Capítulo 97 | Nas Ruínas de Tróia
A água do mar estava gelada. Ela batia contra a cintura de Hermes enquanto ele puxava Sêneca, que não sabia nadar, para a parte rasa. O leviatã, Cetus, emitiu um pulsar grave à distância e enviou uma vibração na água que alcançou os três já perto da margem. Depois, girou seu corpo maciço e desapareceu no negrume do Egeu.
Hermes arrastou os pés na areia molhada até sentir o chão firme, e soltou Sêneca, que caiu de joelhos, tossindo água salgada. Magno veio logo atrás, torcendo a ponta da túnica encharcada. O vento da noite soprava sem impedimentos naquela costa, causava um assobio que arrepiava os pelos da pele úmida e esfriava o sangue.
Por trás das nuvens, um risco prateado no céu iluminava pouco da praia de areia grossa e escura. O cheiro de sal era forte, misturado com o odor de algas podres trazidas pela maré.
Hermes olhou para o sul. Dunas baixas se erguiam a algumas centenas de metros, oferecendo uma proteção mínima contra o vento.
— Vamos — disse Hermes. Sua voz saiu rouca. — Precisamos sair do sereno.
Sêneca tentou se levantar, mas suas pernas falharam. Ele apoiou as mãos na areia. Suas sobrancelhas estavam franzidas, varrendo o horizonte escuro, distante. Então, olhou para a mão direita, a qual se lembrava claramente de ter decepado nas minas. Estava inteira e sem uma única cicatriz.
Aos outros, parecia alguém que tenta montar um quebra-cabeça com peças que não encaixavam. Magno estalou a língua, impaciente, mas estendeu a mão e puxou o velho para cima com um puxão brusco.
O som das botas pesadas afundando na areia e o barulho rítmico das ondas preencheram o silêncio. Sêneca tropeçava ocasionalmente, olhava para trás, para o mar, e depois para frente, franzindo a testa com força. Sua respiração estava curta e descompassada.
Hermes, que ia à frente, não parou o passo, mas falou alto o suficiente para ser ouvido acima do vento.
— Pergunte de uma vez, velho. Suas respostas não virão dos grãos de areia.
Sêneca parou. Ele tocou o próprio peito, sentindo o coração bater.
— Eu morri? — A voz soou fraca e quase sumiu no vento. — Lembro de adormecer nas minas, e de repente, acordar embaixo d’água. Eu vi coisas… homens com cabeças de peixe me cercando.
Uma gargalhada seca cortou o ar. Magno jogou a cabeça para trás.
— Acertou em cheio — disse o ladrão. — Você morreu.
Sêneca arregalou os olhos com pavor.
Hermes estalou a língua, parou e olhou para trás. O rosto de Magno estava na sombra, mas os dentes brilhavam num sorriso.
— Você não morreu — corrigiu Hermes. — Não restam mais minas, nem Kratos, e nem Gérion. Eu te tirei de lá com Ágata e o levei para Therma para tentar curar a infecção em sua mão decepada.
Hermes fitou o horizonte, lembrando-se de algo doloroso, antes de suspirar.
Sêneca tinha a boca aberta e os olhos descrentes.
— Depois que saímos de lá, acabamos em Atlântida, onde você conheceu o povo tritão, e depois disso, Cetus nos trouxe através do mar. Estamos na costa da Ásia Menor.
O velho processou a informação devagar. Ele olhou para as roupas molhadas de Hermes, para a espada embainhada na cintura dele, e o arpão nas costas. Sentiu a realidade física da areia sob seus pés descalços. A lógica venceu o dúvida. Ele assentiu, engolindo em seco. Mas então, outra dúvida veio. Seus ombros caíram.
— Mas onde está Ágata? — perguntou ele. — E os meninos?
Hermes voltou a olhar para o sul, para a escuridão onde as dunas os esperavam, e não mais olhou nos olhos de Sêneca.
