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    Minha chance veio na forma de um corvo que pousou na grade da minha cela. A conexão com ele foi a mais difícil e a mais recompensadora. Sua mente era um misto de inteligência aguda e instinto selvagem. No momento em que a conexão se firmou, a cela, a pedra, a escuridão… tudo desapareceu.

    A sensação foi uma epifania de liberdade absoluta. Deixei para trás a casca inútil de meu corpo e fui impulsionado para o céu pelo poder de asas fortes e negras. O vento não era algo que eu sentia de passagem; era o elemento no qual eu dançava, um rio de ar frio que açoitava minhas penas. A visão era uma faca, incrivelmente nítida, capaz de distinguir um único grão de trigo no pátio lá embaixo. Vi o sol, uma bola de fogo ofuscante que meus próprios olhos não veriam nunca mais, e pela primeira vez em anos, eu não senti seu calor em minha pele, mas o vi pintar o mundo com cores que minha memória mal conseguia reter. Vi a propriedade inteira, não como um prisioneiro, mas como um deus, o mundo uma tapeçaria viva sob mim.

    Voando, eu estudei o terreno: uma casa principal, os quartéis dos guardas, os estábulos… e, afastado de tudo, um pequeno edifício de pedra com uma única janela alta e sem grades. O escritório do meu mestre.

    Mas toda liberdade emprestada tem um fim. A conexão, frágil como um fio de teia, se rompeu.

    O retorno foi uma queda. Não do céu, mas para dentro de mim mesmo. Em um instante, o céu azul infinito foi substituído por uma escuridão absoluta e sufocante. A sensação do vento em minhas asas deu lugar ao peso morto de meus próprios membros inúteis sobre a palha úmida. O mundo vasto e colorido encolheu para as quatro paredes de pedra que eu podia sentir pressionando o ar ao meu redor.

    Eu estava de volta. Ali. Não lá.

    E a ausência da visão, agora, era mil vezes mais dolorosa. A memória fresca do sol e de sua sensação contra as minhas penas tornava minha escuridão mais profunda. A lembrança do horizonte infinito fazia minha cela parecer menor, mais apertada, uma tumba. O poder de voar não havia me libertado, apenas havia me mostrado com uma clareza cruel o quão pequena e escura era a minha jaula.

    Na minha mente a imagem do prédio em que se encontrava o escritório de meu mestre estava gravada.

    Aquele lugar se tornou minha obsessão. Levei dias, usando uma cadeia de espiões — um rato para passar por baixo da porta, uma mosca para voar pelo corredor, e finalmente, uma pequena aranha que tecia sua teia no canto mais escuro do teto daquela sala proibida. Através de seus múltiplos olhos, eu finalmente adentrei o santuário do meu torturador.

    O que vi não fez sentido. Pelo menos, não a princípio.

    Através do mosaico de oito olhos da pequena aranha, o escritório do meu mestre era um mundo de gigantes e sombras. A sala era maior do que minha cela, as paredes cobertas por prateleiras que se curvavam sob o peso de centenas de pergaminhos. O ar era pesado, não com o cheiro de mofo, mas com o odor seco e antigo de papiro e um perfume estranho e penetrante de incenso queimado, um cheiro que fez os pelos minúsculos no corpo da aranha se eriçarem. Para a criatura, era um lugar de vibrações estranhas e poucos insetos. Para mim, era o coração do mistério.

    Passei a primeira noite apenas observando. A sala estava vazia, iluminada apenas por uma única lamparina a óleo que lançava sombras longas e dançantes. No chão, no centro da sala, havia um desenho complexo feito com o que parecia ser giz prateado. Eram círculos dentro de círculos, repletos de símbolos que minha mente de garoto não conseguia decifrar, mas que irradiavam uma sensação de poder antigo e perigoso. Para a aranha, eram apenas linhas interessantes, um potencial novo território para sua teia. Para mim, parecia uma armadilha.

    Meu mestre só apareceu na noite seguinte. Ouvi o som de seus passos no corredor — calmos, deliberados — e minha consciência se focou, a atenção total. Ele entrou, não como o carrasco que eu conhecia, mas como um erudito cansado. Ele não estava com seus guardas. Estava sozinho.

