Capítulo 96 | Adeus, Mylae
— Está certo de conceder-lhe misericórdia, jovem Teseu? — perguntou Plutarco com voz baixa. — Ele não parece o tipo que aprende com o perdão.
Teseu olhou para suas mãos.
— Não tenho certeza de nada, Plutarco — respondeu ele, cansado. — Mas já derramei sangue demais nesses últimos dias.
Antes que Plutarco pudesse responder, passos pesados se aproximaram. Era o taverneiro, o mesmo homem que havia servido vinho a Kreon momentos antes. Ele trazia uma toalha nas mãos e olhava para Teseu com um sorriso.
— Meu senhor… — disse o homem, fazendo uma reverência desajeitada. — O que fez hoje… Aquele homem vivia ameaçando as pessoas da vila para comer e beber de graça. Vocês nos libertaram de duas bestas: a da montanha e a da cidade.
Ele gesticulou para a porta aberta de seu estabelecimento.
— Por favor. A noite já caiu e vocês parecem exaustos. Minha estalagem é humilde, mas os melhores quartos são de vocês esta noite. Comida, vinho, banho quente… tudo por conta da casa. É o mínimo que Mylae pode oferecer.
Teseu olhou para Plutarco. O escriba, cujos joelhos tremiam visivelmente de fadiga, assentiu com um suspiro de alívio.
— Uma cama de verdade soa como uma bênção dos deuses — admitiu Plutarco.
Aceitaram a oferta. Aquela noite, a taverna não teve música ou algazarra. O respeito dos moradores lhes garantiu um canto tranquilo perto da lareira, onde comeram um guisado quente que parecia ter o melhor sabor do mundo após a ração seca da viagem.
Algumas crianças curiosas se aproximavam por vezes para perguntar a Teseu sobre a magia estranha que usara mais cedo, e o rapaz não sabia como responder. Não podia contar a verdade sobre como conseguiu aqueles poderes. A mera lembrança o fazia corar.
Mais tarde, no quarto iluminado apenas pela luz da lua que entrava pela janela, o silêncio se instalou. Plutarco estava sentado à mesa de frente para a janela, organizando seus rolos de papiro, mas parou, olhando para Teseu que observava as próprias mãos, sentado na beira da cama.

— Aquilo na praça… — sussurrou o escriba. — As vinhas. A forma como o nobre te respondia mesmo sem vontade alguma de fazê-lo. O que foi aquilo?
Mesmo com o tempo de convivência, Plutarco ainda se surpreendia com as proezas do herói. Lembrava-se da primeira vez que o viu fazer surgir raízes de dentro de uma pedra e como o garoto pareceu alheio à sua surpresa, completamente acostumado com aquela anormalidade.
Também, lembrava-se do susto que teve na primeira ocasião em que a Dríade lhe apareceu à noite. Antes disso, cogitava que o garoto tinha alguns problemas psicológicos por viver na mata e que por isso se acostumara a conversar com as árvores. Mas naquela noite, percebeu que era muito mais são do que pensava.
— Eu… eu não sei — confessou ele num tom distante.
Ele se lembrou do momento no Vale dos Observadores, de suas mãos na terra vitrificada, da luta contra a corrupção do Tártaro.
— Eu acho que pode ter alguma relação com a fissura da montanha…
O escriba se voltou para o rapaz, finalmente largando seus papéis sobre a mesa. O garoto o encarava de volta com olhos caídos, perdidos.
— Foi como se… — continuou Teseu — Como se ao lutar contra aquela força, eu próprio absorvesse uma parte dela…
Plutarco anotou algo rapidamente. Seu rosto pareceu brilhar, iluminado pela lua e por uma curiosidade fascinada.
— Fascinante… — murmurou o escriba. — O Campeão da Floresta. Parece que a Dríade lhe deixou mais do que apenas conselhos enigmáticos e direções incertas.
Com um suspiro, o herói se deitou.
— Talvez — murmurou ele, fechando os olhos.
O sono veio rápido e sem sonhos.
Na manhã seguinte, o sol já estava alto quando deixaram Mylae. A cidade estava desperta, e embora os olhares dos aldeões ainda fossem de reverência, havia uma leveza no ar que não existia antes.
Caminharam pela estrada norte, crianças brincavam e animais cruzavam as ruelas trazendo um sentimento bucólico e tranquilizante. Era quase um erro dar as costas para esse lugar.
Pouco depois dos limites da cidade, onde a estrada começava a subir novamente em direção às colinas florestadas, viram uma silhueta familiar.
Licaão estava encostado no tronco de um carvalho antigo, descascando uma maçã com sua faca longa. Ele parecia ter passado a noite ali, tendo em vista a quantidade de pegadas em círculo à sua volta.
Ao ouvir os passos, ele ergueu o olhar. Seus olhos escuros percorreram a armadura de Teseu, limpa.
— Matou o monstro do dia, herói? — Licaão ironizou, mordendo um pedaço da fruta.
Teseu parou. Ele olhou para trás uma última vez, na direção do vale onde Argos e Eudora agora estavam livres, e depois para a cidade tranquila que deixava para trás.
— Não. — Ele rebateu, pensativo e melancólico. — Talvez o monstro fosse eu…
Licaão parou de mastigar. Supresa curvou seus lábios sob a barba. Vendo o garoto passar à sua frente sem cerimônia, ele tossiu, guardando a faca na cintura. Plutarco seguiu atrás, sempre anotando.
O trio se reuniu novamente e seguiu viagem pela estrada, deixando o Vale dos Observadores e seus segredos profanos para trás.
Sob o manto de uma madrugada sem estrelas, o mar se movia em um ritmo lânguido e hipnótico, como se o peito de Oceanus vacilasse em um sono profundo. A espuma do mar, tocada por uma luz lunar que parecia vir de lugar nenhum, brilhava com uma iridescência etérea e espectral.
No seio do continente, uma figura solitária relaxava empoleirada no topo de uma enorme pilastra.
Abaixo dele, estendia-se o esqueleto de uma metrópole morta. Colunas tombadas, muralhas Ciclópicas reduzidas a escombros e largas avenidas agora pavimentadas apenas por poeira e memórias de fogo. Ruínas.
Sentado à beira do capitel coríntio, deixava as pernas balançarem no vazio com uma despreocupação infantil. A brisa noturna balançava seus velhos e obscuros trapos, desbotados pelo sal.
Em sua mão direita, uma moeda dançava, girando entre seus dedos, passava de uma junta para outra, desaparecia e reaparecia como num truque.
Escura como piche, parecia sugar a pouca iluminação, envolvendo o seu portador com o que se assemelhava a um véu de trevas. Estendendo-a contra a enorme lua, a figura encarou a efígie nela gravada. Um olho entreaberto.
Sorriu.
Seus olhos se desviaram da moeda para o horizonte, onde o Mar Egeu beijava a costa. As ondas, que batiam ritmicamente contra a praia distante, de repente mudaram.
A maré recuou rapidamente, expondo metros de leito de areia úmida, antes de se avolumar em uma onda silenciosa e parada, como se o mar se preparasse para um sopro.
Do topo da pilastra, um suspiro exagerado entoou. Guardou a moeda no bolso, levantando-se e espanando a poeira de suas roupas.
—Huaagh — bocejou, e prosseguiu com uma voz preguiçosa que ecoou sobre a cidade morta — Que mal-educados. Chegaram bem na hora do meu descanso.
Ele deu um passo à frente, para o nada, e despencou do céu. Lá embaixo, nada chegou além da brisa do mar e do silêncio das ruínas.

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