Índice de Capítulo

    O silêncio no leito do mar era absoluto. A frota de Proteu havia se tornado uma nuvem de cinzas e poeira, que agora assentava lentamente sobre a areia. Cetus recuou para a escuridão abissal, desaparecendo como uma montanha que afunda .

    Dos portões principais de Atlântida, General Kymos emergiu a passos pesados que levantavam sedimentos. Ignorando suas próprias feridas, foi em direção à única figura que restava no campo de batalha.

    A magnífica couraça de Poseidon brilhava fracamente na luz azulada da cúpula. O eixo partido do tridente negro ainda estava cravado profundamente em seu pescoço 

    Kymos caiu de joelhos ao lado de seu senhor, o corpo maciço tremendo. O general tubarão-martelo, que enfrentara exércitos sem piscar, estendeu uma mão trêmula, pairando sobre a ferida, incapaz de tocá-la, temeroso de confirmar o que seus olhos viam.


    A luz verde-negra e opressiva havia desaparecido, substituída pela luz vermelha de emergência e pelo pulsar suave do Coração de Caríbide, que Hermes havia largado no chão.

    Com um gemido, Hermes se apoiou no chão de pedra sentindo a fraqueza causada pela aura de Sêneca segurar seus membros. A poucos metros, Magno também se levantava, tonto, limpando o rosto suado e piscando como se tivesse acabado de acordar de um desmaio.

    Hermes se aproximou do pedestal esperando encontrar cinzas ou um corpo definhado, mas se surpreendeu. Sêneca respirava. Era um sono profundo e… natural. Ajoelhando-se, verificou o torso do companheiro. O buraco cavernoso havia desaparecido. Em seu lugar, uma cicatriz nova e limpa se fechava sobre a pele, que não era mais cinzenta, tinha cor. Cor viva.

    Virou-se para o pedestal condutor. A Moeda de Tânatos repousava ali, silenciosa. Ele a pegou. O metal escuro, antes gelado e pulsante com a energia que absorvera, estava agora neutro. Quase morno. A vasta energia colhida da frota de Proteu parecia ter sido totalmente gasta, consumida pelo seu companheiro, Sêneca.

    “O… o que aconteceu?” Hermes tinha uma expressão séria e preocupada. Seu olhar divagava entre a moeda e o amigo caído no chão.

    O peito de Sêneca subia e descia continuamente, num ritmo vagaroso.

    Muitas possibilidades invadiam sua mente, mas nenhuma vinha desacompanhada das possíveis consequências que viriam delas. A luz violentamente vermelha irritou seus olhos a ponto de fazê-lo acordar do pensamento. Viu que havia algo mais urgente para resolver no momento.

    Pegou o verdadeiro Coração de Caríbide do chão e o recolocou no pedestal. A energia da câmara se estabilizou imediatamente. As luzes vermelhas de emergência se apagaram, e o brilho azul protetor da cúpula retornou ao seu estado normal, visível nos monitores etéreos.

    Ele olhou para Magno, que agora se apoiava em uma pilastra, ainda processando a aniquilação que vira nos visores.

    — Magno. — A voz de Hermes soou rouca, ainda meio enfraquecida. — Ajude-me. Precisamos tirar Sêneca daqui.


    Carregando o velho sobre os ombros, passaram pelo portal de obsidiana. Atrás deles, as imensas lajes de pedra deslizaram, fechando-se com um som surdo e lítico. O Santuário estava selado mais uma vez e, por algum motivo, parecia ser um ultimato.

    Enquanto ajustava o peso de Sêneca em seu ombro, Hermes sentiu o arpão negro em suas costas. Seu olhar desviou-se para a arma por um breve instante e o inquietou.

    Eles caminharam pelos corredores. O cheiro de morte ainda estava no ar. Soldados leais a Kymos já removiam os corpos dos infiltrados que Hermes havia matado. 

    Quando Hermes e Magno passaram, carregando seu companheiro adormecido, os soldados pararam o que estavam fazendo. Um a um, eles ergueram um punho fechado e o bateram contra o peitoral de suas armaduras de obsidiana. Era uma saudação militar, um sinal de respeito.

    Magno, mancando ligeiramente ao carregar sua parte do peso, notou os gestos. Um sorriso cansado, mas genuíno, surgiu nas linhas duras de seu rosto.

    — Eu poderia me acostumar com isso… — ofegou com a voz baixa.

    Em meio ao cansaço, Hermes se permitiu sorrir um pouco.

