Capítulo 8 | Olhos e Ouvidos
O ar no laboratório subterrâneo estava viciado, pesado com o cheiro de fracasso. Pela terceira vez naquela semana, o Curandeiro se via diante de uma criação imperfeita. Ele olhou com desprezo para a criatura disforme que jazia morta sobre a laje de pedra, uma fusão grotesca de um texugo e uma águia que não suportara o próprio peso de sua mutação.
Com um rosnado de frustração, ele se virou para sua fonte de poder. O homem pendurado nos mecanismos de bronze estava visivelmente mais fraco, a pele pálida e translúcida, a respiração quase imperceptível. Sem uma palavra, o Curandeiro ajustou uma das agulhas conectadas ao braço do homem e observou o sangue escuro e corrupto fluir lentamente para um frasco de coleta.
O velho virou-se para um pano de linho antigo e seco. Tinha uma mancha clara no meio, como se tivesse sido limpo à exaustão. Estava um pouco esticado, aparentemente retorcido.
— É inútil sem o agente estabilizador — ele murmurou para si mesmo, os olhos fixos no sangue que pingava. — Aquele garoto… De novo. Ele e sua maldita sorte.
Enquanto o Criador se lamentava em seu covil, o “garoto” em questão limpava o sangue ralo de sua xiphos na grama da floresta. Diante dele, a última quimera que encontrou dava seus espasmos finais. Tinha o corpo longo e sinuoso de uma serpente, mas com quatro patas de ratazana que se debatiam inutilmente e um par de asas de morcego disformes que se abriam e fechavam sem ritmo.
— É horrível — Teseu cuspiu, o asco em sua voz misturado a uma crescente inquietação.
Ele se aproximou de Plutarco, que já documentava a nova aberração em sua tabuleta com uma fascinação mórbida.
— Outra delas, Plutarco. São fracas, estúpidas… mas continuam a aparecer.
O escriba acenou positivamente ainda focado em seus registros na tabuleta.
— E o que mais me irrita é não saber de onde vêm. Os rastros… eles só aparecem aqui, sempre depois de tentarem se alimentar na cidade e voltarem correndo pra floresta.
Plutarco parou de escrever, a ponta de seu estilete pairando sobre a cera. Ele ergueu o olhar, seus olhos calmos fixos não em Teseu, mas na direção distante dos muros de Pella. Levou o lado sem lâmina do estilete à boca, pensativo.
— Talvez estejamos lendo o mapa de forma incorreta, jovem herói — disse o escriba, a voz ponderada. — Partimos do pressuposto de que as criaturas retornam para a floresta em busca de refúgio ou caça.
Ele se virou para Teseu, uma nova ideia brilhando em seu olhar.
— Mas e se não for um retorno? E se for uma expulsão? Talvez as criaturas não estejam retornando para a floresta. Talvez estejam fugindo de Pella.
A lógica simples da sugestão atingiu Teseu como um estalo. Seus olhos se arregalaram. Pella. A cidade silenciosa. O medo nos olhos dos cidadãos. Feixes de memória o atingiram em um torpor fático.
A câmara sob a vila dos Kratos, a aberração de Eros, o poder profano de Kyros. Os esgotos de Therma. Os ratos, fundidos em uma única massa de sofrimento.
Seria possível? Outra vez? Um mal que não se escondia na selva, mas que se aninhava no coração da civilização.
Aquilo não era um fruto do acaso, um acidente do cosmos. Tinha em si a mesma assinatura, a mesma crueldade.
Ele olhou para a criatura moribunda de cima, aquela paródia de vida criada pela ambição de um louco. Outro louco.
Mas dessa vez, ele o pararia.
Um veneno ardia no peito do curandeiro, rasgando seu caminho pela garganta e formando um bolo que pedia para ser expelido em um grito. Frustração.
