Conto | Loucura no Mediterrâneo (1)
O sol era um martelo de bronze incandescente, e o Mar Mediterrâneo, sua bigorna de vidro. Por doze dias, o Estrela de Astarte esteve cativo, não por correntes ou recifes, mas por um inimigo muito mais antigo e indiferente: a ausência de vento. As velas, outrora orgulhosas e cheias, pendiam como mortalhas flácidas nos mastros, manchadas de sal e desespero. O mundo havia se tornado um círculo perfeito de azul ofuscante, e eles estavam presos em seu centro imóvel.
A esfera flamejante no céu não era um doador de vida, mas um carrasco implacável que subia a cada manhã com um único propósito: punir. Ele branqueava a madeira do convés até que se tornasse pálida como ossos, cozinhava o piche nas frestas até que ele borbulhasse em lágrimas negras e sugava a umidade dos lábios dos homens até que rachassem e sangrassem.
E havia o mar. Kenan nunca imaginara que poderia odiar a calmaria. Em suas viagens anteriores, ela era um respiro bem-vindo após a fúria das tempestades. Agora, era uma tortura. O mar não estava calmo; estava morto. Uma mortalha azul e vítrea esticada até um horizonte que nunca se aproximava, um deserto líquido cujo silêncio era mais ensurdecedor do que qualquer vendaval. A quietude era uma inimiga. Ela se infiltrava nos ouvidos, amplificava o som do próprio sangue pulsando, e tornava cada tosse, cada passo arrastado no convés, um evento sísmico.
A pressão a bordo do navio aumentava com o calor. A tripulação, antes um grupo coeso de homens do mar, agora era um amontoado de espectros irritadiços com olhos fundos e pele crestada. A inatividade forçada era um veneno. Músculos feitos para puxar cordas e lutar contra as ondas agora se atrofiavam sob o sol, e a energia que não era gasta em trabalho se convertia em uma raiva surda e latente.
Para Kenan, a rotina era a única âncora em um oceano de loucura iminente. Cada manhã, ele se agarrava a ela com a tenacidade de um homem que se afoga. Inspecionar as cordas, verificar a carga, polir o bronze do leme que ninguém tocava. Hoje, sua tarefa era a mais ingrata de todas: a distribuição da água.
Ele destravou o cadeado do barril principal, o som do metal rangendo alto demais no silêncio opressivo. O cheiro de água parada e madeira úmida subiu, um perfume que antes significava vida e que agora cheirava a tempo se esgotando. Com uma concha de cobre, ele media a ração diária, uma porção patética que mal umedecia a garganta, mas que era a diferença entre a sobrevivência e o motim.
— Menos! Você colocou menos que ontem! — A voz de Ithobaal, o imediato, foi um rosnado que cortou o ar parado. O homem era uma montanha de músculos curtidos pelo sol, e a inatividade forçada parecia fazê-lo inchar de uma fúria contida. Ele se ergueu de onde estava sentado, a sombra de seu corpo cobrindo Kenan por inteiro.
— A medida é a mesma, Ithobaal — respondeu Kenan, a voz calma, mas a mão firme na concha. Ele não desviou o olhar. Mostrar medo para um homem como Ithobaal era como sangrar perto de um tubarão. — Ordens do Capitão. As rações foram reduzidas.
— Reduzidas? — O imediato cuspiu no convés, o som sibilante. — Enquanto ele se esconde em sua cabine, nós cozinhamos sob este sol maldito! Eu quero a minha parte inteira!
Ele avançou, a mão grande se fechando para arrancar a concha de Kenan. Foi Malek, o marinheiro mais velho, quem interveio, seu corpo frágil se interpondo entre os dois. — Acalme-se, filho. O rapaz só cumpre ordens. A fúria não trará o vento.
— Saia da minha frente, velho inútil! — Ithobaal o empurrou, e Malek tropeçou, caindo pesadamente contra o mastro.
