Capítulo 90 | O Vale dos Observadores
Os marcos de pedra que delimitavam o território dos pastores ficaram para trás. Meros montes de granito empilhados que marcavam a fronteira entre o mundo dos homens e o desconhecido. Ao cruzarem essa linha invisível, o vento, que até então fustigava suas capas e assobiava nos ouvidos, morreu.
Não foi uma diminuição gradual. Foi um corte seco, como se tivessem entrado em uma sala e trancado a porta em seguida. O ar tornou-se estagnado, seco e com um cheiro mineral forte, lembrando giz esfarelado e pedra antiga cozida pelo sol.
Teseu parou, olhando para trás. As árvores da encosta inferior ainda balançavam suavemente, mas ali, onde ele pisava, nem a poeira se movia. Ele fechou os olhos por um instante, buscando a familiaridade reconfortante da presença da Dríade, aquela vibração sutil de vida e conexão que o acompanhara desde a floresta de treinamento.
Nada. Apenas um vazio oco e silencioso.
Desde que entraram em Mylae, ele sentira a conexão enfraquecer, mas ali, naquele vale de silêncio, ela havia desaparecido por completo. Era como se a natureza tivesse recuado, recusando-se a colocar os pés naquele solo amaldiçoado.
— Plutarco — sussurrou Teseu. — Você sente isso?
O escriba ajeitou a bolsa, olhando ao redor com desconforto.
— Sinto o nada, se é isso que quer dizer. Não há pássaros. Nem grilos. Até as moscas parecem evitar este lugar.
Teseu abriu os olhos.
— Não é só o silêncio. Ela não está aqui. A Dríade… ela não nos seguiu.
Mas o vazio deixado por ela não estava desocupado. Outra energia preenchia o espaço, uma pressão fria e invasiva que fazia a pele da nuca de Teseu formigar. Infelizmente, não estava seguro de que aquilo era algo além de um eco persistente de seu pesadelo.
Eles avançaram. O terreno mudou drasticamente. A vegetação rasteira e os arbustos espinhosos deram lugar a um solo de terra vermelha e rochas de arenito esculpidas pelo tempo, haja vista a falta de ventos.
E as formas… Teseu tentou não olhar diretamente, mas era impossível ignorar.
À sua esquerda, um arco de pedra natural se erguia contra o céu azul. A impossível erosão pelo vento havia escavado um buraco perfeito no centro da rocha avermelhada, criando uma janela circular. Com o sol posicionado atrás dele, a luz passava pelo orifício como uma pupila brilhante em uma íris de pedra.
Mais à frente, formações rochosas menores pontilhavam a paisagem. Eram pedras arredondadas com fissuras horizontais que lembravam pálpebras semicerradas. Troncos de árvores mortas e petrificadas, brancos como ossos, erguiam-se do solo, e em sua casca lisa, nós escuros e ovais pareciam encarar os invasores.

