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    Kenan, que havia sido jogado para o lado no início da refrega, observava o pandemônio, o horror paralisando seus membros. Gritos de dor se misturavam ao som crepitante da madeira em chamas. Ele viu o Capitão, o rosto iluminado pelo fogo, lutar como um demônio, os lábios se movendo em uma prece silenciosa enquanto sua faca abria um sulco vermelho no peito de um de seus próprios homens.

    Foi então que a clareza o atingiu, fria e absoluta em meio ao calor do incêndio. Um sacrifício em massa. A entidade do mar não queria apenas uma alma; queria todas. E a moeda, a origem de toda aquela insanidade… a moeda era o seu representante no navio.

    “Malek”, o pensamento foi um raio. O velho não estava ali.

    Com um propósito renovado nascido do desespero, Kenan se levantou. Ele não era mais um espectador. Era o único que sabia a verdade. Ignorando a luta, ele correu para a escotilha que levava aos beliches, o calor do convés queimando suas costas.

    Ele encontrou Malek no compartimento escuro, não encolhido de medo, mas sentado calmamente em sua rede, embalado pelo balanço do navio em chamas. Ele segurava a moeda escura com as duas mãos, e em seu rosto, sob a luz alaranjada que vazava pelas frestas, havia um sorriso sereno, extasiado.

    — Deite-se rapaz. — ele sussurrou, a voz cheia de uma alegria medonha. — Os gritos… a purificação… A oferenda está sendo aceita! O deus do mar está satisfeito! Tudo isso vai acabar.

    — Malek, me dê a moeda! — Kenan gritou, a fumaça começando a encher o pequeno espaço. — Ela não está os satisfazendo, está os matando! Está matando a todos nós!

    — Herege! — O rosto de Malek se contorceu em fúria. A serenidade deu lugar à fúria de um devoto cuja fé era questionada. — Você quer impedir o milagre! Quer nos condenar a este mar de silêncio para sempre!

    O rosto do jovem se contorceu em desgosto, como quem vê um cão leproso, condenado. Seus olhos se focaram na moeda e ele avançou um passo.

    — Velho louco.

    Malek grunhiu como um animal se levantou, surpreendentemente ágil para sua idade, e se jogou contra Kenan. A luta foi desesperada e patética. Não era a batalha de guerreiros no convés, mas o embate de duas fés: a fé de Malek na salvação através do sangue e a fé desesperada de Kenan na razão. Kenan, mais forte e mais jovem, conseguiu imobilizar o velho contra a parede, a fumaça os sufocando. Com o coração partido, ele arrancou a moeda da mão de Malek. O metal estava estranhamente gelado.

    O velho caiu no chão de forma patética, chorando e resmungando desculpas para si mesmo. Ele se encolheu com o rosto entre os joelhos.

    Com o artefato em mãos, Kenan correu de volta para o convés. O mundo era um borrão de fogo, fumaça e silhuetas que lutavam e morriam. Ele tossia, os pulmões ardendo. Seu único objetivo era a amurada, a poucos metros de distância. A salvação estava ali. A um arremesso de distância.

    Ele estava quase lá quando uma figura emergiu da fumaça, os olhos brilhando com loucura sob a luz do fogo. Era Ithobaal, livre de suas amarras, a lança de pesca em sua mão. — Você… — o imediato rosnou, o rosto uma máscara de sangue e fuligem. — Você estava com ele. Você é um deles.

    Antes que Kenan pudesse responder, a lança avançou. Ele sentiu o impacto, um choque frio e terrível, e olhou para baixo. A ponta de bronze farpado havia atravessado seu peito, saindo limpa por suas costas. A dor veio um segundo depois, branca e ofuscante.

    — Morra… monstro do mar… — Ithobaal sussurrou, os olhos vazios, antes de chutá-lo com força no peito.

    Kenan foi arremessado para trás, seu corpo batendo contra a amurada antes de tombar para o lado, para o abraço frio e escuro do mar.

    A queda foi um silêncio abençoado. O som do fogo e dos gritos desapareceu, substituído pelo som suave de seu corpo cortando a água. O choque gelado do mar foi a última sensação que sua pele sentiu. A moeda de Hipnos, pesada como a culpa, escapou de seus dedos que se afrouxavam.

    Enquanto afundava, ele olhou para cima uma última vez. Viu o Estrela de Astarte, não mais um navio, mas uma pira funerária flutuante, uma ferida de fogo e fumaça contra o céu estrelado.

    Então, ele olhou para baixo. E o viu.

    Surgindo das profundezas impenetráveis, grande demais para que sua mente pudesse compreender, estava a criatura de seus pesmares. Não era uma alucinação. Era real. Tentáculos de pura escuridão, vastos como colinas, se desenrolavam, e no centro daquela massa de poder antigo, dois dois pontos de luz carmesim, do tamanho de luas, se fixaram nele. 

