Índice de Capítulo

    Na fazenda de Leneu, pai de Althea, a quietude havia sido assassinada. Uma multidão se formara, um organismo febril de medo e raiva. Eram ferreiros, pastores, tecelões. Homens e mulheres cujas mãos foram feitas para criar e cultivar, agora seguravam picaretas, foices, martelos e tochas acesas com uma fúria que transformaria até unhas em armas.

    No centro da turba, o Curandeiro estava de pé sobre um caixote de madeira, o rosto marcado pela dor e justa indignação, sua voz calma cortando os murmúrios raivosos como um instigador sombrio.

    — Ele veio à nossa cidade como uma praga silenciosa — declarou, os braços abertos em um gesto de desolação. — Nós lhe oferecemos paz, e ele nos retribuiu com violência e zombaria. E agora… agora ele mexeu com o que temos de mais puro, nossas crianças.

    Um rosnado coletivo subiu da multidão. Leneu, o pai da menina, um homem grande cujos ombros largos agora estavam curvados pelo peso do luto, segurava um machado de lenhador com tanta força que os nós de seus dedos estavam brancos. Ao seu lado, o velho Ergos, o mesmo homem histérico que primeiro acusara Teseu, urrava, o rosto vermelho e os olhos injetados.

    — Eu avisei! Eu disse que ele era um demônio! Um dos malditos filhos de Alexandre, enviado para nos atormentar! E vocês não me ouviram!

    — A floresta é o seu covil! — o Curandeiro continuou, apontando para a mata escura que se erguia como uma muralha na distância. — Ele se esconde lá, zombando de nossa dor, com a nossa criança em suas garras! Vamos permitir isso? Vamos deixar que um monstro nos dite o que é medo?

    — NÃO! — o grito veio de Leneu, um som rasgado, animal.

    — NÃO! — ecoou a multidão.

    — Então peguem suas tochas! Peguem suas picaretas e foices! — a voz do Curandeiro se ergueu, não mais calma, mas a de um general inflamando suas tropas. — Mostrem a esse mercenário o que acontece quando se mexe com o povo de Pella! Tragam a nossa Althea de volta!

    Com um urro uníssono de fúria cega, a turba se moveu. Tochas foram erguidas, ancinhos foram apontados. Eram uma força da natureza, uma avalanche de pais e vizinhos transformados em guerreiros pela necessidade, marchando em direção à floresta, determinados a fazer justiça com as próprias mãos e a regar a terra com o sangue do homem que, eles tinham certeza, era a fonte de toda a sua desgraça.


    No acampamento escondido na floresta, a ansiedade era uma criatura viva. Teseu caminhava de um lado para o outro, um animal enjaulado pela preocupação. O sol já começava a descer, e Althea ainda não havia aparecido.

    — Ela já devia ter retornado — ele murmurou, parando para olhar na direção de Pella. — E se algo aconteceu?

    — A menina é esperta. Sabe se cuidar nas ruas daquela cidade melhor do que nós — respondeu Plutarco, sem erguer o olhar de sua tabuleta de cera. Sentado em um tronco caído, ele estava completamente absorto, o estilete deslizando pela superfície com uma concentração de artista.

    Teseu se aproximou, a curiosidade momentaneamente superando a preocupação. Plutarco não estava escrevendo, estava desenhando. Com traços surpreendentemente detalhados, ele recriava a imagem da quimera-serpente que Teseu havia derrotado, capturando sua forma grotesca e antinatural.

    — O que é isso? — Teseu perguntou, apontando para a criatura na tabuleta.

    Plutarco franziu o cenho, ofendido. Ele apontou com o estilete para uma palavra que havia escrito cuidadosamente abaixo do desenho.

    — Minha caligrafia é assim tão penosa? Está escrito “Quimera”.

    O rosto de Teseu corou. Ele desviou o olhar, a vergonha pinicando sua pele.

    — Não… não é a sua caligrafia, Plutarco. É que… — Ele hesitou, a confissão pesando em sua língua. — Eu não sei ler.

    Plutarco parou, o estilete congelado no ar. Ele encarou Teseu, a surpresa genuína em seu rosto. Ele viu a força do rapaz, sua coragem, sua intuição de batalha, mas nunca havia considerado uma ausência tão fundamental. Então, a surpresa deu lugar à compreensão. Um escravo das minas, um fugitivo… claro. A vida não lhe dera a chance. Ele coçou o queixo com a ponta do estilete.

    — Faz sentido — ele disse baixinho. Estava prestes a dizer que o ensinaria, que o conhecimento era uma arma tão poderosa quanto qualquer espada, quando a floresta ao redor deles gritou.

    Não foi um som, mas uma convulsão. As árvores tremeram como se um terremoto as sacudisse pelas raízes, e a voz da Dríade, normalmente um sussurro de folhas, ressoou como um trovão, vinda de todos os lugares ao mesmo tempo, cheia de pânico.

    FUJAM! AGORA! A FÚRIA CEGA DOS HOMENS SE APROXIMA!

    Antes que pudessem reagir, o som distante de gritos raivosos e o estalar de galhos chegou aos seus ouvidos. Teseu agarrou Plutarco pelo braço e o puxou para trás de um afloramento rochoso coberto de musgo, escondendo-se segundos antes que a vanguarda da turba surgisse.