— Estamos atrás deles… — sua voz baixa soou como uma confissão pesarosa.
Sêneca abriu a boca, mas a fechou logo em seguida. Ele olhou para o chão e respirou fundo. Sentiu que não devia perguntar mais por enquanto, apesar de desejar. O velho encolheu-se dentro das vestes molhadas, tremendo mais do que antes, mas agora o frio vinha de dentro.
Magno pigarreou alto, quebrando o momento. Ele apontou para o horizonte à frente, depois das dunas, onde formas angulares e irregulares se destacavam contra o céu estrelado.
— O que é aquilo?
— Tróia — respondeu Hermes, voltando a caminhar. — Ou o que restou dela.
Eles deixaram a linha da maré e subiram a encosta da primeira duna. A areia ali era seca e fofa, dificultava a pisada e entrava nas sandálias. O esforço fez a respiração de Sêneca chiar, mas o bloqueio do vento direto trouxe um alívio térmico imediato.
Sêneca limpou o suor frio da testa. Ele observou Magno, que caminhava ao lado de Hermes. A imagem do homem não aparecia em suas lembranças, mesmo que forçasse a se lembrar de todos os rostos dos servos das minas.
— E você? — perguntou Sêneca, a voz rouca pelo esforço da subida. — Quem é você, afinal?
Magno parou de súbito. Seus calcanhares afundaram na areia fofa. Ele girou o corpo na direção de Sêneca. A postura era rígida, os ombros tensos e o queixo levantado. Por um instante, Sêneca teve a impressão de que seu nariz cresceu.
— Como você ousa perguntar isso? — Magno cuspiu as palavras. — Sou o homem que impediu que aquelas coisas usassem suas tripas como colar. Isso deveria bastar.
Hermes parou logo à frente. Ele olhou para Magno e depois para Sêneca.
— Ele é… — começou Hermes, com a intenção de revelar a patente de Rei Ladrão de Therma.
— Um cozinheiro — interrompeu Magno, falando alto.
Sêneca franziu a testa. Hermes calou-se, observando o amigo de cenho franzido.
Magno abriu um sorriso largo. A expressão não chegou aos olhos, que permaneceram alertas e frios. Ele gesticulou com as mãos numa atuação exagerada.
— Eu era cozinheiro em um navio mercante que fazia a rota de Creta — mentiu Magno, a voz ganhando um tom teatral. — O capitão era um bêbado e a tripulação pior ainda. Aprendi a manusear facas limpando peixe e cortando dedos de marinheiros que tentavam roubar minha ração.
Ele gargalhou.
— Sabe como é, velho Sêneca, quando você passa a vida fugindo de agiotas e brigando com bêbados por causa de dados viciados, você aprende um truque ou outro.
Ele soltou uma risada curta e forçada, encenando um golpe de adaga no ar com a mão vazia.
— Apenas um homem de sorte e com dívidas demais. Nada mais.
Sêneca piscou, confuso com a mudança brusca de temperamento. Ele olhou para Hermes, buscando confirmação, mas este pareceu cansado demais para questionar o absurdo da história.
Hermes manteve o rosto inexpressivo. Ele via o músculo da mandíbula de Magno pulsar. Via o tremor leve na mão esquerda do ladrão, que ele tentava disfarçar apertando a bainha da adaga.
— Um cozinheiro de sorte — repetiu Hermes, neutro. — Vamos. Precisamos montar o acampamento antes que o frio piore.
Magno desfez o sorriso instantaneamente e voltou a caminhar, chutando a areia com força desnecessária.
Eles encontraram um abrigo precário entre dois afloramentos de rocha calcária desgastada, protegidos do vento que varria a costa. Recolheram madeira caída das árvores externas do bosque que se abria depois da praia. Os galhos estavam úmidos e salgados, o que tornou a tarefa de acender o fogo difícil e demorada. Quando as chamas finalmente pegaram, queimaram com um estalo constante e uma fumaça acre que ardia nos olhos.