    Eram olhos? Ou apenas o último truque de uma mente que se afogava, inundada pelo poder da moeda que caía ao seu lado?

    Sua última percepção, antes que a escuridão o tomasse por completo, foi a de um tentáculo sombrio se movendo lentamente para cima, em sua direção, e a última consciência de Kenan não foi uma certeza, mas uma pergunta, um sussurro perdido na fronteira entre a ilusão e a aniquilação.

    Era… real…?

    A escuridão o tomou, levando consigo a resposta para sempre.

    …………

    O primeiro som que registrou foi o silêncio.

    Um silêncio pesado, absoluto, que parecia ter esmagado os gritos e o clamor do aço da noite anterior. Malek abriu os olhos. A luz que entrava pelas frestas do beliche não era a alaranjada e frenética do fogo, mas o cinza pálido e melancólico de um amanhecer iminente. O ar estava parado, espesso com o cheiro acre de madeira queimada e algo mais, um odor metálico e adocicado que sua mente, anestesiada, se recusava a nomear.

    Ele se sentou, o corpo dolorido, mas a alma estranhamente leve. Sentia-se esvaziado, como um recipiente que fora preenchido até a borda e depois derramado.

    Com uma lentidão ritualística, ele se levantou e caminhou em direção à luz. Cada passo era deliberado, como o de alguém que acaba de sair de um coma de meses.

    Ao emergir no convés, ele parou. O mundo estava quieto. Uma névoa fina e cinzenta, a irmã doentia da fumaça, ainda pairava no ar, beijando a superfície de um mar que continuava liso e imóvel como vidro. O Estrela de Astarte era um cemitério flutuante.

    O mastro principal era um esqueleto carbonizado, uma única lasca de madeira negra apontando para o céu como um dedo acusador. As velas, antes orgulhosas, eram trapos enegrecidos que pendiam em silêncio. O convés, antes branco pelo sal, agora era uma tela grotesca, manchado por grandes poças escuras, quase negras sob a luz fraca, e por sulcos de fuligem onde o fogo havia dançado sua valsa final.

    E havia os corpos. Vultos imóveis espalhados pela madeira, amontoados em posições impossíveis. Eram como as oferendas deixadas em um templo esquecido.

    Malek começou a caminhar, os pés descalços deslizando silenciosamente pela superfície úmida e pegajosa. Ele não sentia horror. Sentia uma paz profunda e terrível.

    Ele passou pelo corpo do Capitão Baal-Eser, caído perto do leme estilhaçado, os olhos abertos e vazios, ainda buscando respostas em um céu que não respondera às suas preces, mas sim às de Malek. Passou por Ithobaal, a montanha de homem finalmente imóvel, a lança de pesca ainda cravada no peito de outro marinheiro. Eram peões, sacrifícios necessários no grande jogo da fé. Ele procurou por Kenan, mas o corpo do rapaz cético não estava em lugar nenhum.

    Seu caminho o levou, como um peregrino, até a proa do navio. O lugar onde o ritual deveria ter acontecido. Ali, a destruição era menor. Ele se virou de costas para a morte e encarou o horizonte.

    O céu começava a clarear no leste, uma ferida de um rosa pálido se abrindo na escuridão. O silêncio era total. Ele esperou, o coração calmo, a respiração regular.

    E então, ele sentiu.

    Primeiro, na bochecha. Um toque. Tão sutil que poderia ter sido uma ilusão, um fantasma. Mas então veio de novo, um carinho persistente e inconfundível. Uma brisa.

    Seus olhos, que estavam fechados em prece, se abriram lentamente. Ele ouviu. Um farfalhar suave. O trapo carbonizado que restara da vela principal se moveu, balançando levemente. A corda de um dos mastros bateu suavemente contra a madeira, um som que ele não ouvia há semanas.

    Ele olhou para o mar. E lá, na superfície antes perfeitamente lisa, uma pequena ondulação se formou, depois outra. A pele do oceano estava viva novamente.

    O vento voltou.

    Malek ergueu o rosto para a brisa que se fortalecia, um sopro de vida em um navio de morte. Ele olhou por cima do ombro para os corpos de seus companheiros, as lágrimas escorreram por seu rosto sujo, mas não eram lágrimas de tristeza. Eram de pura, extasiada alegria.

    Ele abriu os braços, abraçando o vento, o mar, o céu. O cheiro de sal e liberdade encheu seus pulmões.

    Ignorando o cemitério às suas costas, ele sorriu. Um sorriso puro, devoto e completamente insano, de um homem cuja fé terrível havia sido, a seus olhos, recompensada.

    Sua prece fora atendida.

    FIM

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