Índice de Capítulo

    O santuário do Sátiro era um lugar de paz enganosa. Por horas, o grupo se permitiu a frágil ilusão da segurança. O cheiro de carne de urso assando na fogueira era um perfume de vitória, e o som das crianças rindo pela primeira vez em semanas era uma melodia mais doce que qualquer canção de lira.

    Eles haviam sangrado, mas haviam sobrevivido. Haviam provado a si mesmos que a liberdade era possível.

    No entanto, para alguns, o banquete foi um evento sombrio. O alívio de terem o estômago cheio era ofuscado pela dor dos ferimentos e pela sombra do pacto que ainda pairava sobre eles. Entre os mais velhos, as conversas eram sussurros, os risos, inexistentes. A luz do sol poente pintava a cena com tons de laranja e sangue, e as sombras das árvores antigas se alongavam, engolindo lentamente o pequeno círculo de sobreviventes. 

    Theo não comia. Ele caminhava entre os feridos, sua presença um pilar de força silenciosa. Seu rosto, antes uma máscara de fúria, agora estava gravado com o peso da liderança. Callisto o acompanhava, movendo-se com sua eficiência habitual, examinando os cortes e contusões dos outros.

    — O arranhão de Silvo na coxa é profundo, mas limpo — ela disse a Theo em voz baixa, enquanto trocava a bandagem do rapaz, que fez uma careta de dor. — Mas a mordida em seu braço… — ela olhou para a atadura de Theo, a preocupação vincando sua testa. — A carne parece limpa, mas sem as ervas certas para afastar a febre, a podridão pode se instalar. 

    Theo assentiu com um suspiro profundo. Seu rosto estava tenso. — Não temos o suficiente para todos. As feridas de três outros homens também são graves. Precisamos seguir viagem logo, encontrar uma aldeia, um curandeiro…

    Aquelas palavras eram a verdade fria de sua situação. Haviam vencido a batalha, mas a jornada estava longe de acabar. Cada ferido era um elo fraco, um peso que atrasaria a travessia deles para o sul.

    Do outro lado da clareira, sentados um pouco afastados, Lycomedes e Silvo comiam em silêncio. Seus olhares, no entanto, não estavam na comida ou em seus companheiros feridos. Estavam fixos no Sátiro. 

    A criatura não se juntara ao banquete. Sentara-se em seu tronco de sempre, a flauta agora de lado, observando-os. Com a mão ossuda apoiada no queixo e um leve sorriso nos lábios, seus olhos de bode percorriam o acampamento. Ele não parecia um guia satisfeito. Parecia um carniceiro ansioso, avaliando a carcaça, esperando o momento certo para reclamar sua parte.

    A noite finalmente desceu, e as estrelas surgiram no céu. O Sátiro se levantou. O movimento foi tão deliberado que silenciou as poucas conversas que restavam. Theo ainda sussurrava com Callisto, planejando os próximos passos.

    — Agora que todos estão de barriga cheia — ele começou, a voz ressoando na clareira silenciosa —, chegou a hora de eu ter a minha parte do acordo.

    O grande Theo se virou com uma curiosidade desconfiada. O Sátiro sorria.

    — E o que você quer? — O homem musculoso perguntou, finalmente, se virando para a criatura.

    O Sátiro sorriu, um sorriso que não alcançava seus olhos. Ele caminhou até o centro do grupo, seus cascos afundando suavemente na terra, e o cheiro de ozônio e terra antiga pareceu se intensificar ao redor dele. 

    — O que eu quero? — ele repetiu, a voz um sussurro divertido. — Eu quero o que é justo. O que a natureza exige. Eu lhes dei um banquete. Em troca, quero me banquetear também

    Ele se virou e apontou um dedo longo e nodoso para Theo. — Vejam seu escudo. Forte. Corajoso. Um verdadeiro pilar. Mas olhem para o braço dele. 

    O Sátiro circulou Theo como um lobo avaliando um touro. 

    — Mutilado. Por quê? Porque enquanto ele enfrentava uma fera, precisava se preocupar com os mais lentos atrás dele. Sua força foi gasta, seu sangue foi derramado, não em um ato de pura conquista, mas em um ato de… sacrifício. — Ele cuspiu a última palavra como se fosse um veneno.