    — Eu duvido muito…

    Eles chegaram à ala de curas do palácio. O local estava caótico, cheio de Tritões feridos da batalha externa. Em uma câmara central, General Kymos estava parado, imóvel e com seus ombros largos caídos. Ele estava ao lado de um leito de coral.

    Hermes e Magno deitaram Sêneca em uma cama vazia próxima e se aproximaram.

    No leito, Tritão jazia. Com um olhar pesaroso, Hermes se aproximou. Seus olhos se estreitaram. Seu peitoral subiu levemente por um instante, quase imperceptível.

    A couraça de Poseidon havia sido removida e estava em um suporte próximo, seu brilho azul agora fraco e instável. A ferida no pescoço estava limpa, mas a pele ao redor estava escura, e veias negras se espalhavam sutilmente sob a superfície cinzenta.

    Kymos se virou, finalmente. Seu rosto de tubarão-martelo estava marcado por um luto silencioso, principalmente os grandes olhos.

    — Ele está vivo — afirmou solenemente em um tom que divergia do habitual.

    Um curandeiro próximo, que aplicava um unguento brilhante na ferida, balançou a cabeça sombriamente.

    — Vivo, sim, General. Mas essa ferida…. A corrupção se instaurou. — O curandeiro hesitou, olhando para seu regente com pesar. — Não sabemos… não sabemos se ele acordará.

    Hermes deu um suspiro pesaroso. Com um gesto de respeito, afastou-se de Kymos e voltou à cama em que havia deixado Sêneca. Um curandeiro se aproximou perguntando no que poderia ajudar.

    Usando alguns instrumentos estranhos, mediu a pulso de Sêneca, sua respiração e também olhou o movimento de suas pupilas.

    — Ele está bem, senhor. Acordará logo. — Afirmou com um sorriso curto em suas feições písceas.

    Hermes acenou positivamente e o dispensou em seguida. Então, ele próprio recostou-se numa cama ao lado, seus olhos estavam pesados e seu corpo, cansado. Precisava descansar.

    — He… Hermes? — Uma voz rouca e arrastada soou ao seu lado.

    Hermes se levantou num solavanco. Ao seu lado, Sêneca estava sentado na cama. O rapaz de cabelos brancos pulou da cama e se aproximou do amigo com um rosto surpreso. Sêneca parecia confuso e preocupado.

    Sem palavras, Hermes segurou suas mãos e, sem aviso, as beliscou.

    — Argh! — o velho puxou as mãos para si com uma careta. — Por que fizestes isto?

    O jovem não respondeu. Seus lábios se curvaram levemente para baixo e então, por um momento, uma lágrima cruzou sua bochecha. Ele avançou contra o amigo e o abraçou. Estava vivo. Vivo de verdade.


    Alguns dias se passaram. A rotina em Atlântida era de luto e reconstrução. Kymos, agora regente interino, governava com a eficiência sombria de um general em tempos de guerra. Sêneca estava desperto, mas suas memórias de seu tempo “morto” estavam fragmentadas, e ele era, para todos os efeitos, apenas o velho e confuso Sêneca.

    Hermes e Magno foram convocados à pequena câmara do conselho. Kymos estava lá, seu rosto de tubarão-martelo parecendo ainda mais cansado. Ao lado dele, de pé e envolta em mantos de seda, estava Lady Neria. Ela parecia pálida e ainda abalada, mas estava viva.

    — Encontramos Lady Neria nos aposentos abandonados da ala sul — Kymos começou, a voz grave. — Theron a drogou e a prendeu antes mesmo da batalha externa, para que ela não pudesse contestar seu relatório no conselho.

    Neria fez um breve aceno para Hermes e Magno.

    — Eu estava desconfiada — disse ela, a voz baixa, mas firme. — Um espião meu havia encontrado isto alguns dias antes. Eu não sabia o que significava, mas sabia que era estranho.

    Ela colocou um pequeno pergaminho enrolado sobre a mesa de pérola negra.

    — Antes que eu pudesse trazer a Tritão no dia do ataque, Theron me procurou. Ele… ele me ofereceu uma bebida dizendo que precisava me contar algo. Foi a última coisa de que me lembro.

    Hermes pegou o pergaminho. Enquanto Kymos continuava a relatar os detalhes da traição de Theron, Magno se mexeu desconfortavelmente.

    — General — Magno interrompeu, seu tom respeitoso, mas desconfiado. — Com todo o respeito a… bem, a tudo… temos certeza de que nós deveríamos estar aqui? São assuntos de Atlântida.

