Índice de Capítulo

    — Pare de me vigiar como uma carcereira — ele não respondeu a Teseu. Em vez disso, rosnou para as árvores. — Apareça.

    Teseu virou-se atentamente levando a mão instintivamente ao cabo da espada. Plutarco ajeitou a bolsa ao lado do corpo, olhando em volta, procurando o alvo daquela hostilidade.

    O vento parou. O farfalhar das folhas cessou abruptamente, e o ar na clareira tornou-se pesado, carregado com o cheiro de terra revirada e flores silvestres. De um tronco antigo e retorcido à esquerda da estrada, a casca pareceu se desfazer e se reagrupar. A madeira se tornou pele, o musgo se transformou em cabelos longos e escuros, e a Dríade se materializou. Ela não caminhou até eles; simplesmente separou-se da árvore, seus pés tocando o chão sem emitir som algum. Sua expressão era ilegível, seus olhos verdes fixos em Licaão com uma serenidade enervante.

    — Não sou sua carcereira, Lobo — disse ela, sua voz ressoando como o eco em um vale profundo. — Sou a guardiã do caminho que você escolheu trilhar.

    Licaão virou-se bruscamente para ela, ignorando Teseu e o escriba.

    — Eu não escolhi caminho nenhum — ele rosnou, dando um passo em direção a ela. A diferença de altura era intimidante, mas a Dríade não recuou um milímetro. — Você e sua magia… essas raízes invisíveis que sufocam minha força. Eu as sinto sob a pele, rastejando, limitando o que eu sou. Retire-as.

    — As amarras da floresta permanecem — ela respondeu, o tom suave, mas firme como raiz de montanha. — Elas são a única coisa que impede sua natureza de devorar sua consciência novamente.

    — Eu não preciso da sua piedade ou do seu controle! — Licaão gritou, a voz ecoando pela mata, assustando pássaros distantes. — Eu sou o mestre da minha própria maldição. Liberte meu poder. Agora.

    A Dríade inclinou a cabeça levemente, observando-o com uma curiosidade desprovida de medo.

    — Você exige liberdade com tanta arrogância — ela disse, e pela primeira vez, havia uma ponta de aço em sua voz etérea. — Não sente vergonha, Licaão?

    O homem-lobo parou, pego de surpresa pela pergunta.

    — Vergonha?

    — Duas vezes você foi arrancado das garras de um destino pior que a morte — continuou ela, aproximando-se dele, flutuando sobre a relva seca. — E duas foram as vezes em que tentou rasgar a garganta daquele que o salvou.

    Teseu observou a troca em silêncio, sentindo o peso daquelas palavras. A lembrança da besta de olhos vermelhos que quase o matara ainda era uma sombra em sua mente.

    — Você é uma fera ingrata — a Dríade sentenciou, parando a um braço de distância de Licaão. — Exigir poder de quem o protege de si mesmo é a prova de que você ainda não é digno de possuí-lo.

    O rosto de Licaão se contorceu. As veias em seu pescoço saltaram, e por um instante, seus olhos pareceram refletir um brilho carmesim. Ele se inclinou para frente, o rosto a centímetros do dela, invadindo seu espaço com uma violência latente.

    — Não me fale sobre gratidão, espírito — ele sibilou, a voz pingando veneno. — Vocês, deidades da floresta, ninfas, espíritos menores… podem até se achar diferentes dos Olimpianos em seus tronos de ouro. Podem pregar sobre equilíbrio e proteção. Mas no fim, são iguais a eles. Iguais a todos os outros malditos.

    Ele cuspiu no chão, aos pés dela.

    — Vocês só sabem dar com uma mão para acorrentar com a outra.

    A Dríade não respondeu ao insulto. Ela apenas o olhou com uma tristeza profunda, como se visse algo quebrado além de qualquer reparo. Lentamente, sua forma começou a perder a nitidez, as bordas de seu corpo se dissolvendo em luz e folhas soltas.

    — O caminho é longo, Licaão — sua voz sussurrou, agora vindo de todas as direções ao mesmo tempo. — E a corrente se ajusta ainda mais quando o cão tenta se afastar de quem o guarda.

    Com um último farfalhar, ela desapareceu, reintegrando-se à floresta. O silêncio retornou, mas agora era denso, desconfortável. Licaão permaneceu parado, olhando para o vazio onde ela estivera, o peito arfando.

    Plutarco, que assistira a tudo com os olhos arregalados, pigarreou nervosamente, quebrando a tensão estática.

    — Bem… — o escriba murmurou, ajeitando a alça de sua bolsa. — Isso foi… esclarecedor.

    Licaão girou nos calcanhares, dando as costas para a floresta e para seus companheiros. Ele olhou para a bifurcação. O caminho da esquerda descia para o vale habitado, o da direita seguia para as colinas e serras selvagens. 

    — Hum… — Teseu limpou a garganta, não tinha vontade de insistir mais no assunto por enquanto — Creio que devamos parar um pouco na próxima vila para descansar e reabastecer os suprimentos para seguir viagem.

    — Eu preciso de ar que não cheire a perguntas idiotas e magia velha — disse ele, sem olhar para trás. — Encontro vocês na saída norte da cidade em alguns dias.

    — Vai fugir? — Teseu perguntou.

    Licaão parou. Ele virou apenas o rosto, fitando o garoto por sobre o ombro.

    — Não se preocupe, garoto. Arcádia sempre paga suas dívidas. Todas elas.

    Com essa afirmação estranha, tomou o caminho da direita.