    Seu olhar então se moveu para Silvo, que se encolheu sob o peso da atenção da criatura. — E aquele garoto. Sua coragem foi uma tolice que quase lhe custou a perna. Um movimento impulsivo para salvar outro peso-morto, que apenas serviu para ferir mais um e enfraquecer o grupo como um todo.

    A filosofia do monstro foi exposta, nua e terrível em sua lógica brutal. Cada palavra era um espelho que refletia as verdades inconvenientes da batalha que eles mal haviam sobrevivido, transformando seus atos de heroísmo em provas de sua fraqueza coletiva. O alívio do banquete se transformou em cinzas na boca de todos.

    — Como é? — Theo perguntou, dando um passo à frente. Seu rosto mostrando os primeiros sinais de irritação. 

    O Sátiro caminho entre aqueles que estavam sentados, os feridos, as crianças, os idosos. Parou na frente da pequena garota que havia sido salva por Silvo. Ele sorriu. A mãe da garota a puxou para mais perto e a apertou contra seu peito em um gesto protetor.

    Ninguém ao redor parecia ter coragem para questionar ou se interpor entre eles. Algo os pressionava em seu lugar, algo os impedia de questionar o antigo, o desconhecido.

    A mão de Callisto se apertou contra o arco.

    — Os fracos são um fardo. São o peso que afoga o nadador, a doença que apodrece o rebanho. — ele fez uma pausa, o sorriso se alargando. — Eu quero a parte fraca de seu grupo. 

    Ele ergueu uma das mãos, seu indicador estendido, ossudo, como um galho. E então se aproximou, acariciando o rosto da garota que se apertava ainda mais com medo contra o seio da mãe.

    — E quero que vocês a entreguem.

    O horror desceu sobre o grupo como um sudário. Lycomedes se levantou de súbito.

    — HAAAAAAH!

    Um grito ecoou na clareira. Theo avançou, erguendo para o ar sua espada com o único braço bom que o restava.

    No mesmo instante, da borda da clareira, o som de um arco sendo tensionado ecoou. Callisto, rápida como um relâmpago, já tinha uma flecha apontada para o coração da criatura.

    CLANG

    No momento do choque, o Sátiro se virou, aparando o golpe de Theo com os chifres. Seus dedos que acariciavam o rosto da pequena se ergueram numa velocidade que desafiava os olhos de todos e agarraram a flecha de Callisto no ar.

    Theo rangia os dentes, seu braço tremendo com a força que fazia. O Sátiro nem vacilava. Seus olhos então se fecharam e sua boca também.

    Um arrepio percorreu o corpo de todos na clareira. Uma energia pesada pareceu se apoderar do ambiente, tudo se tornou mais sombrio. Theo sentiu seu aperto contra a espada vacilar e seus olhos se arregalaram.

    Quando o Sátiro abriu seus olhos novamente, eles estavam completamente negros. Um único ponto vermelho adornava a escuridão infinita que seu olhar havia se tornado. Seus pelos se tornaram mais escuros, sua pele mais pálida. Sua silhueta mais sombria. E ele, maior. Bem maior.

    A boca de Theo se abriu, sua força finalmente cessando na espada. O choque, o terror, o medo. Algo preenchia sua alma e, o que quer que fosse, gritava para que ele se afastasse.

    A criatura abriu a boca em um sorriso retorcido, igualmente negro e sombrio. Seus dentes já não eram visíveis no negrume infindo entre seus lábios. E então, sua voz soou, grossa, corrupta, pesada.

    — Tolos. 

    Com uma força antinatural, ele avançou em uma cabeçada com os chifres contra a espada de Theo, arremessando-o como um saco de grãos contra um grupo de pessoas que estava sentado próximo dali.

    — Não pensem que eu sou tão fácil de vencer quanto aquelas duas bestas. — A criatura falou, seu rosto tremia com espasmos que causavam incômodo.

    FWISHH

    Outra flecha cortou o ar da clareira.

    Em um movimento fluido, o Sátiro ergueu a mão que estava livre e praticamente redesenhou a trajetória do projétil com os dedos. Ele o carregou no ar em um aperto tão sutil que conservou a velocidade do projétil, redirecionando-o para a mulher que apertava a filha em seus braços.

    Um grito de horror ensurdeceu a todos ao redor. A flecha parou a milímetros do rosto da mulher.

    — É melhor pensarem bem antes de tentar outra idiotice dessas. — O Sátiro girou de forma nada natural sua cabeça na direção de que viera a flecha, seu sorriso retorcido se alargando.

