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    Ouvi o som da agulha caindo na pedra. O mestre parou seu trabalho. — Pequeno? — ele perguntou, a voz tingida de uma súbita confusão. Senti o toque de seus dedos em meu pescoço, checando meu pulso. Ele grunhiu, um som de frustração. Teria o instrumento se quebrado antes do ritual estar completo?

    Foi então que o outro som começou.

    Um arranhar. Tão baixo a princípio que poderia ser apenas um rato solitário. Mas ele não parou. Ele cresceu. De um, tornou-se dez. De dez, cem. De cem, mil. Um som de garras incontáveis arranhando a pedra, a madeira, vindo de todas as direções. O som de uma maré.

    A porta de madeira do quarto ritualístico estremeceu em sua moldura. Uma rachadura apareceu. Depois outra. E então, com um estrondo que fez o chão tremer, ela explodiu para dentro, desfeita por uma torrente viva, uma onda cinzenta e pulsante de pelos e dentes.

    Meu mestre gritou, um som agudo de puro terror. Ele recuou, tropeçando para trás, longe da mesa onde meu corpo jazia. A horda de ratos inundou a sala, não como animais individuais, mas como um único organismo, um rio de fúria que se espalhava pelo chão de mármore.

    Mas então, o grito de terror de meu mestre mudou. Ele parou, e um som diferente escapou de seus lábios. Uma gargalhada. Uma gargalhada embargada, histérica, cheia de lágrimas.

    Ele caiu de joelhos no meio da sala, a maré de ratos se abrindo ao seu redor, sem tocá-lo. Ele ergueu os braços para o teto, o rosto banhado por uma alegria maníaca. 

    — ELES VIERAM! — ele chorou, a voz se quebrando em um soluço de êxtase. — A audiência! A manifestação! Os deuses… eles finalmente me responderam!

    Ele ria e chorava, um profeta recebendo sua revelação final. Em sua mente, aquilo não era um ataque. Era o milagre que ele passara a vida inteira buscando. A horda das sombras havia atendido ao seu chamado. E eu, de meu trono de escuridão, preparei-me para lhe dar a resposta que ele tanto desejava.

    Deitado na pedra fria, desconectado da dor de meus dedos e da agonia de minha carne, eu era apenas vontade. E minha vontade, amplificada por centenas de mentes famintas, se tornou uma única e simples palavra no silêncio de minha alma: Devorem.

    O mar de pelos e dentes, que se abrira em um círculo reverente ao redor de meu mestre, se fechou.

    A alegria no rosto do homem se transformou em confusão quando a primeira mordida rasgou a carne de seu tornozelo. A confusão se tornou pavor quando uma segunda e uma terceira se seguiram em suas pernas. Ele tentou se levantar, mas a maré já o alcançara. Ele gritou, mas seu grito não era mais de êxtase. Era o som cru e animal de um homem sendo desfeito.

    Eu assisti a tudo, não com prazer, não com ódio, mas com a calma fria de uma tempestade. Minha consciência estava em um único rato, o maior e mais ousado, que subira no altar de pedra e agora observava a cena de cima. Deste ponto de vista, eu vi a fé de meu mestre se estilhaçar. Vi a compreensão final em seus olhos, o horror de perceber que a divindade que ele havia convocado era a personificação da dor que ele infligira. 

    Ele não encontrou seus deuses. Encontrou a mim. E então, a maré o cobriu por completo, e seus gritos foram substituídos pelo som úmido e febril do banquete.

    Quando terminou, o silêncio retornou à câmara. Um silêncio mais profundo, mais final. A horda se aquietou. O rato através do qual eu via desceu do altar, saltou para a mesa onde meu corpo jazia e subiu em meu peito. Ele inclinou a cabeça, seus pequenos olhos negros me encarando com uma inteligência antinatural. Eu estava olhando para mim mesmo, uma casca vazia em uma mesa de sacrifício.

    Enviei um novo comando. Alguns dos roedores subiram na mesa e começaram a trabalhar, seus dentes afiados roendo as amarras de couro que prendiam meus pulsos e tornozelos. A sensação de suas pequenas mandíbulas em minha pele foi estranha, uma libertação macabra.