Um panóptico natural. Onde quer que Teseu olhasse, a paisagem olhava de volta.
— Pareidolia — murmurou Plutarco, puxando seu estilete com dedos trêmulos, tentando racionalizar o medo. — É como Pitágoras de Samos chama a tendência da mente humana de encontrar padrões familiares, rostos, onde não existem. É apenas pedra, Teseu. Erosão e pedra.
— Se você diz — respondeu Teseu, mas sua mão não saiu do cabo da xiphos.
Ele olhou para uma poça de água estagnada em uma depressão rochosa. A água era escura e imóvel, refletindo o céu. Ao passar por ela, Teseu viu seu reflexo distorcido, mas por uma fração de segundo, a imagem que viu não foi a sua. Foi a de um olho gigante, submerso, olhando para cima.
Ele recuou bruscamente, chutando poeira para dentro da água, quebrando o reflexo.
— Vamos continuar — disse ele, a voz tensa. — Quero sair deste lugar o mais rápido possível.
Plutarco, inquieto, assentiu abraçado aos seus escritos.
O caminho desceu até terminar numa espécie de anfiteatro natural, um beco sem saída cercado por paredões de rocha vermelha que se erguiam a trinta metros de altura. Não havia cavernas profundas ou construções visíveis, indicadores da ação humana, apenas a desolação geológica sob o sol forte.
No centro desse espaço aberto, uma grande formação rochosa se destacava, parecendo um monólito irregular de arenito, cheio de protuberâncias, fissuras e aqueles mesmos padrões circulares perturbadores que infestavam todo o vale.
Teseu parou no centro da clareira de pedra sentindo o suor escorrer pelo seu pescoço. O silêncio seguia absoluto.
— Argos! — seu grito rouco raspou a garganta seca. — Eu sei que você está aqui! Entregue a garota!
O eco de sua voz bateu nas paredes do cânion e morreu rapidamente, absorvido pela pedra porosa. Nenhuma resposta.
Ele esperou, a espada pesando na mão, os músculos tensos para um ataque que não vinha. O tempo passou. O sol castigava a nuca de Teseu, e a sensação de estar sendo observado, que fora tão intensa durante a caminhada, seguia mesmo aqui, longe da vegetação estranha, vinda de todas as direções e de nenhuma especificamente ao mesmo tempo.
Teseu bufou. Voltando-se para Plutarco, que estava encolhido perto da entrada do anfiteatro, estalou a língua.
— Não tem nada aqui — Teseu disse, gesticulando com a mão livre para o vale vazio. — Aquele nobre… Kreon. Ele deve ter indicado o lugar errado, ou a besta já partiu. É apenas pedra e poeira.
Plutarco não respondeu. Seu rosto estava pálido, os olhos fixos não em Teseu, mas em algo logo atrás dele. Sua mão trêmula ergueu-se, apontando com o estilete para o grande monólito central.
— Teseu… — a voz de Plutarco falhou. — A rocha. Ela… piscou.
Teseu franziu a testa, virando-se lentamente. Ele olhou para a formação rochosa a cinco metros de distância. Era apenas uma massa de pedra sedimentar, com veios de quartzo e nódulos escuros de ágata incrustados na superfície áspera.
— Do que você está falan…
Então, ele viu.
Um dos “nódulos” de ágata na altura do que seria o peito de um homem gigante se contraiu. Uma pálpebra de pele grossa e rugosa, com a exata textura e cor da pedra ao redor, desceu e subiu rapidamente sobre o brilho vítreo.
Com os lábios trêmulos, Teseu recuou um passo sem respirar.
Um som profundo e gutural, como pedras moendo umas nas outras, veio da formação. O monólito se moveu. Poeira e cascalho caíram de seus ombros largos quando a figura se desprendeu do cenário, dando um passo pesado à frente.
Argos Panoptes.
Ele era imenso, com quase três metros de altura, um gigante de musculatura densa e definida. Sua pele tinha a cor e a textura da terra seca do vale, ocre e cinzenta, tornando-o um camaleão perfeito naquele ambiente. Ele vestia apenas uma tanga de couro cru, desgastada pelo tempo.
Mas eram os olhos que prendiam a atenção e gelavam o sangue.
Eles cobriam seu corpo. Não havia um palmo de pele livre. Olhos grandes e pequenos, de íris azuis, verdes, castanhas e amarelas, pontilhavam seus braços grossos, seu peitoral largo, suas pernas e até mesmo seus trapézios. Seu rosto, no entanto, era como o de uma escultura. Impassível. Olhos cinzentos como mármore que não se atreviam a piscar ou sequer tremer. Até mesmo seus cabelos, anelados, aparentavam ser esculpidos.
Enquanto ele se endireitava, dezenas desses olhos, que estavam fechados ou semicerrados mimetizando a pedra, abriram-se de uma só vez. O som foi uma onda de estalos úmidos e viscosos.
Argos não tinha pontos cegos. Enquanto sua cabeça, com um rosto largo e severo, permanecia voltada para a frente, olhos em seus ombros e pescoço giravam independentemente, focando em Teseu e Plutarco com uma intensidade bestial.
Ele apenas expirou, soltando um som pesado pelo nariz, e cruzou os braços sobre o peito coberto de pupilas que observavam Teseu com mil julgamentos silenciosos. Ele era o guardião, e a montanha era ele.

— Pelos deuses… — Teseu sussurrou, a xiphos tremendo levemente em sua mão diante daquela muralha de vigilância. — Ele é real.

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