Ele andava de um lado para o outro em seu laboratório, os passos pesados ecoando na câmara de pedra. Cada criação falha, cada aberração patética que era destruída por aquele garoto na floresta, era uma nova ofensa à sua genialidade, um novo insulto à sua grande visão. Ele parou, o rosto contorcido de raiva, e olhou para sua matéria-prima principal.
O homem pendurado nos mecanismos de bronze ainda respirava, um testemunho de sua incrível e corrupta vitalidade. O curandeiro suspirou e voltou a se concentrar em seus papéis sobre a mesa de canto.
Das sombras, uma voz, fraca e rouca como o raspar de pedra, soou pela primeira vez em meses.
— Por… quê?
O Curandeiro se virou, surpreso. Ele se aproximou da figura suspensa, um sorriso desprovido de qualquer calor se formando em seus lábios.
— Por quê? Por quê o quê? — ele repetiu, a voz um sussurro de pura convicção. — Não vê que essa cidade morre, meu amigo?
Como se tivesse gastado toda a sua energia na primeira pergunta, o homem não deu resposta. O curandeiro não parecia esperar por uma, de qualquer modo.
— Pella apodrece em sua própria insignificância, esmagada entre as ambições de Atenas e a brutalidade de Esparta. Eu lhe darei um futuro. Eu lhe darei poder.
Ele gesticulou para os diagramas nas paredes, os olhos brilhando com um fervor fanático.
— Eu acreditava que meu ódio, minha ambição, nunca tomariam forma. Eram apenas sonhos de um homem em uma cidade esquecida. Até que você chegou… — Ele se aproximou, os dedos roçando um dos tubos que se conectava ao homem. — Um fugitivo, ferido, quase morto, sangrando…
Ele sibilou um pouco, os olhos divagaram e um sorriso surgiu no canto de seus lábios, como se a memória o confortasse.
— Seu sangue era diferente. Estranho, corrupto, mas vibrando com uma energia caótica e viva que eu nunca havia sentido.
Ele se afastou, os braços abertos como se se dirigisse a uma plateia invisível.
— Eu tornarei Pella uma cidade-estado independente! Tão poderosa que os sábios de Atenas e os generais de Esparta tremerão ao ouvir seu nome! E farei isso com minhas quimeras! Um exército de monstros forjado a partir da fúria em seu sangue, guardiões invencíveis para a minha nova era!
Consumido por sua visão, ele se virou para uma mesa de trabalho onde duas gaiolas pequenas continham um corvo e uma lagartixa. Com uma velocidade insensível e um sorriso febril, ele os matou, misturando seus sangues em um almofariz de pedra com pós alquímicos, pegou um dos recipientes contendo o sangue do homem pendurado e derramou sobre os outros. Com uma agulha de bronze, começou a costurar os dois cadáveres. Depois, usou uma vela estranha para queimar as suturas. E, por fim, injetou a mistura de sangue na aberração que havia criado.
O resultado foi uma convulsão de carne reptílica e penas, uma criatura que chilreou por um instante antes de desabar, inerte e grotesca. Outra falha.
Ele varreu a abominação da mesa com um gesto de raiva e um rugido, o olhar voltando-se para o pano que antes tinha o sangue de Teseu, mas agora estava seco.
— Falta a ordem. Falta a pureza — ele sibilou para o homem pendurado. — E aquele garoto na floresta a possui. Ele será a outra metade da minha obra-prima.
O sol da tarde começava a descer, tingindo o céu de um laranja suave. Teseu estava sentado na orla da floresta, a xiphos sobre os joelhos, os olhos varrendo a distância em direção a Pella. A revelação de Plutarco havia se instalado em sua mente como uma pedra, pesada e fria. Ele precisava de mais informações, mas estava preso ali, um suspeito exilado.
Uma pequena figura emergiu dos campos, caminhando em sua direção com uma determinação que ele reconheceu. Era a garotinha da fazenda, uma visita recorrente nos últimos dias.