    Ele levou a mão à cintura e tateou, procurando por algo.

    Theo se levantou, a mão no peito que subia e descia em um respirar profuso e irregular.

    Callisto estalou a língua, buscando outra flecha em sua aljava.

    O ar, antes cheio de esperança, agora estava pesado, sufocante. Lycomedes deu um passo à frente, o rosto pálido. — Nós nunca…

    — Vocês já concordaram. Firmaram seu pacto comigo. — o Sátiro o interrompeu. 

    E então, o Sátiro ergueu a mão e revelou algo. Um pequeno disco estranho, que pulsava com uma luz pálida e o arremessou contra o chão. E então, o mundo pesou. 

    No instante em que ele a revelou, todos sentiram. Um peso invisível em seus ombros, uma compulsão mágica em suas almas que lhes dizia que não havia escapatória. — E a Dama da Retribuição garante que os pactos sejam cumpridos.

    Theo deu um passo pesado, sofrido, e pegou sua espada do chão. Seu rosto baixo tentava se erguer para fitar a criatura, ele começou a cambalear, tentando avançar contra o perigo mais uma vez. Callisto puxou a corda de seu arco novamente, o rosto tão tenso quanto.

    O Sátiro estalou a língua. Uma força invisível e esmagadora desceu sobre a clareira. 

    Theo, em plena carga, parou como se tivesse batido contra um muro. O ar ao seu redor se tornou espesso, denso como pedra. Cada passo exigia um esforço titânico. Ele grunhiu, os músculos tremendo, tentando forçar seu caminho através da pressão que o esmagava. Ele deu mais um passo, e então seus joelhos cederam. Ele caiu, primeiro de joelhos, depois de bruços, o rosto pressionado contra a terra, a espada escapando de seus dedos impotentes.

    Do outro lado, Callisto gritou de esforço. O arco em suas mãos, feito de teixo forte, começou a vergar para dentro, estalando sob a pressão antinatural. Com um estalo agudo, que soou como um osso se partindo, o arco se quebrou, transformando-se em farpas em suas mãos. A força a derrubou no chão, ofegante, incapaz de se mover.

    O Sátiro riu, uma gargalhada alta e triunfante. Ele caminhou entre seus dois guerreiros mais fortes, agora imobilizados no chão, seus passos leves e livres da força que esmagava os outros. Ele pegou a espada de Theo e a jogou para o lado com desdém.

    Ele se postou sobre o corpo de Theo, que lutava apenas para respirar.

    — Agora… escolham. Entreguem-me os seus fracos, ou eu deixarei que esta pressão os transforme em pó, um por um.

    Do chão, a voz de Theo saiu, um murmúrio engasgado, mas feroz. — Leve… a mim…

    O Sátiro se agachou, o rosto perto do de Theo, o sorriso profano de sombras congelado na face. A escuridão absoluta em seus lábios que desafiavam qualquer um a observá-los. 

    — Não.

    Os olhos de Theo se arregalaram. Como ele poderia negar?

    Ele era a força bruta do grupo. A espada. O escudo. O que mais aquela criatura poderia querer?

    — Sua nobreza é irritante. E inútil. — Ele se levantou e se dirigiu ao resto do grupo, que tremia de terror. — O sacrifício dele não serve. Não sem a doce traição. Eu só aceitaria… se todos vocês concordassem. Se o entregassem por vontade própria para salvar suas próprias peles.

    Ele abriu os braços, um mestre de cerimônias em seu palco de desespero. — Então, o que me dizem? Vão me oferecer seu líder, seu Escudo, para se alimentarem de sua covardia? Ou vão morrer com ele? A escolha é de vocês.

    A ameaça final pairou no ar, mais pesada que a própria magia que os esmagava. O Sátiro esperava, deliciando-se com o silêncio, esperando ouvir as palavras de traição que seriam sua verdadeira recompensa. 

    — Aceitem… Gah- Digam- Digam que aceitam. — Theo pediu, seus olhos se erguiam do chão para seu grupo que o encarava recolhido, assustado.

    Seria essa a única saída?

    O grupo estava paralisado, preso entre a aniquilação e a desonra absoluta. No meio deles, os olhos de Lycomedes, antes cheios de pavor, começaram a brilhar com o brilho gélido de uma ideia terrível e desesperada.

    …………

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