Conto | Oráculo da Dor (3)
A risada fria em minha mente se dissipou, deixando para trás um silêncio mais profundo e mais pesado do que antes. A promessa, ou talvez a maldição, pairava na escuridão da minha cela: Abra seus novos olhos.
Mas como? Meu corpo continuava sendo uma prisão de dor, minhas pálpebras, uma muralha de carne cicatrizada. A voz não retornou. Fui deixado sozinho com o eco de suas palavras e a dúvida venenosa de que talvez tudo não passasse de um delírio final. A esperança era uma piada cruel, e eu me sentia o tolo.
Foi então que ouvi. O arrastar familiar de patas minúsculas sobre a pedra. Um rato. Em semanas de escuridão, eu havia aprendido a mapear seus movimentos, a distinguir o som de um roedor saudável do arrastar de um doente. Este era rápido, alerta. Por instinto, ou talvez guiado por um impulso que já não era meu, minha mente se agarrou àquele som. Eu o segui, cada guincho, cada arranhão de suas garras, tornando-se o único foco em meu universo de nada.
E então, o mundo se partiu.
Uma vertigem violenta me arrancou de meu corpo. Não houve som, nem luz, apenas uma sensação de ser puxado através de um véu invisível. Por um instante, eu não era nada, um ponto de consciência flutuando no vazio. E no instante seguinte, eu era tudo. O chão de pedra fria não estava mais em minhas costas, mas sob quatro patas ágeis. O ar não era apenas algo que eu respirava, mas uma tapeçaria de cheiros avassaladores: o odor de poeira antiga, o cheiro de meus próprios excrementos em um canto, o rastro quase imperceptível de uma migalha de pão esquecida. Meus bigodes tremiam, sentindo a corrente de ar que passava pela fresta da porta, mapeando o espaço com um sentido que eu nunca sonhara existir.
E então, eu vi.
A visão era baixa, granulada, as cores desbotadas em tons de cinza e azul pálido. O mundo era um gigante de pedra e sombra. E no canto mais distante daquela imensidão, havia uma figura. Um garoto. Encolhido, emaciado, os trapos sujos mal cobrindo um corpo que era pouco mais que pele e ossos. Seu rosto estava virado para a parede, mas eu podia ver as cicatrizes escuras em suas pálpebras fechadas.

Levei um momento para entender. Aquele… aquele era eu.
O choque foi tão profundo que a conexão se quebrou. Fui jogado de volta para minha própria mente, para meu corpo inútil, com um impacto que me deixou ofegante. Eu estava de volta à minha escuridão, mas agora ela era diferente. Eu sabia o que havia além dela. A euforia de ter “visto” novamente lutava com o horror absoluto de me ver como uma criatura insignificante e quebrada.
Os dias que se seguiram foram um exercício de controle e terror. Meu mestre parecia determinado a me dar tempo para superar o último experimento.
Já eu, estava determinado a conhecer minhas novas capacidades.
No início, a conexão era instável. O poder que a voz me dera era real. Mas era estranho, perturbador. Eu não me tornara um vidente. Havia me tornado um passageiro em corpos que não eram meus.
Eu tentava me ligar a um rato e acabava sentindo apenas o pânico cego de um inseto preso em uma teia. Tentei alcançar um pássaro que ouvi piando na grade alta da minha cela, mas a súbita sensação de altura e a vastidão do céu, mesmo que vista por uma pequena abertura, foi demais. Fui arremessado de volta à minha consciência com uma náusea tão violenta que vomitei a água rala que me davam.
Aprendi da maneira mais difícil. A chave não era forçar, mas ouvir. Render-se. Eu comecei pequeno, com as criaturas da minha própria escuridão. As aranhas eram as mais fáceis. Suas mentes eram tapeçarias de paciência e vibração. Passei horas incontáveis vendo o mundo através de seus oito olhos, aprendendo a geometria de minha própria cela a partir de ângulos impossíveis. O mundo se tornou uma teia de ecos e movimentos.
