Conto | Loucura no Mediterrâneo (2)
A noite que se seguiu ao grito de Ithobaal foi diferente. O medo, agora nomeado e ridicularizado, não desapareceu com o nascer do sol. Pelo contrário, ele se infiltrou na rotina da tripulação, um veneno silencioso. Os homens trabalhavam em silêncio, os olhos se movendo com uma rapidez nervosa, cada sombra alongada pelo sol poente, cada rangido da madeira, um motivo para sobressalto. As risadas haviam cessado. O silêncio opressivo da calmaria agora era preenchido por uma desconfiança mútua. Eles não temiam mais apenas a sede, temiam o sono.
Kenan foi um dos últimos a se deitar. Ele observou Malek, que se encolhera em sua rede em um canto afastado, um pária silencioso. O velho não rezava mais, mas Kenan via a forma como seus dedos se fechavam em torno de algo escondido em sua túnacirca, um gesto protetor e culpado. Quando o sono finalmente o venceu, não foi um refúgio, mas um portal.
Ele sonhou que não estava em sua rede, mas na de Ithobaal. Sentia o corpo grande e musculoso do imediato como se fosse o seu, a respiração pesada, difícil. Do lado de fora do navio, na água negra como piche, algo se movia. Não era uma serpente. Era mais antigo, uma forma de vida que não deveria existir sob a luz das estrelas. Tentáculos de pura escuridão, feitos não de carne, mas da própria ausência de luz, subiam pela lateral do casco, silenciosos e inexoráveis.
Kenan, no corpo de Ithobaal, tentou gritar, mas sua garganta estava paralisada pelo terror. Um dos tentáculos se ergueu acima da amurada, e na sua ponta, um olho se abriu, brilhoso de um vermelho carmesim. Ele sentiu o toque gelado em seu tornozelo e a força que o puxava para a beira da rede, para a escuridão…
Kenan acordou com um espasmo, o coração martelando. O suor frio cobria seu corpo. O sonho fora tão real que ele levou a mão à própria perna, esperando sentir a marca gelada. Não havia nada.
Respirou profundamente algumas vezes olhando de um lado para o outro para atestar se alguém o havia visto naquele susto. Ninguém estava por perto.
“O calor…”, ele sussurrou para si mesmo, tentando se agarrar a uma explicação lógica. “É apenas o calor e a fome.”
Ele não foi o único. Ao amanhecer, a atmosfera no convés era fúnebre. Ninguém mencionou o terror de Ithobaal, mas o assunto pairava no ar como uma névoa invisível. Foi Zimri, o cozinheiro, quem quebrou o tabu enquanto distribuía o pão endurecido.
— Acho que a loucura do Ithobaal passou pra mim… — ele murmurou, olhando para o mar vazio.
Um dos marinheiros riu nervosamente com o comentário — Será que não foi o tempo que passou conversando com os temperos?
Zimri resmungou algo irritado e então prosseguiu. — Tive um sonho esquisito. Havia algo na água. E um olho… um olho vermelho nos vigiando.
Um calafrio percorreu a espinha de Kenan. Ele olhou para Ithobaal, que estava sentado afastado, afiando uma faca com movimentos bruscos. O imediato ergueu o olhar ao ouvir as palavras de Zimri, uma centelha de validação sombria em seus olhos.
Um dos marinheiros empurrou rudemente Kenan que permanecera congelado em frente a Zimri após ouví-lo falar. Ele estendeu a mão para pegar um pão, seu rosto também mostrava certo incômodo.
— Eu também vi — disse com a voz baixa. — Não um olho, mas as cordas… pareciam vivas.
Um barulho de madeira se batendo chamou a atenção de todos. A porta da cabine se abrira.
O Capitão Baal-Eser, que ouvia a conversa de seu cômodo, interveio, a voz forçadamente firme. — Chega de histórias de fantasmas. O sol está cozinhando nossas mentes. Mantenham o foco no trabalho. O vento virá.
Mas suas palavras soaram ocas. Ele mesmo parecia assombrado. Ainda assim, a conversa pareceu cessar por aquele momento, a atenção de todos se dividiu entre as tarefas do barco. Ithobaal se levantou com sua faca em mãos e seguiu para os fundos do navio. Quando passou por Kenan, o garoto pensou tê-lo visto murmurar um perjúrio.
Não tinha certeza do motivo.
Kenan ainda mastigava seu pão duro quando viu o capitão parar na soleira de sua cabine. Ele segurava a porta e olhava para a proa do navio com os olhos semicerrados, não em raiva, mas numa suspeita profunda.
Baal-Eser se virou, percebendo os olhos curiosos de Kenan, e com um grunhido irritado de alguém que fora pego no flagra, bateu a porta da cabine violentamente. O rapaz piscou e tropeçou para trás um pouco assustado com a reação.
Seus olhos percorreram o barco e encontraram, na proa, o foco dos olhos desconfiados do capitão.
Malik.
