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    O som da fechadura de ferro girando em minha cela foi o estopim. O ar, antes parado e fétido, moveu-se com a abertura da porta, trazendo consigo um cheiro que fez os pelos de meus braços se arrepiarem. Era o odor do incenso do escritório de meu mestre, mas mais forte, mais denso, um perfume adocicado e doentio que cheirava a rituais e finalidade.

    Mãos rudes me agarraram, me colocando de pé. Eu não lutei. Minha resistência havia se esvaído nos dias de vigília e planejamento silencioso. Eu era uma folha em um rio, sendo carregada para a cachoeira. Fui guiado para fora do corredor familiar de pedra úmida e para uma parte da propriedade que eu nunca havia “visto” antes. O chão sob meus pés mudou; tornou-se mármore liso e frio, e o eco de nossos passos era diferente, mais nítido, mais vazio.

    A câmara para onde me levaram era fria. Um frio que não vinha da pedra, mas de um silêncio profundo e reverente, como o de um templo esquecido. Fui forçado a me deitar sobre uma superfície dura e lisa. Uma mesa. Um altar. Senti o toque de amarras de couro sendo apertadas em meus pulsos e tornozelos. Eu estava preso. O sacrifício estava pronto.

    — Hoje, pequeno — a voz de meu mestre soou, não ao meu lado, mas de algum lugar mais distante na sala. Havia um eco nela. Um eco de excitação febril. — Nós dois teremos nossas respostas. Conheceremos a face do divino.

    Com o que restava de minha força, com o coração martelando contra as costelas como um pássaro enjaulado, eu tentei uma última vez. Não por esperança, mas por um último e desesperado ato de desafio. — Eu sei o que você quer… — minha voz saiu, um sussurro trêmulo e rouco. — Falar com os deuses. Mas eles não estão ouvindo. Eles se calaram. Todo esse sofrimento… toda essa dor… é por nada.

    Ouvi o som suave de seus passos no mármore, se aproximando. Senti sua presença pairando sobre mim. — Por nada? — ele perguntou, e em sua voz não havia raiva, mas uma piedade triste e condescendente. — Você é uma criança. Vê a dor como um castigo. Eu a vejo como uma purificação. O ouro precisa do fogo para se livrar de suas impurezas. Uma alma precisa da agonia para se livrar do mundo. Você não está sofrendo, pequeno. Está se tornando digno.

    Eu entendi. Não havia como alcançá-lo. Sua loucura era uma fortaleza lógica que ele mesmo havia criado para se isolar da realidade. Tudo tinha significado para ele. Significado e propósito.

    Meu mestre não era apenas um homem louco ou lunático. Sua mente era a de um fiel devotado e cheio de certezas.

    Um bolo se formou em minha garganta, como quando sentia vontade de chorar e não podia. A sensação de aperto se solidificou quando senti o toque de seus dedos em minha mão esquerda, posicionando-a, esticando meus dedos. Ouvi o clique metálico de uma pequena caixa sendo aberta, e o som de instrumentos finos sendo postos sobre a pedra ao lado de minha cabeça.

    A incerteza do que estava prestes a acontecer me deixava atônito, aflito. Eu tremi.

    — Sua resistência final deve ser quebrada — ele sussurrou, mais para si mesmo do que para mim. — A conexão com a dor da carne é a última corrente que te prende a este mundo mudo. Vamos cortá-la.

    Senti a ponta fria e afiada de algo que parecia ser uma agulha metálica traçando a borda de minha unha. O ar ficou preso em meus pulmões. A antecipação da dor era uma tortura própria. E então, sem qualquer aviso, ele a forçou para dentro.

    A dor não foi como um golpe. Foi como o nascimento de um sol. Uma luz branca e ofuscante explodiu em minha mente, irradiando de um único ponto em meu dedo. Um rio de fogo líquido subiu pelo meu braço, incendiando cada nervo, cada fibra. Meu corpo se arqueou contra as amarras, um espasmo violento e silencioso, a boca aberta em um grito que não encontrou som.

    “Não…” pensei, em meio à agonia. “Isso não faz sentido. É apenas dor. Crueldade pura e sem propósito.”

    Ele retirou a agulha. Senti o alívio momentâneo, que foi quase tão doloroso quanto a própria tortura. Ele se moveu para o próximo dedo. 

    — A dor é um cinzel — ele sussurrou, a voz cheia de um fervor terrível. — Ela esculpe a alma, removendo as partes fracas, as partes mortais. O que restar… o que restar depois que a dor tiver feito seu trabalho… será puro. Será um eco. Um recipiente digno.

    A segunda agulha entrou. A dor voltou, uma onda ainda mais forte, construindo sobre a agonia anterior. Eu mordi o lábio com tanta força que senti o gosto quente e metálico de meu próprio sangue.

    “Louco…” minha mente gritava. “Ele é um louco que fala com as paredes de sua própria solidão, e espera que o meu sofrimento faça as paredes responderem.”

    Ele continuou, dedo por dedo, cada um uma nova lição em sua teologia demente, cada um um novo pico de sofrimento para mim. Ele falava sobre a visão ser uma mentira, sobre o toque ser uma ilusão. E a cada palavra, a cada nova explosão de dor, a verdade se tornava mais clara. Ele não buscava os deuses. Ele fugia do silêncio deles, e minha agonia era o barulho que ele usava para preencher o vazio de sua fé fracassada.

    Quando ele terminou com a primeira mão, eu já não era mais um garoto. Era apenas um feixe de nervos em chamas. A dor era tão absoluta, tão onipresente, que já não havia espaço para pensamento, nem para medo. E foi nesse inferno de dor que encontrei meu refúgio.

    Para escapar da agonia que meu corpo não podia mais suportar, minha consciência recuou. Eu me afastei, um ato de vontade desesperado. Puxei minha mente para longe das pontas de meus dedos em chamas, para longe do som de minha própria respiração engasgada. Recuei para o único lugar que ele não podia tocar: a escuridão silenciosa dentro de mim.

    Lá, no centro de minha própria alma, a dor se tornou um eco distante. E no silêncio que encontrei, eu não estava sozinho. Eu os ouvi. Não com meus ouvidos. Eu os senti. O zumbido coletivo de centenas de mentes pequenas, a fome, o medo, a curiosidade. Meu exército. Esperando nas paredes, no chão, no teto. Esperando por mim.

    Na mesa, meu corpo, que antes se contorcia, de repente parou de tremer. Meus músculos relaxaram. Minha cabeça pendeu para o lado, como se a vida tivesse me deixado. Eu havia me desconectado.

    Ouvi o som da agulha caindo na pedra. O mestre parou seu trabalho. — Pequeno? — ele perguntou, a voz tingida de uma súbita confusão…

    …………

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