    Kymos parou de falar e se virou lentamente para encarar Magno. Por um momento, o silêncio foi pesado.

    — Vocês salvaram esta cidade, Rei dos Ladrões — Kymos disse, a voz baixa e áspera. — Vocês eram amigos do Príncipe Tritão. Pelo meu decreto como regente, vocês são agora Honorários de Atlântida. — Ele se inclinou sobre a mesa, os olhos negros fixos em Magno. — Vocês não só podem estar aqui. Vocês devem. Agora, leiam.

    Hermes desenrolou o pergaminho que Neria havia colocado sobre a mesa. O texto era breve, uma mensagem codificada. Mas não era o único. Kymos fez um gesto, e um guarda trouxe uma pequena caixa de madeira recuperada dos aposentos de Theron.

    — Encontramos os diários dele — Kymos disse, a voz grave. — A maior parte é sobre logística, rotas de patrulha… mas Theron era meticuloso. Ele confirma o que gritou antes de morrer.

    Hermes leu o pergaminho em silêncio. Mencionava sua lealdade inabalável a um “Soberano” e criticava a ambição inferior de Proteu, referindo-se a ele como um “peão tempestuoso”. Mas foi o segundo documento, um mapa estelar, que prendeu sua atenção.

    — O que é isso? — Magno perguntou, inclinando-se sobre a mesa.

    — Um calendário — Hermes murmurou, seus olhos dourados traçando os símbolos. — Um calendário antigo, usado apenas por alguns cultos agrários em Creta.

    Ele olhou para a data anotada no canto do mapa. E então, olhou para a data de uma carta que a acompanhava, uma convocação.

    — O encontro dos agentes — disse Hermes, mais para si mesmo do que para os outros. — Kymos, esta carta… quando Theron a recebeu?

    Kymos apontou para uma anotação no diário de Theron. — Pelos nossos registros, esta entrada é de quase dezoito meses atrás.

    Hermes parou. Dezoito meses. Ele fez o cálculo mental. A convocação era para um ano e meio após o recebimento da carta.

    — Seis meses — Hermes disse, erguendo o olhar para Magno.

    — Seis meses? — Magno franziu o cenho.

    — O encontro é daqui a seis meses — Hermes falou, a realização o atingindo.

    Os dois trocaram um olhar. A névoa de Cronos. O ano que haviam perdido. Não havia sido um acidente. Não fora um atraso.

    — A névoa… — Magno sussurrou, entendendo. — Ela não nos atrasou.

    — Ela nos colocou exatamente onde precisávamos estar — concluiu Hermes. Eles agora tinham um local, Creta, e uma data.

    Kymos, vendo a determinação silenciosa no rosto dos dois, assentiu.

    — Então sua jornada deve continuar. E rápido. — O regente se levantou. — A cúpula ainda está se estabilizando após… o que quer que vocês fizeram no Santuário. Uma viagem de barco daqui seria… bem, impossível. Mas há outra escolta.


    Eles se encontraram no grande portão de Atlântida, o mesmo local onde a batalha havia começado. A água lá fora estava calma, limpa da poeira da morte. Sêneca, agora consciente, vestia vestes novas de cor acinzentada e era fitado com curiosidade por alguns curandeiros que ainda se lembravam de seus efeitos na ala de curas.

    Kymos estava com eles. A um gesto seu, um som profundo e ressonante ecoou do abismo. Em alguns minutos, a água vibrou.

    Cetus emergiu da escuridão, sua forma colossal parando na entrada da cidade, o olho do tamanho de uma carroça fixo neles.

    — Ele os levará em segurança para a superfície — Kymos disse. — Para a terra firme mais próxima em sua rota para Creta. A cidade de Tróia.

    Hermes acenou, o rosto sério. 

    — Guarde o trono, General. Até que o verdadeiro rei retorne.

    Kymos bateu o punho em sua armadura. 

    — Com minha vida.

    Hermes, Magno e Sêneca subiram nas costas ásperas do leviatã. Uma pequena cúpula cobria os três, emulando de algum modo a cúpula de Atlântida. Parecia ser o mesmo mecanismo do santuário, emulado por um inventor Atlante servo de Neria. Mais fraco, certamente, mas suficiente.

    Com um último aceno, Cetus mergulhou, ganhando velocidade. Hermes observou o império subaquático se afastar com um olhar pensativo. A moeda repousava dentro de suas vestes pressionada contra a pele fria de seu abdômen. Silenciosa.


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