Índice de Capítulo

    O som foi a primeira coisa que retornou. Um som pesado, gutural, de madeira antiga se arrastando contra a pedra, culminando em um CLANG metálico que ecoou no que restava da minha mente. A porta. A porta da cela se fechando.

    Senti o chão antes de entendê-lo. A pedra era fria e úmida contra a minha bochecha, um contraste chocante com o fogo que ainda consumia meu rosto. O cheiro veio em seguida: mofo, umidade e o odor acre de meu próprio medo, um suor frio que parecia ter encharcado meus trapos. E por baixo de tudo, o cheiro de óleo queimado e de algo mais… o cheiro de carne cozida. A minha carne.

    — Um escravo que não pode ver, aprenderá a ouvir melhor seus mestres.

    A voz dele. Fria, distante, cortando a escuridão como vidro quebrado. Veio do outro lado da porta, abafada, mas cada sílaba era um prego em meu caixão. Então, ouvi o som de seus passos se afastando, e o silêncio que se seguiu foi mais aterrorizante do que qualquer grito.

    A dor era um oceano, e eu me afogava nele. Era uma entidade viva, um sol branco e pulsante atrás de meus olhos, onde antes havia o mundo. Tentei abri-los. O instinto, a memória de uma vida inteira de luz, me forçou. Mas não havia nada para abrir. Meus dedos, trêmulos, subiram pelo meu rosto. Encontraram um terreno desconhecido, uma paisagem de agonia. A pele estava inchada, esticada, e onde deveriam estar minhas pálpebras, havia apenas uma massa de carne queimada, selada e úmida.

    Um soluço escapou de minha garganta, um som patético e quebrado. Eu estava cego. A palavra era tão simples, tão final. A escuridão não era mais a ausência de luz, era a minha nova realidade, um vazio, a falta de algo. Eu não via escuridão. Não existia mais “ver”. 

    Tentei escutar algo, era tudo o que me restava. Nada além de chirriados de ratos. 

    Tentei chorar, um instinto infantil de chamar por minha mãe, por minha irmã, mas a agonia apenas se intensificou. As pálpebras seladas queimaram como se o óleo quente estivesse sendo derramado novamente. As lágrimas não podiam sair; ficaram presas, um mar de sofrimento fervendo dentro de minha cabeça, uma pressão que não encontrava alívio. Eu gritei, um som abafado contra o chão de pedra, sofrendo com a dor de não poder sequer libertar minhas próprias lágrimas.

    Encolhido no chão frio, tremendo em um torpor de sofrimento, uma única pergunta começou a se formar em meio ao caos de minha mente, um eco frágil de quem eu costumava ser.

    “Como… como eu vim parar aqui?”

    A pergunta não precisava de resposta. A resposta era uma torrente de memórias que a escuridão e a dor não conseguiam apagar. Elas me assaltaram, não como imagens, mas como sentimentos, cheiros e sons.

    A primeira memória era a mão dela. Mais forte que a minha, protetora, segurando a minha com força. Ágatha. Minha irmã mais velha. Ela era meu escudo contra o mundo.

    Lembro-me do cheiro de pão assando em nossa casa, um cheiro que significava segurança. Eu tinha onze, talvez doze anos, ela já era uma jovem mulher, com seus dezoito… ou eram dezenove? Eu já não sabia mais. Tudo se tornara confuso após meses trancado sem sentir o calor do sol em minha pele.

    Aquele dia, o cheiro de pão foi substituído pelo odor azedo de medo. Lembro-me de homens rudes em nossa porta, a voz deles baixa, mas dura. A de meu pai, quebrada. Uma dívida de negócio, ele disse. Uma mercadoria roubada. Palavras que eu não entendia, mas cujo peso eu sentia no tremor da mão de Ágatha, que me escondera atrás dela.

    Eles não nos compraram. Eles nos levaram. Fomos o preço. Lembro-me do rosto de meu pai, lembro-me de gritar pela ajuda dele, pedir que ele salvasse minha irmã. E também me lembro de encontrar em seu rosto o alívio de ter sido poupado pelos nossos captores enquanto éramos arrastados para fora de nossa casa.

    A memória seguinte tinha um cheiro. O cheiro de carvão, um pó fino e amargo que se infiltrava em tudo. E o cheiro de muitos corpos, sujos e assustados, amontoados em uma gaiola semovente. A caravana de escravos. 

    Naquele inferno sobre rodas, a mão de Ágatha na minha era a única coisa real, a única coisa que importava.

    — Dante… — a voz dela era um sussurro na escuridão fétida. — Fique perto de mim. Eu não vou deixar que nada te aconteça. — Eu não estou com medo, Aggie — eu mentia, a garganta apertada.

    Mas eu estava. E o pior ainda estava por vir.

    Em um lugar que parecia o fim do mundo, uma parada de caravanas poeirenta sob um sol impiedoso, nós nos vimos pela última vez.

    Um homem corpulento e feio, Gérion, caminhava entre as gaiolas, inspecionando a “mercadoria”. Foi para ele que Ágatha foi vendida. Lembro-me de suas mãos grandes e sujas a arrancando do meu lado. Ela gritou. O som do meu nome nos lábios dela… “DANTE!”. Aquele grito me assombra. É o som mais alto em meu silêncio.