    Quando a última amarra se partiu, a conexão se desfez. A consciência voltou ao meu corpo com a força de um maremoto. A dor em meus dedos explodiu, e a exaustão me atingiu como uma parede. Rolei para o lado da mesa e caí no chão de mármore, ofegante, o corpo tremendo.

    Eu estava livre. Minha mente estava dividida. Era como se eu fosse eu e ao mesmo tempo fosse a horda. 

    Com um esforço que pareceu levar uma eternidade, eu me levantei. Me movi tateando as paredes e seguindo as percepções dos roedores. Tropecei para fora da câmara ritual, deixando para trás o corpo desfeito de meu mestre e o cheiro de morte. A fuga, que eu havia planejado por semanas através dos olhos de meus espiões, começou.

    Não foi um ato de inteligência, mas de puro instinto, guiado por uma sinfonia de sentidos emprestados. Através dos olhos de um corvo no telhado, eu via as rotas dos guardas. Através dos ouvidos de um rato no estábulo, eu ouvia qual baia estava desocupada. Minha mente era um turbilhão, uma cacofonia de visões e sons que ameaçava me despedaçar. A dor de cabeça era uma agonia lancinante.

    Encontrei o cavalo. Com um sussurro de vontade, acalmei a criatura assustada e a guiei para fora. Montei, minhas mãos feridas mal conseguindo segurar as rédeas, e cavalguei para a escuridão da noite.

    O galope era um trovão em um mundo silencioso. Eu me agarrava à crina do cavalo, o corpo dolorido protestando a cada solavanco, a mente um turbilhão de pânico e exaustão. 

    Para onde ir? A pergunta ecoava em meu vazio. Eu não sabia, apenas fugia, para qualquer lugar longe daquele inferno.

    Sul…

    A palavra surgiu em minha mente, não como um pensamento meu, mas como um comando frio, gravado em gelo. Era a voz dela. A voz da escuridão que me dera olhos. Eu não respondi. Não havia fôlego para palavras, apenas para o medo.

    Para o sul, pequeno oráculo. No sul, um guardião do conhecimento o aguarda. 

    Eu não tinha ao que me agarrar, então decidi ouvir. Essa mesma voz já havia me trazido até aqui. Talvez fosse ela também a que me salvaria da incerteza.

    A fuga foi um borrão. O som dos cascos na estrada, o vento frio em meu rosto, a dor pulsante em meus dedos. Minha consciência começou a piscar, a conexão com o mundo se tornando frágil. Eu não guiava mais o cavalo; apenas me agarrava a ele, deixando que seu instinto me levasse para longe daquele inferno. A última coisa que senti foi o cheiro de sal no ar e a sensação de meu corpo escorregando, caindo em um abraço de escuridão e alívio.

    A consciência retornou em fragmentos. Não havia visão. O primeiro sentido a voltar foi o tato. A sensação de grama macia e úmida sob minhas costas, não a pedra fria. O primeiro cheiro foi o do mar, limpo e salgado, não o de mofo e sangue.

    E então, o toque de uma mão quente em minha testa, afastando uma mecha de cabelo de meu rosto. O gesto era tão gentil, tão inesperado, que uma lágrima, uma lágrima de verdade, finalmente escapou por entre minhas pálpebras queimadas.

    A primeira coisa que ouvi foi uma voz. Calma, velha e cheia de uma curiosidade profunda e inquisitiva, como a de um homem que acabara de encontrar a peça mais estranha e fascinante de um quebra-cabeça que buscara durante toda a vida.

    — Acalme-se, rapaz. Você está seguro.

    — Onde… onde eu estou? — Minha voz saiu rouca, arranhando a garganta como se precisasse abrir caminho dentro dela.

    — Você está em Mileto. — Ele respondeu, suas mãos suaves ajeitaram meus ombros de uma maneira confortável. — Estes olhos… são fascinantes.

    — Quem é-cahum! — Tossi, falar era um esforço maior do que eu esperava. — Quem é você?

    Ele suspirou, como um ancião e se levantou comigo nos braços.

    Uma sensação estranha envolveu meu corpo. Como se uma fina camada de água o percorresse, um líquido relaxante, caloroso. A voz havia dito a verdade.

    — Meu nome é Tales, e eu irei te ajudar.

    …………

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