A porta da cabine do capitão se abriu com um estrondo. Baal-Eser surgiu, o rosto vermelho, a barba grisalha desalinhada. Havia uma fúria febril em seus olhos, a mesma que ele tentava conter em sua tripulação.
— JÁ CHEGA! — Sua voz, normalmente um trovão de comando, agora era o estalo agudo de um chicote. — Eu não quero confusão no meu barco! O homem que questionar minhas ordens conhecerá o fundo do mar ainda esta noite!
Ithobaal recuou, não por respeito, mas pela surpresa da explosão. O Capitão Baal-Eser nunca perdia a calma. Sua autoridade era uma rocha, uma que já começava a mostrar rachaduras. Eser olhou para o céu, um gesto que se tornara uma compulsão doentia, como se pudesse intimidar as nuvens a aparecerem. Não havia nada. Apenas o azul implacável.
A aparição do capitão não melhorou as coisas. Baal-Eser já não era o pilar de força que conheciam. Passava a maior parte do dia em sua cabine, mas quando emergia, seus olhos não viam a tripulação. Viam o céu. Ele o perscrutava com uma obsessão maníaca, como se tentasse decifrar uma linguagem secreta nas constelações invisíveis do dia, ou talvez, como se esperasse um sinal de deuses que haviam se esquecido deles.
A frustração do capitão era uma doença que se espalhava pelo navio, e a briga pela água era apenas um sintoma. O verdadeiro inimigo era o silêncio do céu e do mar.
A pressão aumentava a cada nascer do sol. A comida agora era insossa, o pão duro como pedra, o peixe seco, salgado demais. Mas era a sede que corroía a alma. Os homens se observavam, medindo cada gole, os olhos se tornando calculistas, hostis. Amizades forjadas em tempestades se desfaziam sob o calor da calmaria.
Kenan via tudo.
Ele via a forma como o cozinheiro, Zimri, afiava sua faca com mais frequência do que o necessário. Via a maneira como o Capitão passava horas debruçado sobre suas cartas de navegação, traçando e retraçando rotas inúteis. E via Malek, cada vez mais magro, cada vez mais silencioso, seus olhos fixos no horizonte com uma esperança que se parecia terrivelmente com loucura.
Aquela noite, o calor não cedeu. O convés do Estrela de Astarte estava banhado por uma luz lunar pálida que transformava o mar em um campo de obsidiana polida. O silêncio era profundo, quebrado apenas pelo choro distante de um golfinho e pelo rangido ocasional da madeira se contraindo.
Incapaz de dormir no ar sufocante do beliche, Kenan subiu ao convés.
As estrelas, incontáveis e nítidas no ar sem umidade, não eram faróis de esperança, mas cacos de gelo espalhados por um negrume infinito.
Foi quando ouviu. Um sussurro. Baixo, rítmico, desesperado. Não era o vento. O ar estava imóvel como a morte.
Ele seguiu o som, os pés descalços silenciosos na madeira. Na proa do navio, recortado contra a lua, estava Malek. O velho estava de joelhos, o corpo balançando para frente e para trás como em uma prece febril. E em sua mão, algo brilhava fracamente sob a luz das estrelas.

Kenan se aproximou, a curiosidade superando a cautela. — Malek?
O velho se sobressaltou, virando-se com os olhos arregalados. Ele tentou esconder o objeto, mas era tarde demais. Kenan viu. Era uma moeda. Escura, feita de um metal que parecia chumbo, e estranhamente pesada na forma como Malek a segurava.
— O que está fazendo? — perguntou Kenan, a voz baixa.
Malek olhou para os lados, como se as sombras pudessem ter ouvidos. Ele relaxou um pouco ao ver que era Kenan. O velho suspirou, um som trêmulo. — Rezando, rapaz. Rezando para qualquer deus que ainda ouça. Os de Astarte nos abandonaram.