Sêneca não aguentou muito tempo. O ex-escravo comeu um pedaço de carne seca que Hermes trazia na bolsa, bebeu um gole de água e se encolheu perto do calor. Em poucos minutos, sua respiração pesou e ele adormeceu, exausto pela caminhada e pelo excesso de dúvidas sobre seu retorno.
Hermes estava limpando a areia de suas grevas de bronze, o vento assobiava acima das rochas em um ritmo quase musical. Ele se levantou, suspirou, e andou até a fogueira.
Magno estava sentado do outro lado do fogo. Ele segurava um graveto e cutucava as brasas com movimentos repetitivos.
— Tá acordado por que? O velho ainda resmunga dormindo? — perguntou, sem tirar os olhos do fogo. — Achei que voltar dos mortos curava isso.
Hermes olhou para Sêneca, que dormia em silêncio absoluto, e sorriu com o canto da boca.
— Não.
O silêncio caiu entre eles novamente, preenchido apenas pelo som do mar distante e da madeira estalando. Hermes observou Magno. O ladrão mantinha o sorriso de canto, mas seus ombros estavam rígidos. Ele piscava com frequência, como se a fumaça o incomodasse, embora o vento levasse a fumaça para o lado oposto.
Hermes soltou o ar dos pulmões devagar.
— Quer conversar?
A mão de Magno parou. O graveto torceu num estalo seco com a pressão de seus dedos. O sorriso desapareceu instantaneamente, substituído por uma carranca dura.
— Não comece — disse num tom irritado e ameaçador.
Hermes ponderou por um momento, e seus olhos buscaram o céu.

Lá, as estrelas brilhavam em memórias. Ele viu Teseu, frio e imóvel na casa dos Kratos. Viu Agouri, que herdou o nome do irmão, dando-lhe as costas em Therma. Viu o rosto pesaroso de Ágata, sumindo com Circe para salvar os outros. Viu Apolo cair aos seus pés. Suspirou.
— Escute, Magno.
O gatuno estalou a língua.
— Eu já perdi muitos irmãos, e não sei se dou conta de perder mais um. — a confissão inesperada de Hermes fez o companheiro franzir o cenho. — Eu percebo a dor por trás desse sorriso forçado, e vou te ajudar com isso.
Ele se virou para o amigo após um instante de silêncio. Magno encarava o fogo como se não o escutasse.
— Mas preciso que tire essa máscara quando estiver comigo.
O rei dos ladrões não respondeu. Ele jogou os pedaços do graveto quebrado no fogo. As chamas subiram por um instante, iluminando seu rosto. Seus olhos estavam vermelhos e úmidos, refletindo o brilho laranja das brasas. Ele apertou os dentes, travando o maxilar para impedir qualquer som ou tremor.
O silêncio imperou por alguns instantes, antes que Hermes o quebrasse com um suspiro.
Ele se levantou, sacudindo a poeira das pernas. Caminhou até Magno e colocou a mão firme sobre o ombro do amigo. Sentiu a tensão nos músculos do ladrão.
— Não demore muito para dormir, irmão — disse Hermes, apertando o ombro dele levemente. — Temos uma estrada longa pela frente.
Hermes se afastou para o seu lado do acampamento e se deitou na areia fria, usando o braço como travesseiro. Magno permaneceu sentado, imóvel como uma das pedras ao redor, encarando o fogo que morria lentamente.
Horas depois, o silêncio da madrugada quebrou.
Um grito agudo atravessou o ar.
Hermes abriu os olhos no mesmo instante. Seus músculos contraíram por reflexo, a mão buscou o cabo da espada que descansava ao seu lado. Ele se sentou, o coração batendo num ritmo de combate.
— Socorro! — A voz gritou novamente. Era uma criança.
Pulou do chão alerta. Do outro lado do acampamento, Sêneca se sentara, confuso.