— Você não devia estar aqui de novo, Althea — disse Teseu, levantando-se quando ela se aproximou.
— Eu trouxe pão — ela respondeu, estendendo um pequeno embrulho de pano. — Minha mãe disse que era o certo a fazer com quem é bom conosco. E você vingou a Madalena, então…
Teseu aceitou o pão, ainda inconformado com a desobediência da garota. Ele se ajoelhou para ficar na altura dela, e, num estalo, um plano desesperado começou a se formar em sua mente.
— Althea, você é corajosa. Mais corajosa que muitos homens da sua cidade. Eu preciso de ajuda.
Ela ergueu os olhos do pão que tinha em mãos, surpresa, a boca entreaberta numa atenção e foco que só uma criança poderia tão facilmente dedicar.
Ele colocou a mão sobre o ombro pequeno dela, um gesto de cumplicidade. O pomo de sua espada, ainda com vestígios quase secos de seu próprio sangue e do sangue da quimera da luta anterior, resvalou com o movimento deixando uma pequena mancha escura e avermelhada no tecido simples do vestido da menina. Nenhum dos dois percebeu.
— Quero que pergunte por aí, com cuidado — ele continuou, a voz um sussurro. — Pergunte sobre animais de estimação, cães, gatos, que tenham desaparecido nos últimos dias. E sobre qualquer pessoa que esteja agindo de forma estranha, que saia muito à noite e coisas do tipo. Consegue fazer isso por Pella?
Os olhos de Althea brilharam. Ajudar seu herói. Ela assentiu vigorosamente.
— Sim!
Fiel à sua promessa, Althea vagou pelas ruas de Pella. Ao contrário de Teseu, ela era uma presença familiar. Ela se aproximou da forja, onde o ferreiro gigante martelava uma ferradura.
— Senhor Kael? — ela chamou.
O homem parou, limpou o suor da testa com o antebraço sujo de fuligem e sorriu ao vê-la.
— Ora, se não é a pequena Althea! O que a traz ao meu inferno particular?
— O senhor viu algum gato ou cão sumir por esses dias? Ou alguém agindo… esquisito?
O sorriso do ferreiro vacilou por uma fração de segundo. Ele largou o martelo e se ajoelhou, a voz tornando-se um sussurro conspiratório e brincalhão.
— Ouvi dizer que eles fugiram para se juntar a um teatro de pulgas na Tessália. Agora corra, antes que o monstro do tédio a pegue também.
A menina bufou, isso não a ajudava em nada.
Ela tentou com uma senhora que vendia azeitonas na pequena ágora. A mulher beliscou sua bochecha.
— A única coisa estranha que vi hoje foi o quão rápido você está crescendo, querida. Agora, pegue uma azeitona e deixe os adultos com suas preocupações chatas.
Até as outras crianças eram inúteis, apenas repetiam os medos dos pais como uma brincadeira. “A Lamia levou!”, um menino gritou, antes de sair correndo e rindo.
Frustrada por ser tratada como uma criança, ela tomou uma decisão ousada. Entrou em uma taverna perto do centro, um lugar que cheirava a vinho derramado e carne de carneiro frito. O taverneiro, um homem corpulento com um bigode imponente, parou de limpar uma caneca ao vê-la.
— Althea! Pelos deuses, seus pais sabem que está aqui? Este não é lugar para você.
— Eu só queria saber se o senhor…
— O que você precisa saber é o caminho de volta para casa — ele a interrompeu, não com raiva, mas com uma preocupação paternal. Ele lhe entregou uma pequena fatia de pão com mel. — Agora vá. Aqui não há conversa para orelhas pequenas.
Rejeitada mais uma vez, Althea saiu da taverna, a frustração ardendo em seu peito. Ninguém a levava a sério. Foi então que a ideia surgiu, clara e óbvia. “O Curandeiro! Ele é bom e sábio. Ele vai me ouvir.”
