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    O corpo era o de um esquilo gigante, inchado e desproporcional, coberto por uma pelagem cinzenta e suja. De sua boca, presas disformes e amareladas se projetavam em ângulos errados. E em três de suas quatro patas, as garras de uma ave de rapina, com talões negros e curvos que se cravavam na terra. A outra pata realmente parecia pertencer a uma criatura lupina. 

    Movia-se com uma velocidade espasmódica, anti natural, um pesadelo de tendões e músculos costurados desordenadamente.

    A monstruosidade chiou, os olhos pequenos e negros fixos em Teseu, e se lançou ao ataque. Mas agora, o herói tinha a luz do dia ao seu lado.

    Na luz e no espaço aberto, a vantagem era de Teseu. Sua força e seu treinamento finalmente podiam ser usados. A criatura era rápida, mas seus ataques eram diretos, previsíveis. Teseu se esquivou do primeiro bote, a besta passando por ele como um borrão. Ele girou e, enquanto a aberração tentava frear e se virar, encontrou sua abertura.

    Ele avançou com uma estocada precisa e brutal. A xiphos encontrou o flanco da criatura com um som úmido e doentio. A aberração soltou um guincho agudo e patético, um som que não era de monstro, mas de pura e miserável dor. Ela cambaleou, o sangue claro e ralo jorrando da ferida, e desabou no chão, contorcendo-se em seus espasmos finais.

    O silêncio desceu sobre a clareira, quebrado apenas pela respiração ofegante de Teseu e por um soluço abafado vindo de trás da rocha.

    Com a espada ainda em punho, ele se aproximou cautelosamente da criatura agonizante. Foi então que ele viu os detalhes mais horríveis. 

    Ao longo do corpo da criatura, onde a pata de pássaro se unia ao torso de esquilo, onde a mandíbula se encontrava com o crânio, havia linhas escuras e finas. Não eram cicatrizes de batalha. Eram costuras. Linhas de pele queimada e derretida, como se partes de diferentes animais tivessem sido fundidas com calor e alguma alquimia profana.

    A imagem o atingiu com a força de um golpe físico. Sentiu náuseas e algo subir por sua garganta. O cheiro da criatura morta começava a se espalhar pelo lugar.

    “O que diabos é isso?” Ele tapou a boca e o nariz com a mão, os olhos semicerrados em desconforto.

    O corpo da quimera jazia imóvel, uma profanidade silenciada, e o cheiro de seu sangue ralo misturava-se ao aroma de terra úmida da floresta. Teseu permaneceu por um longo momento encarando a criatura, a respiração ainda ofegante, a mente tentando processar a terrível verdade que as costuras de queimadura haviam revelado. Algo terrível sondava essa cidade.

    Um soluço baixo e contido o tirou de seu torpor. A garotinha emergiu lentamente de seu esconderijo atrás da rocha, o cavalinho de madeira ainda firmemente agarrado em uma mão. Seus olhos grandes e escuros não demonstravam mais a teimosia de antes, apenas um terror profundo e uma tristeza que parecia madura demais para seu rosto pequeno.

    Teseu se virou para ela, a fúria em seu rosto se dissipando, substituída por uma compaixão protetora. Ele se aproximou, ajoelhando-se novamente na frente dela.

    — Acabou — disse, a voz mais suave do que lembrava ter. — O que quer que fosse… não vai mais machucar ninguém.

    A menina olhou do rosto cansado de Teseu para a carcaça grotesca. Lágrimas silenciosas começaram a escorrer por suas bochechas sujas de poeira.

    — Você precisa voltar para casa agora — continuou Teseu, o tom gentil, mas firme. — Antes que a noite caia por completo. E precisa me prometer uma coisa.

    Ela ergueu o olhar, fungando.

    — Ninguém pode saber sobre isto — ele disse, gesticulando para a criatura. — As pessoas da cidade já estão com medo. Se souberem que monstros como este se escondem na floresta, o pânico os consumirá. Você é corajosa… mas sua coragem, por hoje, será guardar este segredo. Consegue fazer isso por mim? Por Pella?

    A menina o encarou, a seriedade em sua voz parecendo alcançar um lugar profundo dentro dela. Lentamente, ela assentiu. Com um último vislumbre mental de sua ovelha, agora vingada, ela se virou e começou a correr, seu pequeno corpo desaparecendo rapidamente entre as árvores, de volta para o caminho de sua fazenda.

    Plutarco se aproximou, o estilete pairando sobre a tabuleta de cera.

    — Uma mentira nobre, jovem herói. Omitir a verdade para proteger a paz. Um dilema digno de registro.

    Teseu não respondeu. Ele apenas observou a menina correr.

    A pequena figura percorria a floresta cada vez mais escura. Acima da copa das árvores, os pássaros observam sua silhueta solitária emergir da mata e alcançar a segurança dos campos abertos que levavam à sua fazenda. Das sombras mais profundas da orla da floresta, onde a luz do poente não ousava tocar, olhos verdes e ancestrais a seguiram, uma presença silenciosa garantindo seu retorno seguro, antes de se dissiparem de volta para o coração da mata.

    …………

    A noite em Pella se segurava num labirinto de silêncio e sombras. Nas vielas mais estreitas, longe do brilho das poucas tavernas que ainda teimavam em ficar abertas, o único som era o gotejar de água suja e o arrastar ocasional de lixo empurrado por um vento frio que cheirava a mato molhado e a nuvens carregadas. Uma chuva parecia estar a caminho.

    Um gato de rua magro, veterano das vielas, com pelos brancos rajados e uma orelha rasgada de uma antiga batalha, movia-se com a confiança silenciosa de um rei em seu domínio. Seus olhos, duas fendas de um verde luminoso, varriam a escuridão. Ele sentia o cheiro. Fresco. Saboroso.

    Ao virar numa das vielas, seus olhos encontraram outros, menores, vermelhos.

    A caçada começou. Um balé mortal e silencioso sobre os paralelepípedos úmidos. O rato, desesperado, disparou por um beco sem saída, um corredor estreito entre a parede de uma tinturaria e um armazém abandonado. Estava encurralado.

    O gato se aproximou lentamente, o corpo baixo, os músculos se contraindo. Ele parou, a cauda chicoteando o ar em antecipação. O bote final.

    No exato momento em que saltou, uma sombra desceu do alto. Uma rede, tecida com corda grossa e escura, caiu sobre ele com uma precisão silenciosa, prendendo tanto o caçador quanto a presa em uma única e confusa armadilha.

    Das sombras mais profundas do beco, uma figura emergiu. O Curandeiro. Seus passos não faziam som. Seu rosto, na penumbra, não continha crueldade ou triunfo, mas a concentração impassível de um artesão coletando seus materiais.

    Com movimentos eficientes, ele recolheu a rede, ignorando os silvos furiosos do gato e os guinchos aterrorizados do rato. Ele os jogou sobre o ombro como um saco de grãos e, após garantir que ninguém o vira, desapareceu de volta na escuridão, em busca de mais “matéria-prima”.

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