Capítulo 99 | Berço de Ouro
Sêneca abriu os olhos.
A primeira coisa que viu foi o teto. Alto, pintado de um branco imaculado, com afrescos delicados nas bordas representando videiras e pássaros.
Sentou-se e, para sua surpresa, o movimento não veio acompanhado do estalo habitual de suas articulações castigadas, nem da dor crônica em suas costas. Ele olhou para baixo. Estava deitado em uma cama. Um colchão de penas, macio, coberto por lençóis de linho tão branco que doía os olhos.
Sêneca levou as mãos ao rosto. Eram suas mãos, mas… diferentes.
As cicatrizes dos calos da picareta haviam desaparecido. A pele estava lisa, limpa, sem a fuligem que ele não conseguia lavar há vinte anos.
Ele se levantou. Seus pés tocaram um chão de mosaico frio e perfeito. Caminhou até a janela. A luz do sol da manhã inundava o quarto. Lá fora, um jardim interno florescia em cores vibrantes.
Uma fonte de mármore gorgolejava no centro, cercada por colunas jônicas que sustentavam uma varanda no segundo andar.
Ele conhecia aquele lugar.
Conhecia a curva daquele caminho de pedras. Conhecia a estátua de Atena no canto, com a lança quebrada na ponta.
— Você dormiu tarde de novo, meu filho.
A voz veio da porta. Doce, melodiosa, com um tom de repreensão carinhosa que fez o coração de Sêneca parar por um segundo.
Ele se virou lentamente, com medo de que o movimento quebrasse a ilusão.
Parada no umbral, segurando uma bandeja com frutas e pão fresco, estava ela.
Seus cabelos castanhos estavam presos em uma trança elaborada, sem um único fio branco. O rosto era jovem, corado de saúde, os olhos brilhando com uma vida que Sêneca vira se apagar lentamente em uma cama de palha suja.
— Mãe… — A palavra saiu de sua garganta como um caco de vidro.
Ela sorriu e entrou no quarto, colocando a bandeja sobre uma pequena mesa de madeira polida.
— Vamos, coma. Seu pai quer vê-lo na biblioteca antes do meio-dia. Ele disse que tem novos rolos de Ugarit e quer que você os organize de acordo com as rotas comerciais.
Sêneca ficou paralisado. “Seu pai”.
O homem que nunca o chamou de filho, apenas de “garoto” ou “servo”. O homem que o olhava com um misto de posse e vergonha, mas aqui, na voz dela, soava… normal. Como uma família.
Sêneca deu um passo trêmulo em direção a ela. Ele queria tocá-la, ter certeza de que ela era real, de que não era fumaça. Ele estendeu a mão e tocou o braço dela. Era quente. Sólido.
— Você… você está bem? — ele perguntou, a voz falhando. — A tosse… a febre…
Ela franziu a testa, confusa, tocando a própria testa com as costas da mão.
— Febre? Do que está falando, Sêneca? Eu nunca estive melhor.
Ela riu, um som cristalino que ele havia esquecido.
— Você deve ter tido um pesadelo ruim. Venha, sente-se. O figo está maduro do jeito que você gosta.
Sêneca sentou-se na beira da cama. Ele pegou um figo. A textura era real. O cheiro era real. Ele mordeu. O doce explodiu em sua boca, uma sensação tão intensa que lhe deu vontade de chorar. Olhou ao redor. Tudo era perfeito. O sol, a brisa, a comida. Era a vida que ele deveria ter tido. A vida que lhe foi roubada antes mesmo de começar.
Ele olhou para sua mãe, que agora dobrava algumas roupas com cuidado.
— Mãe… — ele começou, a voz trêmula. — Eu tive um sonho… um sonho muito longo. Eu estava em um lugar escuro. Frio. Você não estava lá.
Ela parou e olhou para ele com os olhos cheios de ternura.
— Foi apenas um sonho, meu amor. — Ela se aproximou e beijou sua testa. — Nada de ruim vai acontecer. Nós estamos seguros aqui. Seu pai cuida de nós.
Sêneca fechou os olhos ao sentir o beijo. Por um momento, ele quis acreditar. Quis esquecer a mina, o chicote, a fome, o frio. Quis esquecer Hermes, Magno, Ágata. Quis ficar ali, naquele quarto iluminado pelo sol, comendo figos e ouvindo a voz dela.
Mas então, um som veio do corredor. Passos. Passos pesados, autoritários. O som de sandálias de couro caro batendo contra o mosaico.
Sêneca abriu os olhos. O corpo de sua mãe enrijeceu sutilmente. O sorriso dela não desapareceu, mas ficou… fixo. Tenso.
— Ele está vindo — ela sussurrou, alisando a própria túnica nervosamente. — Comporte-se, Sêneca. Lembre-se do que conversamos. Não o olhe nos olhos, a menos que ele peça.
A frase foi um balde de água fria. A ilusão de normalidade trincou.
“Não o olhe nos olhos”. A regra do servo. A regra do bastardo.
A porta se abriu completamente.
Um homem alto entrou. Vestia uma túnica branca com bordas purpúreas, o sinal de sua nobreza e status.
Seu rosto era severo, a barba aparada com precisão. Ele nem olhou para a mulher. Seus olhos frios se fixaram em Sêneca.
— Ainda comendo? — A voz era grave, desprovida de afeto. — Não há lugar para preguiçosos nesta casa, garoto.
Sêneca se levantou imediatamente deixando que o reflexo de vinte anos de servidão falasse mais alto que sua vontade.
— Perdão, meu senhor.