Ela correu e encontrou a casa modesta, com um pequeno jardim de ervas bem cuidado na frente, e notou que a porta de madeira estava entreaberta. Hesitante, ela bateu levemente. Nenhuma resposta.
— Senhor? Senhor Curandeiro? — ela chamou, a voz pequena se perdendo no silêncio da casa.
Impelida pela urgência de sua missão, ela empurrou a porta e entrou. O interior era exatamente como se esperava de um curandeiro: impecavelmente limpo e organizado. O ar era pesado com o cheiro de dezenas de ervas — menta, camomila, lavanda — mas por baixo de tudo, havia um odor estranho, químico e metálico, que ela não conseguiu identificar. Pacotes de folhas secas pendiam das vigas do teto, e prateleiras de madeira exibiam fileiras ordenadas de potes de cerâmica e almofarizes de pedra.
— Senhor? — ela chamou novamente, adentrando um corredor escuro que levava aos fundos da casa.
Foi então que ela viu a porta do porão, ligeiramente entreaberta. O cheiro estranho era mais forte ali, e uma corrente de ar frio e úmido subia pelas frestas. A curiosidade, mais forte que o medo, a fez se aproximar. Ela empurrou a pesada porta de madeira, que rangeu em protesto, revelando uma escadaria de pedra que descia para uma escuridão pulsante, iluminada por um brilho verde e doentio.
Encarou a descida com um aperto na garganta. Respirou fundo. As sombras abaixo não podiam impedí-la de cumprir sua missão e ajudar seu herói. Deu o primeiro passo à frente, e este foi o mais difícil.
O ar se tornava mais frio, o cheiro, mais forte. A luz verde vinha de frascos de vidro onde líquidos borbulhavam sem fogo. O que viu a fez congelar no último degrau, a mão pequena tapando a boca para abafar um grito.
Potes continham coisas disformes flutuando em líquidos turvos. E no fundo, o “homem dormindo no ar”, pálido e suspenso por tubos de bronze. O fedor de carne queimada, podre, e de sangue velho e seco invadiu as narinas da garota, inundando todos os seus sentidos num choque.

Aterrorizada, Althea começou a recuar, os olhos arregalados fixos na cena profana. Ela deu um passo para trás, depois outro, e seu ombro esbarrou em uma prateleira de metal ao lado da escada. Um conjunto de instrumentos de bronze e vidro tilintou ruidosamente, o som agudo e metálico quebrando o silêncio doentio do laboratório.
Ela se assustou quando percebeu o corpo do homem pendurado tremendo em resposta ao barulho. O rosto dele soergueu-se na direção da menina, olhos vermelhos brilharam e queimaram todo o resquício de coragem que sobrava na pequena Althea.
Uma voz profunda, um rosnado transformado em palavras roucas e cheias de dor, ecoou pelo porão.
— Salve-me… Rápido, pequena. Antes que ele volte…
Althea soltou um pequeno grito abafado e se virou, subindo os degraus de costas, tropeçando em sua pressa para fugir. Seus olhos fechados e lacrimosos, ansiosos por apagar da mente a realidade grotesca que havia presenciado.
Um passo, depois outro. Ela alcançou o topo da escada. Então, se chocou contra algo grande, sólido e frio. Cambaleou alguns degrais abaixo de costas, quase caindo. Pensou que tivesse atingido a porta, mesmo que a tivesse deixado aberta.
Lentamente, ela se apoiou na parede ao lado e ergueu o olhar. O Curandeiro estava parado ali, bloqueando a saída. Em seus ombros, ele carregava um saco enorme e ensanguentado, de onde se projetava a ponta da garra inconfundível de um urso. Ele olhou para baixo, para a menina que invadira seu santuário, e um sorriso que não alcançava seus olhos se formou em seus lábios.
— Ora, ora, ora. Não te ensinaram que bisbilhotar é errado, minha pequena?

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