    De sua fresta, eles observaram a passagem do exército de camponeses. Tochas acesas lançavam uma fumaça acre mesmo sob a luz do dia. Ancinhos e foices eram empunhados com uma intenção mortal. Seus rostos estavam contorcidos de ódio, gritando o nome de Althea e maldições para o “mercenário”.

    Teseu assistiu, o coração martelando, não de medo, mas de uma compreensão súbita e terrível. Althea sumiu e eles achavam que ele a havia levado.

    Ele esperou até que o último homem passasse e o som da marcha se tornasse um ruído distante. A floresta voltou ao seu silêncio tenso.

    — Eles a estão procurando… e a mim — Teseu sussurrou, a mente girando.

    Plutarco assentiu, o rosto pálido. 

    — Precisamos ir mais fundo na floresta, nos esconder até que…

    — Não — Teseu o interrompeu, os olhos fixos na direção de onde a turba viera. Uma ideia, nascida do mais puro desespero e audácia, havia surgido em sua mente. — Eles deixaram a cidade. A maioria dos homens. Deixaram Pella… quase sem defesa.

    Ele se virou para Plutarco, e em seu olhar não havia mais a dúvida de um garoto, mas a resolução perigosa de um caçador.

    — Esta é a nossa chance, Plutarco. Enquanto eles me caçam aqui, nós vamos caçar a verdade lá. Vamos entrar na cidade. Além disso, seja lá o que tenha ocorrido a Althea, com certeza foi dentro da cidade.

    Plutarco suspirou. O papel de um escriba das crônicas de um herói certamente não era fácil, ainda mais quando se tratava de um herói impulsivo e nada cuidadoso como Teseu.

    O homem assentiu, sua missão era mais que reclamar, era registrar.


    Moveram-se como sombras pela floresta que agora lhes servia de escudo. Teseu liderava, o corpo ágil se esgueirando por entre as árvores, com Plutarco logo atrás, ofegante, lutando para manter o ritmo enquanto protegia seus preciosos papiros. Eles contornaram a colina, chegando a um trecho do muro de Pella que era baixo e corroído pelo tempo, longe do portão principal.

    — Fique aqui — sussurrou Teseu. 

    Com um impulso poderoso, ele saltou, as mãos encontrando apoio nas pedras ásperas, e escalou o muro com uma facilidade que deixou Plutarco boquiaberto. De cima, ele estendeu a mão. 

    — Vamos.

    Com uma mistura de resmungos e esforço, o escriba foi içado para o topo e, juntos, desceram para uma viela silenciosa dentro da cidade.

    Eles prosseguiram com cuidado, Teseu sempre averiguava cada canto das vielas antes de dar sinal para que fossem em frente.

    Na caminhada, o silêncio era a primeira coisa que os atingiu. Não era a quietude tensa de antes, cheia de olhares escondidos. Era um silêncio absoluto, morto. O vento que assobiava pelas ruas estreitas não carregava os latidos distantes de cães ou o miado de gatos nos telhados. Nenhum pássaro cantava. Teseu ergueu o olhar para o céu cinzento e não viu uma única andorinha ou pombo cortando o ar.

    — Onde estão os animais? — ele perguntou, a voz um eco estranho na quietude.

    — Talvez… estejam escondidos da comoção — sugeriu Plutarco, embora seu rosto mostrasse a mesma perturbação.

    — Não — Teseu balançou a cabeça, seu instinto, afiado por um ano na selva, gritando que algo estava errado. — Eles fugiram. É como se toda a vida animal senciente tivesse abandonado este lugar.

    Eles avançaram com cautela. A cidade sem seus homens era um labirinto de fantasmas, mas o verdadeiro horror era o que não estava lá.

    Sem testemunhas para interrogar, sem rastros para seguir, Teseu sentiu-se encurralado. Ele fechou os olhos, buscando a calma da floresta em meio à pedra estéril. Ele precisava de uma pista. E se não havia nenhuma visível, ele a encontraria.

    Ele se concentrou, buscando a energia que a Dríade havia despertado nele. Seus olhos se abriram, e por um instante, brilharam com uma luz verde fraca. Para ele, o mundo mudou. A cor das pedras e da madeira desbotou, e em seu lugar, ele via as correntes de vida e de decadência. E ali, no chão, algo se sobressaiu.

    Uma mancha, um rastro esquisito e grotesco de energia corrupta que serpenteava pelos paralelepípedos, invisível a olhos normais. Tinha a mesma presença profana das criaturas que matara.

    — Plutarco, por aqui.

    Ele começou a seguir o rastro, mas com um novo propósito. A lógica de caçador, que aprendera na dor e na fome, clareou em sua mente. Se os rastros na floresta sempre se afastavam de Pella, este, dentro da cidade, deveria levar de volta à fonte.

    Passaram por praças vazias e vielas silenciosas, o brilho verde nos olhos de Teseu guiando-os com uma certeza assustadora. Finalmente, o rastro terminou.

    Ele parou, a luz em seus olhos se apagando. Estavam diante de uma casa modesta, de dois andares, com um pequeno e bem cuidado jardim de ervas na frente. Estava trancada, silenciosa, indistinguível de qualquer outra na rua. Mas para Teseu, o ar ao redor dela era pesado, o final do rastro pulsando com uma energia doentia.

    Ele pensou que sua busca não dera em nada, quando ouviu ao longe o som da turba retornando à cidade, as vozes ainda distantes, mas se aproximando. Sem tempo e sem ter para onde fugir, ele tomou uma decisão.

    — Temos que entrar.

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