    Eu lutei. Míseros treze anos de idade, lutei contra homens que eram o dobro do meu tamanho. Fui recompensado com um golpe na cabeça que me fez ver estrelas. Acordei sozinho em uma carroça diferente, indo para o leste. O rosto de minha irmã, agora perdida em algum lugar deste mundo, tornou-se a memória mais dolorosa.

    Eles a venderam. Minha irmã. Por um punhado de moedas. Aquele foi o dia em que aprendi que o amor tinha um preço, e que nós éramos pobres demais para pagá-lo.

    A última lembrança clara antes desta cela tinha o cheiro do mar. O porto de Therma. Um lugar de caos, de gritos de mercadores, do cheiro de peixe e sal. 

    Assim que cheguei eu fui posto à exposição. Rápido. Sem cerimônia. Eu estava em uma fila com outros escravos, e um homem se aproximou. Não olhou para meus músculos, nem para meus dentes, mas sim para meus olhos. Lembro-me do toque de seus dedos em meu rosto, um toque frio, analítico, como o de um açougueiro inspecionando a carne.

    — Este servirá — ele disse, a voz calma e precisa. — Quinze dracmas — disse o mercador de escravos. O homem riu, um som baixo e sem alegria. — Quinze? Ele está sujo e magro. Dou cinco.

    Cinco dracmas. O preço de um jarro de vinho barato. Foi o meu valor final no mundo dos homens.

    Atravessamos o mar em um barco e eu fui levado para a propriedade dele, um lugar silencioso, isolado, longe de qualquer cidade. E o tormento começou. 

    Nos primeiros dias, eu tentei entender, me adaptar à minha nova realidade. Tentei ser o escravo perfeito. Cumpria cada ordem com uma velocidade silenciosa, mantinha a cabeça baixa, os olhos fixos no chão. Mas nada adiantava.

    Cada erro meu, real ou imaginado — um prato quebrado, um passo barulhento demais, um olhar para o chão que ele julgava ser insolência —, era recebido com uma violência precisa e aterradora.

    Eu nunca ousava encará-lo, meus olhos sempre fixos no chão, no vão de meus pés, em qualquer lugar que não fosse seu rosto. Por isso, eu não via a frieza em seu olhar. Eu apenas sentia os golpes, as queimaduras, e em minha mente de treze anos, só havia uma explicação possível: eu estava sendo castigado.

    Eu me perguntava constantemente qual era o meu crime. O que eu havia feito para merecer tal fúria? A cada punição, eu revirava minhas ações do dia, procurando pela falha, pelo pecado que havia despertado o monstro. Eu nunca encontrava, e essa ignorância era uma tortura à parte. Eu era culpado de uma transgressão que eu mesmo desconhecia.

    Havia momentos em que ele me agarrava pelo queixo, forçando meu rosto a se erguer. Mas o medo me paralisava, e meus olhos se fechavam com força, esperando a dor. Eu sentia seu hálito, ouvia sua respiração calma, mas nunca via sua expressão. Para mim, aquele aperto era o de um juiz examinando o réu, e eu tinha a certeza de que ele via em mim uma falha, uma impureza que precisava ser purificada com dor. Eu era o corpo que sangrava por um pecado que nunca soube que cometi.

    Essa perseguição cega culminou no dia em que ele decidiu que meus olhos eram o verdadeiro crime… Hoje.

    Ele me acordou cedo, ou pelo menos parecia ser, e me levou para um quarto escuro em sua propriedade. O cheiro de óleo de oliva era forte, mas havia algo mais, o cheiro de metal esquentando em um braseiro. Dois de seus guardas me seguraram. Eu lutei, mas era apenas um garoto. 

    — Fique quieto, pequeno — disse meu mestre, a voz calma, quase didática, como um filósofo explicando uma teoria. 

    Ele se aproximou, e eu pude ouvir o borbulhar suave do óleo quente na panela que ele segurava. 

    — Eu preciso de um recipiente vazio. Olhos que veem o mundo criam distrações, criam mentiras. Para ouvir de verdade, é preciso que não haja nada para ver.

    O terror me paralisou. Eu olhei para o rosto dele, para seus olhos calmos, e a coisa mais assustadora foi o que eu não vi: não havia raiva, nem sadismo. Havia apenas… curiosidade. Foi nesse momento que eu entendi. Ele era completamente alheio à minha dor. Eu não era uma pessoa para ele, mas sim um instrumento que ele estava afinando.

     — Por favor… — eu engasguei. 

    — Shhh — ele disse, e fez um sinal.

    Senti o calor se aproximando. O cheiro de óleo queimado ficou insuportável. 

    Fechei os olhos com força, uma defesa inútil. 

    O primeiro toque do metal quente em minha pálpebra foi uma explosão de agonia. E então ele derramou. O óleo quente, um rio de fogo líquido, inundou meus olhos, queimando, derretendo, destruindo. A dor foi tão absoluta, tão total, que não houve mais som, nem pensamento, apenas uma luz branca e infinita que consumiu tudo antes de mergulhar o mundo na escuridão eterna.

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota