Índice de Capítulo

    O dia que se seguiu ao ataque foi um poço de silêncio. A tripulação, fraturada e assustada, movia-se pelo navio como fantasmas, cada homem um prisioneiro em sua própria ilha de medo. Ithobaal, trancado no depósito de velas, alternava entre gritos de fúria e um silêncio catatônico que era quase mais perturbador.

    Malek não saía de sua rede, e aqueles que passavam por perto juravam ouvir o zumbido baixo de uma prece incessante. A loucura não havia se dissipado; apenas se recolhera para as sombras, para fermentar.

    Kenan sentiu a mudança mais profunda no Capitão Baal-Eser. A fúria febril havia desaparecido, substituída por uma calma gélida e antinatural que arrepiava a espinha. Seus olhos não buscavam mais o céu com desespero, mas com a certeza serena de um homem que encontrara uma resposta terrível. Ele começou a passar mais tempo com um pequeno grupo de marinheiros — os mais supersticiososos, os mais quebrados pela calmaria. Kenan os via reunidos em cantos escuros do convés, as cabeças juntas, as vozes não mais altas que sussurros carregados pelo ar salgado. Não pareciam estar planejando um motim; pareciam estar participando de um rito.

    Kenan tentava se agarrar à lógica. Talvez o Capitão estivesse apenas tentando criar um círculo de confiança, reforçar a moral com os poucos homens que ainda o ouviam. Mas a forma como eles se calavam quando Kenan se aproximava, a maneira como seus olhares o seguiam com uma mistura de pena e fanatismo, dizia o contrário.

    Na terceira noite após o ataque a Malek, a fome e sede inquietante não deixaram Kenan dormir. Ele caminhava pelo convés escuro quando viu uma fresta de luz vazando da cabine do capitão. E ouviu os sussurros. Ele se aproximou, o coração martelando contra as costelas, e encostou o ouvido na madeira áspera. Eram as mesmas vozes do convés.

    — …devemos ser rápidos… — era a voz do Capitão. — O mar está faminto.

    — Mas… sangue no convés… é má sorte, Capitão — hesitou outra voz.

    — Não é má sorte. A entidade se manifestou em meus sonhos novamente — a voz do Capitão soou baixa e reverente, como a de um sacerdote. — Ela está faminta. A calmaria é a sua ira. O mar exige um tributo para nos libertar.

    — Um sacrifício… — sussurrou a voz de outro homem, cheia de pavor e fascínio.

    — Uma purificação.. — corrigiu o Capitão. — Há um vaso impuro entre nós. Um homem que já foi tocado pelas trevas. Sua alma já pertence às profundezas. Nós só iremos… nos livrar do que já não é nosso.

    Kenan sentiu o sangue gelar. Eles estavam falando de Ithobaal.

    — À meia-noite — continuou Baal-Eser, a voz agora um comando gélido —, quando a lua estiver em seu ponto mais fraco, faremos a oferenda. Levaremos o homem amarrado à proa e o entregaremos ao silêncio do mar. Seu sangue aplacará a fome. E o vento… o vento retornará.

    Um coro de “sim, Capitão” abafado veio de dentro. 

    Kenan recuou, o corpo tremendo. Não era um plano de assassinato nascido da raiva. Era um sacrifício humano, justificado por uma teologia demente nascida do desespero. Ele voltou para sua rede, a mente em um turbilhão de pânico. O que poderia fazer? Denunciá-los? Para quem? A tripulação estava dividida entre o medo e a loucura. Ele estava sozinho, testemunha de uma conspiração nascida do fundo do mar.

    Ele se encolheu na escuridão, prisioneiro de um segredo terrível, enquanto as horas se arrastavam lentamente.

    …………

    A meia-noite chegou com uma precisão silenciosa e macabra. Quatro dos seguidores do Capitão emergiram do depósito, arrastando um Ithobaal amordaçado que se debatia com a força de um touro. A lua era uma foice pálida no céu, lançando uma luz doentia sobre a cena. Eles o arrastaram pela madeira do convés.

    Chegaram à proa. O Capitão Baal-Eser os esperava, uma faca de sacrifício, normalmente usada para o peixe, brilhando em sua mão. — O mar te chama, filho amaldiçoado — Baal-Eser entoou, a voz assustadoramente calma. — Aceite sua honra e dedique aos seus queridos suas últimas palavras.

    Eles removeram a mordaça da boca de Ithobaal, talvez para que a entidade pudesse ouvir seu lamento final. Mas o que saiu não foram lamúrias temerosas, e sim um rugido de pura e lúcida fúria.

    — LOUCOS! POSSUÍDOS! — ele berrou, a voz rasgando o silêncio da noite. — O demônio dos mares bebe a alma de vocês e lhes promete vento! Acordem, seus tolos, antes que ele nos afogue a todos!