Ele abriu a mão, revelando a moeda. De um lado, havia o relevo de um olho fechado, sereno e perturbador. Do outro, uma papoula em flor.
Kenan nunca vira uma moeda assim. Não era ouro, nem prata. Teve a sensação de que o metal escuro mais absorvia a luz da lua, do que a refletia. Algo nela o deixava desconfortável. — O que é isso?
— Um amuleto. — Malek confessou, a voz um fio. — Comprei em um mercado em Tiro, de um homem com olhos de serpente. Ele disse que era uma bênção de Hipnos, o antigo. Que traz sonhos tranquilos e atende aos desejos mais profundos. Eu… eu a comprei para garantir uma viagem segura. Para que o vento nunca nos faltasse.
Ele olhou para o mar imóvel, um sorriso amargo tocando seus lábios rachados. — Que ironia.
Kenan sentiu uma pontada de pena. O velho não era um louco, era apenas um homem desesperado se agarrando a um pedaço de metal. — Malek, isso é só… uma moeda. Não vai trazer o vento. Precisamos conservar nossas forças, não desperdiçá-las com…
— Você não entende! — O velho o interrompeu, a voz subitamente feroz, os olhos brilhando com uma intensidade febril. Ele apertou a moeda com força. — Os desejos mais profundos… a sede… o medo… Ele ouve! Ele tem que ouvir!
Ele se virou de volta para o mar, retomando seus sussurros desesperados, deixando Kenan sozinho com uma sensação de profundo desconforto. Não era a superstição do velho que o perturbava, mas a certeza absoluta em sua voz. Era como se Malek não estivesse rezando para a moeda, mas conversando com ela. E temia que, de alguma forma, ela estivesse respondendo.
O grito rasgou o silêncio da manhã seguinte como uma lâmina.
Não foi um grito de raiva ou dor. Foi um som de puro e absoluto terror, agudo e animal, que fez todos a bordo pularem de suas redes, os corações disparados. Kenan foi um dos primeiros a chegar ao convés principal, a adaga já em sua mão.
A cena era de caos. A tripulação formava um círculo ao redor da rede de Ithobaal. O imediato se debatia com uma fúria cega, os olhos arregalados, a espuma se formando nos cantos de sua boca. Ele apontava para o mar, para a água lisa e vazia.
— Ela estava aqui! — ele berrava, a voz rouca de pavor. — As escamas… negras como a noite! E os olhos! Pelos deuses, os olhos eram como tochas acesas no fundo do abismo!
O Capitão Baal-Eser tentava acalmá-lo, mas Ithobaal o empurrou. — Ela tentou me pegar! Os tentáculos… não, eram serpentes! Enrolaram-se na minha perna! Queriam me arrastar para a escuridão, para me afogar no silêncio!
Um dos marinheiros mais jovens riu, um som nervoso. — O sol finalmente cozinho seus miolos, Ithobaal.
A zombaria se espalhou, e logo a tensão deu lugar a risadas cruéis. A tripulação, aliviada por não haver uma ameaça real, usou o terror de Ithobaal como uma válvula de escape para sua própria frustração. Mas Kenan não riu.
Ele olhou para o imediato, para o suor que cobria seu corpo, para o tremor incontrolável de suas mãos. Aquilo não era a fantasia de um bêbado. Era o rescaldo de um terror genuíno. Seus olhos varreram a multidão e encontraram Malek, encolhido perto do mastro, tentando se fazer invisível. O velho estava pálido como um fantasma, e quando seus olhos encontraram os de Kenan, ele os desviou rapidamente, um brilho de culpa e medo em seu rosto.
A conexão era impossível, ilógica, mas estava lá. A prece desesperada. A moeda escura. E agora, o primeiro grito. O sol subia no horizonte, mas não trazia calor. Trazia apenas a promessa de mais um dia de calor sufocante e a certeza fria de que a loucura, como uma doença, havia finalmente embarcado no Estrela de Astarte. A semente do medo havia sido plantada.
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