio concentrado do rapaz com o barulho de suas raspagens na tabuleta. Teseu o fitou por sobre o ombro e inspirou profundamente. Levantou-se e, com um gesto, indicou que seguissem viagem.
………….
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