    O grito foi o alarme que Kenan precisava. E ele não foi o único a ouvi-lo. Portas se abriram. Marinheiros, despertados pelo tumulto, correram para o convés, seus rostos uma mistura de sono e confusão. Eles viram a cena na proa, e um murmúrio de horror se espalhou pela multidão.

    Kenan se enfiou no meio deles, o coração aos pulos. — PAREM! — ele gritou, a voz mais alta e firme do que ele esperava. — Em nome dos deuses, o que estão fazendo?!

    O Capitão Baal-Eser virou-se lentamente, a faca ainda em punho. Não havia surpresa em seu rosto, apenas o desapontamento de um sumo sacerdote cujo ritual sagrado fora interrompido por hereges. — Voltem para suas redes — ele ordenou, a voz perigosamente calma. — Vocês vão entender e me agradecer amanhã.

    — Agradecer? Por matar um de nossos homens na calada da noite?! — gritou um dos marinheiros da multidão. 

    O rosto de Baal-Eser se contorceu em uma máscara de fúria piedosa. — EU SOU O CAPITÃO! Este navio e cada alma nele pertencem a mim e ao deus que sirvo! Vocês obedecerão, ou se juntarão a ele na oferenda!

    A liderança do Capitão, o último fio que mantinha a ordem naquele navio, se partiu. Zimri, o cozinheiro, que até então permanecera em silêncio, deu um passo à frente da multidão, a faca de cozinha que nunca deixava para trás agora firmemente em sua mão. — Solte-o, Capitão — disse ele, a voz baixa, mas ressoando com uma finalidade mortal. — Acabou.

    Por um instante, o tempo pareceu congelar. Então, com um grito de fúria blasfema, Baal-Eser se lançou, não contra Ithobaal, mas contra Zimri, o primeiro a desafiar abertamente sua nova e terrível fé. A faca de sacrifício desceu e Zimri, o cozinheiro, aparou o golpe com sua própria lâmina em um clangor agudo.

    Eles trocaram alguns cortes desajeitados quando Zimri, que não era um grande lutador, finalmente fraquejou. A faca de cozinha com certeza não fora projetada para aparar golpes de uma adaga como a do capitão.

    A faca de sacrifício não desceu; ela mergulhou, encontrando o peito de Zimri com um som úmido e doentio.

    O cozinheiro congelou, o olhar de desafio em seu rosto sendo substituído por uma surpresa chocada. Ele olhou para baixo, para o cabo da faca que brotava de sua túnica, e então de volta para o Capitão. Sua boca se abriu, mas apenas um gorgolejo de sangue escapou. Ele caiu de joelhos, e então tombou para o lado, imóvel.

    Um silêncio absoluto e mortal caiu sobre o convés. O som do corpo de Zimri batendo na madeira foi a única coisa ouvida por um segundo.

    Então, a represa se rompeu.

    A tripulação, que até então era uma multidão de testemunhas horrorizadas, explodiu.

    — ASSASSINO! — O grito veio de um dos marinheiros, um som rasgado de puro horror e ódio.

    O convés se transformou em um inferno de sombras dançantes. Homens que haviam compartilhado pão e sal por meses agora se atacavam com facas, arpões e qualquer pedaço de madeira que pudessem arrancar. Não havia mais facções claras; era um caos de todos contra todos, um redemoinho de medo e fúria onde cada sombra era um inimigo. Os seguidores do Capitão lutavam com um fervor fanático, os olhos brilhando com a luz de sua fé demente. Os outros lutavam por pura sobrevivência.

    No meio da carnificina, uma lamparina de óleo, derrubada por um corpo que caía, rolou pelo convés, deixando um rastro de fogo. A chama lambeu uma corda seca, subiu por uma vela remendada e, em segundos, o mastro principal se tornou uma tocha crepitante que lançava uma luz alaranjada e infernal sobre a matança. O navio estava queimando.

    Kenan, que havia sido jogado para o lado no início da refrega, observava o pandemônio, o horror paralisando seus membros. Gritos de dor se misturavam ao som crepitante da madeira em chamas. Ele viu o Capitão, o rosto iluminado pelo fogo, lutar como um demônio, os lábios se movendo em uma prece silenciosa enquanto sua faca abria um sulco vermelho no peito de um de seus próprios homens.

    Foi então que a clareza o atingiu, fria e absoluta em meio ao calor do incêndio. Um sacrifício em massa. A entidade do mar não queria apenas uma alma; queria todas. E a moeda, a origem de toda aquela insanidade… a moeda era o seu representante no navio.

    “Malek”, o pensamento foi um raio. O velho não estava ali.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota