Capítulo 98 | Miniatura
Gritos de mercadores anunciando peixes frescos, o ranger de rodas de carroças sobre paralelepípedos, risadas de marinheiros bêbados e o choro de gaivotas.
Magno piscou, atordoado. Ele estava parado no meio do cais de Therma.
Centenas de pessoas se espremiam nas docas. Estivadores carregavam caixas pesadas, empurrando-o para o lado com ombros suados e xingamentos impacientes.
— Saia do caminho, seu idiota! — gritou um marujo carregando um barril, passando por ele sem olhar para trás.
Magno cambaleou, tentando firmar os pés. Sua mão foi instintivamente para a cintura. As duas adagas de obsidiana ainda estavam lá, frias e sólidas.
Ele girou o corpo, olhando para todos os lados. Onde estava Hermes? Onde estava Sêneca?
O sol estava alto, queimando sua nuca. Tudo parecia real demais. O calor, o cheiro, o barulho.
Ele deu um passo à frente, tentando abrir caminho na multidão, tentando encontrar um rosto familiar ou um ponto de referência que fizesse sentido. Nada.
Foi quando sentiu o impacto.
Alguém esbarrou nele com força na altura da cintura.
— Opa! Desculpe, senhor! — Uma voz jovem e rápida murmurou.
Uma figura baixa, envolta em um manto encardido e largo demais para seu corpo, passou por ele de cabeça baixa, prestes a se misturar rapidamente ao fluxo de pessoas.
Magno parou e franziu o cenho.
— Seu ratinho… — rosnou com os dentes trincados.
Girou nos calcanhares e lançou a mão para a frente, agarrando o tecido grosso do capuz da figura errante que tentava se afastar. Com um puxão violento, ele trouxe o pequeno de volta.
— Me solta! — O garoto gritou, debatendo-se como um peixe fora d’água.
Magno ignorou os protestos. Ele agarrou a gola da túnica do menino com as duas mãos e o ergueu do chão, prensando-o contra uma pilha de caixotes de madeira.
O garoto chutou o ar e esticou suas mãos pequenas para arranhar os pulsos de Magno.