    Teseu soltou o ar que prendia nos pulmões. Trocou um olhar rápido com Plutarco, que já guardava seus instrumentos de escrita.

    — Acho que é melhor assim — disse o escriba, levantando-se. — A companhia dele não é das mais… relaxantes.

    Juntos, eles retomaram a caminhada pela estrada principal. A vegetação começou a rarear à medida que desciam a encosta, e logo a vista se abriu. Lá embaixo, aninhada em um vale fértil entre colinas verdes e campos de pastoreio, estava a cidade de Mylae.

    Parecia pacata, com chaminés fumegando e muros baixos de pedra, muito diferente da tensão comercial de Therma ou da quietude sombria de Pella. E, ao fundo, uma enorme montanha bloqueava parte do horizonte atrás da cidade.

    — Vamos — disse Teseu, ajeitando a armadura. — Temos uma cidade para atravessar.

    A descida da encosta foi silenciosa. A estrada se alargou, tornando-se mais suave à medida que se aproximavam do vale, a terra batida dando lugar a um caminho bem cuidado, ladeado por flores silvestres e cercas baixas de pedra que demarcavam pastos verdes.

    Mylae pôs-se então à fronte deles. As casas aqui eram modestas, construídas com madeira clara e telhados de palha ou terracota, muitas delas com varandas floridas e portas pintadas de cores vivas. O sol da tarde banhava tudo com uma luz dourada e acolhedora, criando uma imagem de cartão-postal de uma vida rural idílica.

    No entanto, ao cruzarem os limites da cidade, a sensação de boas-vindas se chocou com uma realidade desconcertante.

    As ruas estavam vazias.

    Não havia crianças correndo, nem mercadores anunciando seus produtos, nem mulheres conversando nas portas. As janelas estavam abertas, permitindo ver interiores domésticos arrumados; em uma varanda, uma cadeira de balanço se movia suavemente com o vento; em outra, roupas secavam ao sol. Havia todos os sinais de vida, exceto as próprias pessoas.

    — É… pitoresco — comentou Plutarco, a voz baixa ecoando mais do que deveria na rua deserta. Ele olhou para os lados, apertando a alça de sua bolsa. — Mas onde estão todos? Uma cidade fantasma em plena luz do dia não é um bom presságio.

    Teseu manteve a mão próxima à espada enquanto os olhos varriam os becos e janelas.

    — Não é uma cidade fantasma — disse ele, parando para escutar. — Ouça.

    Havia um som. Parecia estar num raio de vinte metros, abafado, mas inconfundível. Um murmúrio  de várias vozes e, cortando esse murmúrio, erguia-se uma voz solitária, um lamento alto e arrastado que ecoava entre as casas de madeira.

    Guiados pelo som, eles avançaram pelas ruas desertas até chegarem à praça central. Um espaço aberto pavimentado com lajes irregulares, dominado por um grande carvalho no centro, sob o qual uma fonte de pedra jorrava água limpa. Ao redor, algumas bancas de mercado vendiam queijos, lã e ferramentas agrícolas.

    De um lado da praça, uma taverna de dois andares com as portas abertas exalava o cheiro de vinho azedo e guisado de carneiro. Ali, a cidade inteira parecia ter se reunido.

    Era dali que vinha o burburinho incessante que contaminava toda a cidade.

    — …levou tudo! Levou minha luz, minha vida! — a voz masculina, embargada pelo álcool, ecoava da varanda da taverna para a praça.

    Centenas de pessoas estavam aglomeradas, de pé, formando um semicírculo denso em frente a uma taverna de dois andares. Eles estavam quietos, imóveis, seus rostos voltados para a varanda da estalagem como se assistissem a uma peça trágica.

    Teseu parou junto à fonte, aproveitando para lavar o rosto e beber da água fresca. Ele olhou na direção da voz. Um homem de meia-idade estava sentado nos degraus da taverna, cercado por alguns moradores que o observavam com uma mistura de pena e tédio habitual.

    O homem vestia uma túnica que fora de boa qualidade, tingida de um azul profundo, mas que agora estava manchada de vinho e poeira. Seu rosto estava vermelho e inchado pelo choro, e ele gesticulava com uma taça de cerâmica na mão, derramando o líquido escuro sobre os próprios dedos a cada movimento brusco.

    — Ela era pura! — ele soluçou, dirigindo-se a um ferreiro que parecia querer estar em qualquer outro lugar. — E aquele… aquela besta a arrancou de mim! O monstro das montanhas!

    Teseu endireitou-se. Seus ouvidos, treinados pelos meses de caça na floresta quase tremeram, captaram a palavra com um interesse imediato. “Monstro”, uma promessa de perigo que fez o sangue do jovem herói correr mais rápido.

    Ele limpou a água do queixo e olhou para Plutarco. O escriba já havia sacado sua tabuleta de cera, assentiu gravemente, já sabendo o que o garoto pensava.

    — Parece que encontramos a fonte do drama local — comentou em meio a cortes violentos na tabuleta.

    O olhar do homem, injetado e desesperado, varreu a multidão e, por um acaso do destino, cruzou o espaço vazio e se fixou no brilho do bronze da armadura de Teseu, parado na orla da praça.

    O choro cessou abruptamente. O homem esticou um dedo trêmulo na direção deles, e toda a multidão se virou em um único movimento fluido para encarar os recém-chegados.

    — Você! — gritou ele, apontando um dedo trêmulo. — Você é um guerreiro? Um mercenário? Pelos deuses, diga-me que carrega essa espada para matar bestas!

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