O homem o observou com desgosto, como se Sêneca fosse uma mancha no tapete que ele não conseguia limpar.
— Levante-se. Tenho convidados hoje à noite. Quero que você sirva o vinho. E tente não ser desajeitado como da última vez.
Sêneca olhou para sua mãe. Ela estava de cabeça baixa, olhando para o chão, as mãos juntas na frente do corpo em um gesto de submissão silenciosa. A mulher vibrante de segundos atrás havia se transformado em uma estátua de obediência temerosa.
— Sim, meu senhor — Sêneca respondeu, sentindo um gosto amargo na boca que não era do figo.
O homem assentiu, satisfeito com a submissão, e se virou para sair.
Mas antes de cruzar a porta, ele parou. Ele olhou para a mulher.
— E você… — ele disse, a voz casual. — Disseram-me que a viram tossir ontem à noite. Espero que não esteja doente.
Sêneca gelou.
A mulher ergueu o rosto rapidamente, seus olhos mais abertos que o normal brilharam, assustados.
— Não, meu senhor. Foi apenas… poeira. Estou bem. Perfeitamente bem.
— Ótimo — disse o Eupátrida, frio. — De nada me vale um escravo doente.
Sem desperdiçar mais saliva, saiu, deixando aos dois no quarto o som de seus passos ecoantes pelo corredor.
O silêncio retornou ao quarto.
Sêneca olhou para sua mãe. Ela ainda olhava para a porta vazia, tremendo levemente.
Então, ela levou a mão à boca e tossiu.
Foi um som seco, rasgado.
Ela afastou a mão rapidamente, tentando esconder, mas Sêneca viu.
Uma pequena mancha vermelha, minúscula como a cabeça de um alfinete, no centro de sua palma.
— Mãe… — Sêneca sussurrou.
Ela fechou a mão, escondendo o sangue, e forçou um sorriso para ele. Um sorriso aterrorizado e frágil.
— Estou bem, Sêneca. É só poeira. Só poeira.
Sêneca sentiu o chão sob seus pés se tornar instável.
A luz do sol que entrava pela janela pareceu diminuir, como se uma nuvem tivesse passado na frente do astro.
As cores vibrantes do jardim lá fora pareceram desbotar um tom, tornando-se cinzentas.
Ele sabia o que viria a seguir. Ele já vivera aquilo.
A tosse pioraria. O homem ficaria impaciente. O médico viria, balançaria a cabeça e iria embora.
E então, o descarte.
Ele suspirou. Seus olhos inocentes e pesarosos se fecharam por um segundo. Quando se abriram novamente, tinham um aspecto sério, frio.
— Não é poeira — Sêneca disse com a voz firme, adulta, destoando daquele cenário.
Sua mãe olhou para ele, confusa com a mudança de tom.
— Sêneca?
Ele caminhou até ela e segurou suas mãos.
— Isso não é real — ele disse, mais para si mesmo do que para ela. — Você está morta. E eu… eu não sou mais um escravo.
A mulher recuou, assustada, puxando as mãos.
— Não diga essas coisas! Se seu pai ouvir…
— Ele não é meu pai! — Sêneca gritou, e o som de sua própria voz o assustou. — Ele é o meu dono! E ele vai te deixar morrer!
No momento em que ele gritou, a sala tremeu.
Uma rachadura fina apareceu na parede de mármore, correndo do teto ao chão.
A luz do sol lá fora piscou, como uma lâmpada falhando.
A mulher olhou para ele, e por um instante, seus olhos não eram os de sua mãe. Eram vazios, como poços sem fundo.
— Por que você quer estragar tudo? — ela perguntou com a voz mudada, distorcida, múltipla. — Estávamos felizes.

Sêneca recuou.
A sombra no canto do quarto cresceu, esticou-se de forma antinatural e rastejou pelo chão em direção a eles.
O cheiro de lavanda azedou, e em pouco, transformou-se no odor de remédios velhos e carne febril.

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