Capítulo 95 | Raiz da Verdade
O sol já havia se escondido atrás dos picos irregulares do oeste quando Teseu e Plutarco alcançaram os limites de Mylae. A descida fora silenciosa, marcada apenas pelo som das botas na terra seca e pela respiração cansada do escriba.
A volta pareceu mais curta do que a ida, talvez fossem os passos longos e ansiosos do jovem herói. A expressão dele não melhorara desde que deixaram o cânion.
A cidade não dormia. Tochas de resina haviam sido acesas ao redor da praça central, lançando uma luz alaranjada e trêmula sobre as fachadas de madeira. A população inteira parecia estar na rua, uma massa de sombras inquietas que aguardava o desfecho de seu pesadelo.
Quando Teseu surgiu na rua principal, um murmúrio percorreu a multidão. As pessoas se afastaram, abrindo caminho para ele, com rostos cheios de confusão. Seus olhos desconfiados buscavam troféus — a cabeça de um monstro, o corpo de uma donzela — e encontravam apenas um guerreiro sujo de poeira e um velho carregando pergaminhos.
Kreon estava na varanda da taverna, o mesmo lugar onde fizera seu teatro na tarde do dia anterior. Ele segurava um copo de vinho, mas seus nós dos dedos estavam brancos de tensão. Ao ver Teseu, ele desceu os degraus quase correndo, empurrando dois aldeões para fora de seu caminho.
— Então? — Kreon exigiu, parando a poucos metros de Teseu. Seus olhos varreram a estrada vazia atrás do herói. — Onde está ela? Onde está a cabeça da besta?
Teseu parou. Ele olhou nos olhos injetados do ateniense e percebeu que não havia tensão alguma neles, apenas ânsia pela retomada.
— Acabou — disse Teseu numa voz fria que tentava emular pesar. — O monstro caiu em uma ravina profunda nas montanhas do norte. Eudora… ela caiu junto. Não houve o que fazer.
Um silêncio chocado caiu sobre a praça. Alguns moradores levaram as mãos à boca, Plutarco fez o mesmo, mas se conteve à escrita. Kreon ficou imóvel, de queixo caído.
— Morta? — ele sibilou. — Você a deixou morrer?
O jovem herói enxergava agora através dos olhos do lorde. Aquela usura, possessividade. Como um homem que acaba de ouvir do pastor que uma ovelha caiu de um brejo.
Seus olhos se estreitaram, o punho se fechou para conter a fúria.
— Eu disse que ela caiu — repetiu Teseu. — O corpo se perdeu.
— Mentiroso! — O grito de Kreon rasgou o ar. Ele avançou um passo, apontando um dedo acusador para o peito de Teseu. — Você acha que sou tolo, garoto? Eu vejo como você me olha. Você a viu. Viu a beleza dela.
Ele se virou para a multidão, histérico, gritando e gesticulando exageradamente.
— Ele a roubou! Este mercenário sujo matou a besta e tomou a garota para si! Ele a escondeu nas montanhas para usá-la e agora vem aqui zombar de mim!
A multidão oscilou. A dúvida começou a surgir nos rostos dos aldeões. Eles olhavam para Teseu, um estranho armado, e para Kreon, um nobre rico. Isso sequer podia ser chamado de escolha.
— Como ousa? — Kreon continuou, a saliva voando de sua boca. — Eu paguei! Ela era minha!
Ele sacou uma adaga fina e ornamentada de sua cintura.
— Diga onde ela está ou eu mandarei chicotear a verdade para fora de sua pele! — Kreon ameaçou com olhos arregalados que brilhavam em loucura.
Teseu não sacou sua espada, seus olhos seguiram a adaga na mão do nobre, depois para o chão de terra batida da praça e para as finas raízes que escapavam entre as pedras do calçamento.
— Você quer a verdade, Kreon? — Teseu perguntou em voz baixa, mas carregada de uma energia que fez o ar vibrar. — Então você a terá.
O lorde enlouqueceu com a pergunta e avançou. Teseu bateu o pé direito no chão com a força de um martelo.
O chão compactado da praça se partiu aos pés de Kreon. Raízes grossas e espinhosas, brilhando com uma luz verde pálida, irromperam do solo em formatos que se assemelhavam a serpentes.
Kreon gritou, deixando a adaga cair. Antes que ele pudesse correr, as vinhas se enrolaram em seus tornozelos, subindo por suas pernas e envolvendo seu tronco. As raízes emitiram um ruído que pareceu o sibilar de uma cobra ao se enrolar no corpo gordo do lorde.
Num instante, o nobre foi erguido do chão, suspenso no ar pelas plantas que o apertavam. Seus braços estavam presos ao lado do corpo. A multidão recuou em choque, gritando, abrindo um círculo largo ao redor do homem preso.
Uma brisa soprou subitamente na praça, levantando poeira e agitando as túnicas dos aldeões e forçando Plutarco a se agarrar aos seus papiros. Mas, aos ouvidos de Teseu, o vento sussurrou com clareza.