    Redobrei minha atenção nos arredores. O ar cheirava a incensos que eu não reconhecia e a papiro velho. No chão, desenhado com um giz prateado, havia um complexo círculo de símbolos e palavras arcanas. Meu mestre passou horas ali, não lendo sobre negócios ou filosofia, mas debruçado sobre mapas astrais e textos que pareciam antigos quando o mundo ainda era jovem.

    Em algum ponto, ele caminhou até sua grande mesa de madeira escura e se sentou, o rosto entre as mãos. Por um longo tempo, ele permaneceu em silêncio, e a quietude era tão profunda que, através da aranha, eu podia sentir a vibração de sua respiração na madeira da mesa. Então, ele falou. Um sussurro, para si mesmo, carregado de uma frustração tão profunda que parecia uma ferida.

    — Silêncio… Apenas o silêncio… — Ele lamentava, andando em círculos. — Os céus estão vazios ou estão surdos? As estrelas se movem, as estações mudam, mas os deuses… eles se calam.

    Ele se levantou e começou a andar pela sala, um leão enjaulado em sua própria obsessão. 

    Gesticulou irritado para os pergaminhos nas paredes. — Eu li todos os hinos. Fiz todas as oferendas. Estudei todos os ritos. E em troca? Nada. Um universo mudo, indiferente à busca de um homem por propósito.

    Naquele momento, observando-o de meu poleiro no teto, eu senti um calafrio.

    Na terceira noite, ele trouxe um texto antigo, um rolo de papiro tão amarelado e frágil que parecia prestes a se desfazer em pó. Ele o desenrolou sobre a mesa com um cuidado reverente e começou a ler em voz alta. Sua voz era diferente, não mais de lamento, mas de uma excitação febril.

    — “…os antigos não sussurravam para os deuses. Eles gritavam. Suas oferendas não eram grãos e vinho, mas dor e sacrifício. Eles entendiam que, para se comunicar com o divino, um mortal precisa primeiro se esvaziar do mundano… Um sacrifício de sangue pode mostrar cometimento. Mas um sacrifício da percepção… um sacrifício da visão… Isso mostrará o verdadeiro desejo de ver…”

    Ele parou, a respiração ofegante. Seus olhos brilhavam sob a luz da lamparina. Ele se virou e seu olhar pareceu varrer a sala, passando direto pelo meu esconderijo. 

    Um oráculo sem olhos para o mundo dos homens verá o mundo dos deuses — ele recitou, como se fosse o verso mais sagrado de todos. — E se o afastamento da carne não aproxima do divino, então apenas o fim pode ajudar a encontrá-lo.

    E então, o horror da verdade me atingiu com a força de um golpe físico. A conexão com a aranha quase se partiu.

    O recipiente. O sacrifício da percepção. O oráculo cego.

    Eu.

    Cada ato de sua crueldade agora se encaixava em um padrão terrível. A tortura não era uma punição aleatória. Era um método. A violência precisa, a curiosidade fria durante minha agonia… ele não estava me quebrando por prazer. Ele estava me esculpindo. Estava tentando me esvaziar de mim mesmo, da minha dor, da minha humanidade, para me transformar em um canal oco, um instrumento através do qual ele pudesse finalmente ouvir a voz divina que tanto desejava.

    Ele não me via como um garoto. Eu era sua chave, sua última e desesperada aposta para provar a si mesmo que não estava sozinho em um cosmos silencioso. Ele era um homem disposto a destruir a realidade de uma criança para validar a sua própria, convencido de que os deuses, de alguma forma, se importavam com seu sofrimento a ponto de exigir o meu.

    Eu precisava escapar. Não apenas da cela, mas do propósito terrível que ele havia traçado para mim. Eu sabia, com uma certeza que gelou minha alma, que o “ritual final” estava próximo. E eu não estaria presente para ser sua oferenda.

    A consciência retornou ao meu corpo com um solavanco, deixando para trás o mundo da aranha e me devolvendo à minha prisão de carne e pedra. A escuridão ao meu redor já não era apenas a ausência de luz. Estava preenchida com o conhecimento de meu destino. O cheiro de mofo em minha cela agora cheirava a um altar de sacrifício.

    O medo ainda estava lá, um nó frio em meu estômago. Mas agora, ele tinha um companheiro. Um propósito. Frio, afiado e absolutamente claro. A vingança não importava. A loucura dele não era meu fardo para carregar. A única coisa que importava era a fuga. Eu precisava sair dali, desaparecer, antes que a porta que ele tentava arrombar para os céus se abrisse e consumisse nós dois.

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