— Devolva. Agora. — A voz de Magno era fria, perigosa.
O garoto parou de se debater por um segundo, ofegante. Ele ergueu a cabeça e o capuz escorregou para trás.
Magno congelou.
O mundo ao seu redor — o barulho, o cheiro, a multidão — pareceu desaparecer.
O rosto que o encarava era sujo de fuligem. O cabelo preto estava emaranhado e comprido, caindo sobre os olhos.
Olhos castanhos, vivos, cheios de uma mistura selvagem de medo e uma astúcia arrogante que mal cabia naquele corpo pequeno.
Ele conhecia aquele rosto. Conhecia aquela cicatriz pequena no queixo, feita ao cair de um telhado aos sete anos. Conhecia o formato daquelas sobrancelhas franzidas. Das suas sobrancelhas franzidas.
Ele estava olhando para si mesmo. Com doze anos de idade.
O choque afrouxou o aperto de Magno por uma fração de segundo.
O garoto viu a abertura.
Ele não hesitou. Sua mão direita moveu-se num borrão para dentro do manto e saiu segurando a adaga de obsidiana que acabara de roubar.
Com um movimento fluido e cruel, o garoto cravou a lâmina no antebraço de Magno.
— ARGH!
A dor foi aguda e ardente. O sangue jorrou imediatamente, manchando a pele pálida do menino e a túnica de Magno.
Ele soltou o garoto, segurando o braço ferido.
O pequeno Magno caiu no chão com a agilidade de um gato mantendo a adaga negra ainda firme em sua mão, manchada de vermelho.
Ele olhou para o adulto com um sorriso de escárnio.
— Lento demais, velhote!
Antes que Magno pudesse reagir, o garoto girou e disparou para dentro da multidão, abrindo caminho entre as pernas dos mercadores com a facilidade de uma enguia.
— Volta aqui! — Magno gritou deixando a raiva superar o choque.
Ele pressionou o ferimento com a mão livre e correu atrás dele.
A perseguição começou.
O garoto era rápido. Ele saltou sobre uma banca de frutas, derrubando laranjas pelo chão para atrapalhar o perseguidor, e deslizou por baixo de uma carroça em movimento.
Magno não ficou para trás. Ele conhecia essas ruas. Ele conhecia os truques, porque ele mesmo os havia inventado.
Ele saltou a banca sem diminuir o passo, desviou das pessoas que xingavam, seus olhos fixos na cabeleira negra que ziguezagueava à frente.
Eles atravessaram o mercado, entraram no distrito dos tintureiros, onde lençóis coloridos pendurados em varais formavam um labirinto de tecidos.
O garoto rasgou um lençol vermelho com a adaga para passar. Magno atravessou o rasgo logo atrás deixando o pobre artesão confuso aos berros. Eles chegaram à parte mais antiga da cidade, onde as ruas se estreitavam e os prédios se inclinavam uns sobre os outros, bloqueando a luz do sol.
O garoto virou uma esquina fechada à direita. Magno derrapou no chão de terra batida e fez a curva segundos depois.
Ele parou. A viela estava vazia.
Era um beco sem saída. Três paredes altas de tijolos de barro cercavam o espaço, sem janelas, sem portas, sem caixotes para escalar. O garoto havia evaporado.
Magno respirou fundo sentindo as batidas aceleradas de seu peito arfante. O sangue escorria pelo seu braço, pingando no chão.
Olhou para as paredes. Para o lixo acumulado no canto. Para a disposição das sombras. Uma memória, antiga e empoeirada, estalou em sua mente. Ele conhecia aquele lugar. Não era apenas um beco. Caminhou lentamente até a parede do fundo. Seus dedos, ainda sujos de seu próprio sangue, tatearam os tijolos na altura do joelho.
Contou três tijolos a partir do canto esquerdo. Quatro a partir do chão.
O tijolo parecia sólido, igual a todos os outros.
Magno pressionou a borda. O tijolo se moveu.
Ele o puxou para fora. Atrás dele, não havia argamassa, apenas escuridão. Ele retirou mais dois tijolos adjacentes, revelando um buraco estreito e irregular, grande o suficiente apenas para uma criança ou um homem magro se arrastar.
Uma lufada de ar frio e com cheiro de mofo saiu da abertura.
Magno sentiu um nó na garganta. Ele se lembrava daquele cheiro.
Ele se deitou no chão sujo e se arrastou pela abertura.
O túnel era apertado. Seus ombros raspavam nas laterais de terra compactada.
Ele rastejou por alguns metros na escuridão total, guiado apenas pelo eco de suas memórias. Tudo parecia vívido demais, real demais.
Aos poucos, o túnel se alargou e a escuridão deu lugar a uma luz trêmula e alaranjada.
Ele saiu do buraco e se levantou, limpando a terra da roupa.
Estava em uma cisterna abandonada. O teto era alto e abobadado, sustentado por colunas de pedra grossas. O chão estava seco, coberto por tapetes velhos e roubados.
Tochas presas às colunas iluminavam o espaço.
E lá estavam eles.
No centro do covil, sentado em cima de um caixote virado como se fosse um trono, estava o Jovem Magno.
Ele girava a adaga de obsidiana entre os dedos, exibindo-a com orgulho, enquanto limpava o sangue da lâmina em sua clâmide esfarrapada.
— Eu disse que ele era lento — o garoto se gabava numa voz que ecoava na cisterna. — Nem viu de onde veio. Um turista idiota.
Ao redor dele, outras três crianças ouviam, fascinadas.
Havia um garoto gordinho de penteado lambido, com as bochechas sujas de farinha, roendo um pedaço de pão duro com voracidade. Tico.
Encostado em uma coluna, um garoto alto e magro como uma vara de cabelos espetados afiava uma faca de madeira com uma pedra, balançando a cabeça em aprovação. Vareta.
E sentada no chão, contando uma pilha de moedas de cobre, estava uma menina de pele bronzeada e cacheados castanhos e volumosos que caíam sobre os olhos. Lia.
Magno levou a mão ao peito, sentiu o ar faltar. Tico. Vareta. Lia.
Magno deu um passo para fora das sombras do túnel. Sua bota raspou no chão de pedra com um som áspero.
O riso do Jovem Magno morreu.
As crianças se viraram em uníssono.
O Jovem Magno pulou do caixote, segurando a adaga de forma defensiva, os olhos estreitados.

— Como você achou este lug… — ele começou a gritar, mas parou.
Ele olhou para o rosto do intruso.
Lia se levantou lentamente. As moedas caíram de seu colo, tinindo no chão.
Magno, o adulto, não disse nada. O sangue pingava de seu braço, manchando o chão daquele lugar que só existia em suas memórias mais dolorosas.
Ele franziu a sobrancelha violentamente, a dor física insignificante perto do peso do que via. Lágrimas molharam suas bochechas.

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