Capítulo 89 | O Conto do Rei Canibal
A trilha dos pastores desapareceu sob a escuridão antes que eles alcançassem o cume. O terreno era agora uma mistura traiçoeira de cascalho solto e raízes expostas, o que tornava a caminhada perigosa. A lua, encoberta por nuvens pesadas que se acumulavam ao redor dos picos, oferecia pouca luz.
Plutarco parou, apoiando-se com força em um cajado improvisado que encontrara pelo caminho. Sua respiração era ruidosa, o peito arfando pelo esforço da subida constante.
— Teseu… — chamou o escriba, a voz falhando. — Precisamos parar. Meus joelhos não aguentam mais, e a escuridão nestas encostas é um convite para quebrarmos o pescoço antes mesmo de encontrarmos o monstro.
Teseu parou alguns metros à frente, ansioso. Ele olhou para o alto, onde a silhueta das montanhas se recortava contra o céu noturno.
— Estamos perto — insistiu o garoto. — Se pararmos agora, Eudora pode…
— Se pararmos agora, estaremos vivos para lutar amanhã — interrompeu Plutarco, sentando-se em uma pedra chata. — Um herói exausto é apenas um cadáver em espera, garoto. Você vai enfrentar uma besta que, segundo dizem, nunca dorme. Você precisa estar descansado. A moça não será salva se você cair de um penhasco no escuro.
A lógica fria do escriba venceu a impaciência de Teseu. Ele soltou o ar, frustrado, mas assentiu. Seus próprios músculos tremiam de fadiga, e a adrenalina do juramento na praça já havia se dissipado, deixando apenas o cansaço dos dias de caminhada na mata.
Eles não podiam acender uma fogueira, a luz atrairia a atenção de qualquer coisa que vivesse naquelas montanhas. Teseu olhou ao redor, avaliando o terreno com os olhos de quem aprendera a sobreviver na mata. O chão era duro, frio e exposto a predadores.
— Ali — apontou Teseu para um carvalho antigo e retorcido que crescia na beira da trilha, seus galhos grossos e horizontais ofereciam uma plataforma natural. — Dormiremos na árvore. É mais seguro contra lobos e cobras.
Plutarco olhou para a árvore com ceticismo, mas permitiu que Teseu o ajudasse. O garoto, demonstrando uma força surpreendente para sua idade, içou o escriba até o galho mais baixo e largo, garantindo que ele estivesse estável antes de subir e se acomodar em um galho adjacente.
Acomodados na escuridão da copa, o silêncio da montanha os envolveu. Era um silêncio diferente do da floresta de baixo. Aqui, o vento uivava por entre as fendas das rochas, criando um som constante e melancólico.
Teseu tentou fechar os olhos, mas a mente estava agitada. Não com o monstro que os esperava à frente, mas com o que haviam deixado para trás.
— Plutarco? — sussurrou ele.
— Hum? — respondeu o escriba, que tentava encontrar uma posição confortável na madeira dura.
— Eu sou uma pessoa ruim… por me sentir mais tranquilo agora? — Teseu hesitou, escolhendo as palavras. — Sem o Licaão por perto?
Houve uma pausa longa. O vento agitou as folhas ao redor deles.
— Estranho seria se, conhecendo a história dele, apreciasse sua companhia — respondeu Plutarco após um suspiro, numa voz paternal.
— Ele se chamou de Rei — disse Teseu. — Mas tem os trejeitos de um selvagem. Eu não conheço a história.
Plutarco suspirou.
— A Arcádia é uma terra antiga, Teseu. Mais antiga que Atenas, dizem alguns. E Licaão era seu rei. Um homem culto, religioso, que fundou a cidade de Licosura. Mas sua devoção se transformou em fanatismo, e seu fanatismo, em loucura.
Teseu ouvia atentamente, esquecendo o desconforto do galho.
— Ele acreditava ser tão piedoso, tão acima dos homens comuns, que quis testar a onisciência do próprio Zeus — continuou Plutarco. — Quando o Pai dos Deuses visitou seu palácio disfarçado de viajante, Licaão o recebeu. Mas para provar se o hóspede era realmente um deus, ele cometeu o sacrilégio final. Ele pegou seu próprio filho, Nyctimus… e o matou.
Teseu prendeu a respiração, o horror da história gelou seu sangue.
— Ele esquartejou o menino — a voz de Plutarco não tinha emoção, apenas o tom neutro de um mensageiro — Cozinhou a carne e a serviu a Zeus em um banquete. Ele queria ver se o deus saberia o que estava comendo.
— E ele sabia? — perguntou Teseu num fio de voz.
— Zeus sabe de tudo. Enfurecido pela atrocidade, ele derrubou a mesa e amaldiçoou o rei. Licaão fugiu para os campos, tentando falar, mas apenas uivos saíram de sua garganta. Suas roupas viraram pelos, seus braços viraram patas. Sua sede de sangue permaneceu, mas sua humanidade foi tomada. Ele foi condenado a viver como um lobo, a besta que ele provou ser por dentro.
O silêncio retornou ao carvalho antigo, agora carregado com o peso daquela história grotesca.
Teseu olhou a escuridão à sua frente, tentando imaginar o homem que viajara com eles cometendo tal ato. A imagem de Licaão lutando em Pella se misturou com a imagem do rei canibal.
— Durma, Teseu — disse Plutarco, encerrando o assunto. — O dia trará seus próprios monstros.
Teseu encostou a cabeça na casca rugosa do carvalho. Ele manteve os olhos abertos, fixos na escuridão da encosta acima. Não conseguiu se dar ao luxo de apagar.