“Faça-o falar, Campeão,” a voz da Dríade soou em sua mente, clara e doce. “Arranque a verdade dele como se arranca uma erva daninha. Deixe que todos vejam a podridão na raiz.”
Teseu caminhou calmamente até ficar diante de Kreon, que se debatia inutilmente contra o aperto sobrenatural. Os olhos do garoto brilhavam com o verde da floresta.
— Ninguém vai te chicotear — disse Teseu, encarando o nobre aterrorizado. — Mas você vai falar.
As vinhas forçaram ainda mais o seu aperto, Kreon engasgou balançando seus pés no ar pateticamente.

— Por que você a perseguia? — Teseu perguntou, e sua voz pareceu se multiplicar na praça, ecoando e ressoando como se falasse várias vezes ao mesmo tempo.
Kreon tentou fechar a boca, morder a língua, qualquer coisa para conter as palavras. Mas algo o impedia, era como se as raízes presas nele cavassem seu corpo e abrissem caminho para a verdade escapar. Seu rosto gordo começou a suar ferozmente quando seus lábios tremeram e se abriram contra seu desejo
— As terras… — ele expeliu, as palavras saindo como vômito. — Os olivais do pai dela. Eram férteis. Valiosos. Eu os queria.
Um murmúrio chocado percorreu a multidão. Teseu deu um passo à frente.
— O pai dela lhe devia dinheiro. Como isso aconteceu?
— Foi um golpe! — Kreon gritou, o rosto vermelho de esforço para não falar, mas a verdade jorrava dele. — Minha irmã… ela o seduziu em Corinto. Convenceu o velho tolo a investir em rotas comerciais que não existiam, em navios que nunca zarparam. Nós drenamos o ouro dele até que ele não tivesse escolha a não ser vender as terras por uma fração do preço.
A revelação da crueldade calculada fez o ar da praça pesar. Os aldeões levavam as mãos à frente da boca, crivavam as sobrancelhas com o sentimento de terem sido enganados.
— E Eudora? — Teseu pressionou.
— Nada mais que uma garantia… — confessou Kreon sentindo as vinhas apertarem seu peito. — Eu disse que o ajudaria para que não vendesse as terras. Mas apenas se eu me casasse com a filha dele… Assim, tudo seria meu legalmente.
Ele fechou os olhos, rangeu os dentes e mais uma vez bufou, incapaz de segurar as palavras na garganta.
— O plano era perfeito. Trazer a família para Atenas e depois… um acidente. Uma doença. A herança viria para mim sem perguntas.
— Você ia matá-los — Teseu constatou, frio.
— Eu ia tomar o que o destino me devia! — Kreon rosnou destruindo por completo a máscara de civilidade.
— E você conseguiu? — Teseu perguntou.
— Não! — O grito de Kreon foi de pura frustração. — A maldita fugiu! Escapou na noite anterior à cerimônia em Atenas. Correu para as montanhas como uma cabra selvagem, preferindo a morte a mim. Ela arruinou tudo!
Teseu olhou para o homem suspenso à sua frente. Não havia amor, nem honra. Apenas ganância e veneno. Ele relaxou os ombros. O brilho verde em seus olhos se esvaiu lentamente.
As vinhas obedeceram instantaneamente. Elas se desenrolaram e recuaram para a terra, soltando Kreon. O nobre caiu de joelhos na lama da praça, tossindo e massageando o pescoço.
Ele olhou ao redor, uma muralha de olhares de repulsa o fizeram se sentir pequeno. Os aldeões de Mylae, gente simples e trabalhadora, haviam ouvido o suficiente.
— Vo-vocês vão mesmo acreditar nesse feitice-Bagh!
Uma pedra voou da multidão, atingindo o ombro de Kreon e interrompendo a sua fala.
— Fora! — gritou o taverneiro. — Saia da nossa cidade, seu abutre!
Outra pedra voou e atingiu as suas costas, uma criança dessa vez.
Kreon se levantou cambaleando. Ele recuou, tropeçando, enquanto a população avançava, cercando-o em direção à saída da cidade com olhares de desprezo.
Ele correu. Mas antes de desaparecer na escuridão da estrada sul, virou-se uma última vez para Teseu enquanto rangia os dentes.
— Você vai pagar por isso! — ele gritou com uma voz falha.
Teseu o observou sumir na noite, impassível.
Plutarco se aproximou, parando ao lado do garoto. O escriba observava a estrada vazia, pensativo.
— Está certo de conceder-lhe misericórdia, jovem Teseu? — perguntou Plutarco com voz baixa. — Ele não parece o tipo que aprende com o perdão.
Teseu olhou para suas mãos.
— Não tenho certeza de nada, Plutarco — respondeu ele, cansado. — Mas já derramei sangue demais nesses últimos dias.
Antes que Plutarco pudesse responder, passos pesados se aproximaram. Era o taverneiro, o mesmo homem que havia servido vinho a Kreon momentos antes. Ele trazia uma toalha nas mãos e olhava para Teseu com um sorriso.

Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.