Os ratos eram mais difíceis. Suas mentes eram um caos de fome e medo. Mas era nesse caos que eu encontrava a informação. Através deles, o corredor do lado de fora da minha cela deixou de ser um mistério. Eu ouvia as conversas dos guardas. Eram homens rudes, entediados, que reclamavam do soldo, do tempo e da comida. Eles não eram os demônios que eu imaginava; eram apenas homens comuns, e essa normalidade tornava a crueldade de meu mestre ainda mais incompreensível.
Em uma noite, minha audácia cresceu. Um dos guardas, ao trazer minha parca refeição, deixou cair um pequeno pedaço de queijo perto da porta. A fome, uma dor constante em meu estômago, se tornou um farol. Concentrei-me em um rato jovem e forte que vivia na parede oposta. Enviei a ele não um comando, mas um desejo. A imagem, o cheiro, a necessidade daquele queijo. O rato hesitou, farejando o ar, e então disparou pela cela, pegou o prêmio e o trouxe para perto de mim. Naquela noite, pela primeira vez em meses, senti algo além de desespero. Senti o gosto salgado do queijo e o sabor ainda mais doce da agência. Foi minha primeira vitória.
Minha prisão havia se tornado um reino, e eu, seu rei invisível. Mas um rei precisa entender seu território, e meu território incluía o homem que me colocara ali. Eu precisava entender. Entender como ele era longe de mim.
Ele sabia do que havia acontecido comigo?
Era essa a sua intenção desde o início?
Minha chance veio na forma de um corvo que pousou na grade da minha cela. A conexão com ele foi a mais difícil e a mais recompensadora. Sua mente era um misto de inteligência aguda e instinto selvagem. No momento em que a conexão se firmou, a cela, a pedra, a escuridão… tudo desapareceu.
A sensação foi uma epifania de liberdade absoluta. Deixei para trás a casca inútil de meu corpo e fui impulsionado para o céu pelo poder de asas fortes e negras. O vento não era algo que eu sentia de passagem; era o elemento no qual eu dançava, um rio de ar frio que açoitava minhas penas. A visão era uma faca, incrivelmente nítida, capaz de distinguir um único grão de trigo no pátio lá embaixo. Vi o sol, uma bola de fogo ofuscante que meus próprios olhos não veriam nunca mais, e pela primeira vez em anos, eu não senti seu calor em minha pele, mas o vi pintar o mundo com cores que minha memória mal conseguia reter. Vi a propriedade inteira, não como um prisioneiro, mas como um deus, o mundo uma tapeçaria viva sob mim.
Voando, eu estudei o terreno: uma casa principal, os quartéis dos guardas, os estábulos… e, afastado de tudo, um pequeno edifício de pedra com uma única janela alta e sem grades. O escritório do meu mestre.
Mas toda liberdade emprestada tem um fim. A conexão, frágil como um fio de teia, se rompeu.
O retorno foi uma queda. Não do céu, mas para dentro de mim mesmo. Em um instante, o céu azul infinito foi substituído por uma escuridão absoluta e sufocante. A sensação do vento em minhas asas deu lugar ao peso morto de meus próprios membros inúteis sobre a palha úmida. O mundo vasto e colorido encolheu para as quatro paredes de pedra que eu podia sentir pressionando o ar ao meu redor.
Eu estava de volta. Ali. Não lá.
E a ausência da visão, agora, era mil vezes mais dolorosa. A memória fresca do sol e de sua sensação contra as minhas penas tornava minha escuridão mais profunda. A lembrança do horizonte infinito fazia minha cela parecer menor, mais apertada, uma tumba. O poder de voar não havia me libertado, apenas havia me mostrado com uma clareza cruel o quão pequena e escura era a minha jaula.
Na minha mente a imagem do prédio em que se encontrava o escritório de meu mestre estava gravada.
Aquele lugar se tornou minha obsessão. Levei dias, usando uma cadeia de espiões — um rato para passar por baixo da porta, uma mosca para voar pelo corredor, e finalmente, uma pequena aranha que tecia sua teia no canto mais escuro do teto daquela sala proibida. Através de seus múltiplos olhos, eu finalmente adentrei o santuário do meu torturador. E o que vi não fez sentido.
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