Suas pálpebras pesavam, mas sua mente martelava informações de todas as naturezas. Estratégias de luta, a história de Licaão…
O vento, que antes assobiava entre as fendas das rochas, cessou com o avanço da noite. O silêncio que se instalou após o adormecer de Plutarco tornou-se pesado, estático. O escriba não lamentava dormindo como Hermes, ou roncava como Magno, era inquietantemente silencioso.
Teseu piscou, sentindo a aspereza da madeira contra sua bochecha. Sua mão direita, pesada e dormente, repousava sobre o galho ao seu lado. Seus dedos traçavam distraidamente as ranhuras da madeira, percorrendo as fissuras e os nós rugosos.
Um dos nós parecia diferente. Mais liso. Morno.
Sem que ele comandasse, seu dedo indicador deslizou sobre a protuberância, pressionando-a levemente. A textura não era de casca seca. Era úmida, gelatinosa. Cedeu ao toque.
Teseu olhou para baixo, a mente lenta demorando a processar o estímulo tátil. Sob a ponta de seu dedo, a madeira se contraiu. Uma pálpebra feita de musgo e pele cinzenta se abriu com um som viscoso.
Um olho. Um globo ocular humano, leitoso e injetado de sangue, girou na órbita encravada no galho até que a pupila dilatada se fixasse nele.
Teseu retirou a mão como se tivesse tocado em brasa, o coração dando um solavanco doloroso contra as costelas.
Ao seu redor, o silêncio foi quebrado. Não por gritos, mas por um som úmido e ritmado de carne se separando.
Click. Click. Squish.
Teseu prendeu a respiração, o coração falhando uma batida no peito. Ele não se moveu, seus músculos travados em um espasmo de alerta, temendo que qualquer gesto provocasse uma reação.
Em cada galho, em cada nó do tronco, nas folhas escuras acima dele, a madeira se rasgava, dezenas, centenas de olhos se abriram. Eram de todas as cores e formas. Leitosos e cegos, outros com pupilas verticais de predadores, outros humanos e cheios de malícia.
Fixados no rapaz, começaram, a piscar, um após o outro. O som úmido e viscoso de pálpebras se abrindo e fechando acabou com o silêncio nos pés da montanha, um clique suave e repetitivo que arranhava seus ouvidos.
A sensação de exposição era absoluta. Teseu sentiu-se nu, dissecado por aquela multidão de olhares silenciosos que o cercava. O pânico subiu por sua garganta, frio e paralisante. Ele precisava se defender. Precisava de aço entre ele e aquelas coisas.
Sua mão esquerda tateou freneticamente a cintura, buscando o cabo da xiphos. Seus dedos, trêmulos e desajeitados pela exaustão, roçaram o couro da bainha e encontraram o punho. Ele puxou.
Mas a força não veio. O suor frio em sua palma fez o metal escorregar. A xiphos deslizou de seus dedos frouxos.
Ele tentou agarrá-la no ar, um movimento desajeitado e inútil. A espada caiu, batendo nos galhos inferiores com um clangor metálico antes de atingir o solo lá embaixo, longe de seu alcance.
Desarmado. Exposto.
Ele se encolheu contra o tronco, mas sentiu algo se mover em suas costas. Afastou-se com um grito sufocado e viu que, no lugar onde sua cabeça repousava, um olho enorme, do tamanho de um prato, havia se aberto na madeira, a pupila negra dilatando-se ao fitá-lo.
Sem lugar onde se esconder, ergueu as mãos para cobrir o rosto, mas a visão que teve o fez chorar de pavor. Na palma de ambas as mãos, as linhas de flexão tremeram e, em um estalo, se abriram, dando lugar a duas escleras rugosas e brancas com pupilas negras e enormes fixadas nele.
A bile subiu por sua garganta que se fechou como num nó. Buscando uma fuga, qualquer ponto onde aquele olhar onipresente não o alcançasse, ele ergueu a cabeça para o alto.
Mas o céu havia desaparecido.
Acima da silhueta negra dos picos da montanha, onde a lua deveria estar, o firmamento havia se rasgado. No lugar do astro noturno, um olho colossal, maior que a própria montanha, pairava sobre as nuvens. Sua esclera era vasta e percorrida por veias vermelhas pulsantes, e sua pupila, um abismo negro e infinito, estava dilatada e fixa, inequivocamente, em Teseu.
O terror foi absoluto. O instinto de recuar, de fugir daquela visão cósmica, superou a lógica de sua posição. Teseu jogou o corpo para trás, esquecendo-se do galho estreito.
O equilíbrio se perdeu. Ele caiu no vazio.

O impacto com o chão foi duro e seco.
— Ugh!
O ar foi expulso de seus pulmões com a batida seca. A dor no ombro e nas costelas foi um choque de realidade que varreu o pesadelo.
Teseu abriu os olhos, puxando o ar com força. O céu acima era azul, limpo e indiferente. O sol da manhã filtrava-se pelas folhas normais e estáticas do carvalho. Não havia olhos. Apenas madeira e musgo.
Do alto, a voz de Plutarco soou, tingida de surpresa.
— Um despertar dinâmico, eu diria.
Teseu se sentou na terra, o corpo tremendo, a pele ainda formigando onde os olhares do sonho o haviam tocado. Sua espada jazia a alguns metros, exatamente onde caíra em seu pesadelo. Ele olhou para ela, depois para a montanha silenciosa. A sensação de estar sendo vigiado não havia desaparecido com o sonho; apenas recuara para as sombras.
— Vamos — disse ele, a voz rouca, levantando-se e recolhendo a arma com mãos que ainda tremiam. — Estamos perdendo tempo.

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