— Socorro! — O grito soou, mais uma vez.
— O que está havendo? — perguntou Sêneca com a voz rouca, coçando os olhos cansados.
— Não sei, mas não parece nada bom. — Respondeu Hermes.
— Socorro!
Hermes franziu a testa. Já era a quarta vez que o grito soava, e soava idêntico. O timbre era específico demais. Não era apenas uma criança qualquer; a voz tinha a mesma falha na entonação, o mesmo tom rouco de choro e a mesma distância. Parecia uma imitação.
Hermes olhou para o lado. O lugar onde Magno estava sentado estava vazio. A areia estava amassada, marcada por pegadas que indicavam a escuridão das ruínas mais para dentro da terra.
— Maldito idiota — rosnou Hermes.
Ele estendeu a mão para Sêneca. O velho a pegou de pronto e, sem que tivesse chances para fazer força, foi posto de pé num puxão, engasgando com o ar frio.
— Apresse-se — ordenou Hermes — Magno caiu na armadilha.
Sêneca não fez perguntas. A seriedade no rosto de Hermes transparecia tensão, foi o suficiente. Eles correram.
As pegadas de Magno formavam uma trilha irregular na areia fofa, subindo a duna e descendo em direção aos escombros de pedra calcária que formavam a periferia da antiga cidade. O terreno era traiçoeiro, cheio de buracos e pedras soltas.
Hermes corria na frente, ignorando o ardor nos pulmões. Ele viu um movimento à frente. Uma silhueta escura corria entre duas colunas quebradas.
— Magno! — gritou Hermes. O vento engoliu sua voz.
A figura não parou. Ela correu direto para um arco de pedra maciço, o que restara de um portão antigo, cujas pedras superiores pareciam prestes a desabar. Magno atravessou a sombra do arco e desapareceu.
Hermes acelerou. Ele ouviu os passos arrastados de Sêneca logo atrás dele.
O grito da criança soou mais uma vez, vindo de trás do arco.
Hermes não hesitou. Ele baixou a cabeça e atravessou a estrutura de pedra. No momento exato em que seus calcanhares cruzaram o limiar, um estrondo sacudiu o chão. A estrutura antiga gemeu e cedeu. Toneladas de calcário e rocha despencaram logo atrás dele, bloqueando o caminho de volta e separando-o de Sêneca.
O impacto levantou uma nuvem densa e sufocante de poeira branca. A visibilidade caiu a zero. Hermes cobriu o rosto com o antebraço, tossindo enquanto o pó entrava em sua boca e nariz, parado no meio da névoa de detritos, esperando a poeira baixar.
Foi então que ele sentiu.
O ar frio da madrugada litorânea esquentou, até dar lugar a um calor seco e intenso que envolveu sua pele. O cheiro de maresia e algas sumiu, substituído por um fedor forte de esterco de cavalo, suor azedo e cobre.
A poeira começou a assentar lentamente.
O silêncio das ruínas havia sumido. Um rugido constante, grave e violento, encheu seus ouvidos. Gritos de homens, o choque rítmico de metal contra metal e o som de milhares de pés batendo na terra dura.
Hermes baixou o braço e abriu os olhos.
A nuvem de poeira se dissipou completamente. O sol estava a pino, queimando no céu azul sem nuvens.
Hermes estava de pé no meio de uma planície vasta. Ao seu redor, fileiras infinitas de soldados gregos marchavam e corriam. Carruagens de guerra passavam levantando terra vermelha. O brilho de milhares de armaduras de bronze ofuscava a visão.
Ele olhou para si mesmo. Suas roupas de viagem esfarrapadas haviam sumido. E no lugar da couraça negra que recebera de presente de Tritão, vestia uma armadura peitoral dourada que reluzia sob o sol.
Hermes ergueu o rosto. À frente, imponentes e intactas, as muralhas inquebráveis de Tróia dominavam o horizonte, cercadas pela guerra.


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