…………
A lua, uma foice pálida no céu, mal iluminava o convés onde a paranoia se tornara a única lei. Ithobaal não dormia. Ele estava sentado, encostado no mastro, uma lança de pesca em seu colo, os olhos fixos na escuridão, caçando. Seu pesadelo não havia terminado quando ele acordou, pelo contrário. Em sua mente, os tentáculos ainda se contorciam sob o navio, esperando. E ele sabia, com a certeza febril de um homem no limite, que eles só desapareceriam quando a fonte de seu chamado fosse silenciada.
Ele viu Malek se esgueirar para fora do beliche. O velho não ia rezar. Ia ao barril de água, a sede superando seu medo da tripulação. Ithobaal, que o observava das sombras, enrijeceu. Em sua mente paranoica, a cena se transformou. A criatura havia enviado seu servo para envenenar a última fonte de vida.
Com um rugido que era mais animal do que humano, ele se levantou. — Bruxo! Longe da nossa água!
O ataque foi de uma velocidade brutal. Antes que Malek pudesse reagir, Ithobaal o atingiu com a haste da lança, derrubando-o. Malek caiu de costas, o ar expulso de seus pulmões, e antes que pudesse se arrastar para longe, Ithobaal o chutou violentamente, prensando-o contra a amurada. O velho gritou, um som agudo de dor e terror. Ithobaal ergueu a lança, a ponta de bronze farpado mirando o coração de Malek.

Kenan, despertado pelo grito, foi o primeiro a chegar. Ele se jogou contra Ithobaal, tentando desviar o golpe. O corpo do imediato era como uma muralha de pedra. — Ele vai nos matar a todos! A maldição está nele! — Ithobaal berrava, os olhos injetados de sangue, a sanidade completamente perdida.
O Capitão Baal-Eser chegou um segundo depois, a espada curta em punho. Juntos, ele e Kenan conseguiram arrastar o imediato para longe do corpo trêmulo de Malek.
A ordem estava desfeita.
A tripulação, que correra para o convés, não era mais uma unidade. Eram facções. Alguns gritavam para que Ithobaal terminasse o serviço, seus rostos contorcidos pelo medo e pela superstição. Outros, vendo a loucura nos olhos do imediato, recuavam, convencidos de que o sol havia finalmente quebrado sua mente. A autoridade do Capitão se evaporou. Suas ordens para que se acalmassem eram apenas mais um ruído na cacofonia de medo.
Ele chamou por Kenan, o único que ainda parecia não ter se entregue aos delírios do mar. O garoto atendeu e juntos amarraram as mãos de Ithobaal, trancando-o em um depósito de velas, não como uma punição, mas como se estivesse enjaulando um animal doente. Malek foi levado para sua rede, tremendo e chorando
A influência da moeda, alimentada por aquela explosão de violência e medo, cresceu exponencialmente. O terror não esperava mais pelo sono. Ele começou a caminhar pelo convés à luz do dia.
As alucinações eram sutis no início, truques de luz e sombra que podiam ser descartados. Gad, um marinheiro de meia-idade que perdera a esposa para uma febre antes de partir, estava remendando uma vela. O sol da tarde batia forte. Ele piscou, o suor escorrendo em seus olhos, e quando os abriu, ele a viu. Por um único e terrível instante, o rosto de sua falecida esposa, pálido e triste, pareceu pressionado contra o outro lado da lona, a boca aberta em um grito silencioso. Gad soltou a agulha como se ela queimasse e recuou, o rosto uma máscara de horror. Quando olhou de novo, era apenas a lona gasta, balançando suavemente. Ele não disse nada a ninguém. A dor era sua, e agora, a loucura também.
Mais tarde, Zimri, o cozinheiro, desceu ao porão escuro para pegar mais peixe seco. Voltou segundos depois, pálido e tremendo. — O que foi? — perguntou Kenan. — A carga… — ele engasgou, os olhos fixos na escotilha escura. — Ouvi um arrastar. E um sussurro. Juro que ouvi um sussurro. Ninguém se ofereceu para verificar. O porão se tornou um território proibido.
Kenan, o último bastião da lógica, sentiu sua própria mente começar a ceder. Enquanto verificava a âncora, olhou para as grossas cordas enroladas no convés. Por uma fração de segundo, elas pareceram se contorcer, se ondular, como serpentes preguiçosas sob o sol. Ele fechou os olhos com força, esfregando-os. Quando olhou novamente, eram apenas cordas. Inertes. Mas a imagem, a dúvida, permaneceu. ‘É o sol’, disse a si mesmo, mas a desculpa soou fraca até para seus próprios ouvidos. Ele tentou racionalizar — o calor, a desidratação, o estresse… Mas no fundo de sua alma, uma verdade fria se instalava: a lógica havia abandonado aquele navio.
A loucura agora tinha geografia. O porão se tornou um território proibido. As velas, assombradas. O mar, um abismo de monstros. O próprio navio estava se tornando o inimigo. O pesadelo de Ithobaal havia vazado para a sua realidade.
O sol começou a se pôr, pintando o céu e o mar morto com tons de sangue e púrpura. Ninguém queria que a noite chegasse. Eles se sentaram em silêncio, cada homem isolado em sua ilha de terror, observando as sombras se alongarem e se perguntando quais pesadelos, e de quem, eles seriam forçados a viver naquela noite. A calmaria não era mais do mar. Era a calmaria de um túmulo.
…………
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