Conto | Oráculo da Dor (2)
Um som agudo de um rato guinchando em algum lugar na parede me puxou de volta do redemoinho de memórias. De volta para o aqui. Para o agora. Para a escuridão.
Um som de água pingando da goteira no centro da cela voltou a inundar meus ouvidos.
A dor em meus olhos havia diminuído para uma queimação surda, uma brasa constante. A adrenalina do horror inicial se foi, deixando para trás apenas a exaustão e a realidade fria e inescapável. Eu era um aleijado. Um escravo cego. Inútil. Minha vida, como eu a conhecia, havia acabado.
Lentamente, hesitante, comecei a me mover. Eu precisava saber onde estava. Minhas mãos se tornaram meus olhos. Tateei o chão. Pedra fria, irregular, úmida. Arrastei-me, sentindo as paredes. Eram feitas de blocos de pedra mal encaixados, com frestas por onde soprava um ar frio e fétido. Em um canto, encontrei palha. Estava úmida e cheirava a mofo e urina. Minha cama.
Depois de mapear minha prisão, um retângulo de talvez dez passos por cinco, minhas mãos se voltaram para mim mesmo. Era um ato quase compulsivo, uma necessidade de entender o que restava. Tracei com os dedos as cicatrizes que já conhecia: a linha elevada em meu braço, de uma faca da cozinha de meu mestre; a pele enrugada em minha perna, de uma brasa que meu mestre tirara da fornalha. Agora, eram parte de mim. Eram a história de minha sobrevivência até então.
Então, com o coração martelando, meus dedos subiram para meu rosto. E eu senti a nova parte da minha história. A pele queimada, repuxada e sensível. As pálpebras que não existiam mais, substituídas por uma massa de cicatrizes que selavam meus olhos para sempre. Eu era um monstro. Um rosto para assustar crianças.
Um soluço seco sacudiu meu corpo. A autopiedade era um luxo, mas eu me permiti afundar nela por um momento. As preces que eu fazia não eram mais para Ágatha, nem para a liberdade. Eram para a morte. Um pedido silencioso ao vazio para que me engolisse, para que terminasse o que meu mestre havia começado.
Eu me deitei na palha úmida, o corpo encolhido em uma bola, e esperei. Esperei o frio da pedra finalmente roubar o calor de meu corpo. Esperei que minha respiração se tornasse mais rasa, até cessar. Esperei que a escuridão exterior finalmente consumisse a escuridão interior. O silêncio na cela era absoluto, quebrado apenas pelo som distante de uma gota d’água e pelo bater acelerado de meu próprio coração, um tambor teimoso que se recusava a parar.
Foi nesse silêncio, nesse vazio que eu havia convidado, que algo respondeu.
Não começou como um som. Começou como uma sensação. Um frio. Um frio diferente da umidade da pedra. Era um frio antigo, seco, que pareceu se formar no centro da cela e se espalhar, fazendo os pelos de meus braços se arrepiarem. O som dos ratos nas paredes cessou abruptamente. Até a gota d’água pareceu prender a respiração. O ar ficou pesado, imóvel, carregado com a presença de algo que não pertencia àquele lugar.
Então, ouvi. Não com meus ouvidos. A voz não viajou pelo ar para me alcançar. Ela simplesmente… apareceu. Dentro da minha cabeça.
Pequeno.
Eu congelei, cada músculo do meu corpo se enrijecendo. O som era um sussurro, mas ressoava em meu crânio com a clareza de um sino de bronze. Era uma voz feminina, mas sem idade, antiga como a própria pedra que me aprisionava. Era fria, desprovida de qualquer calor ou compaixão, mas havia nela um poder que fazia minha alma tremer. Tentei dizer a mim mesmo que era a loucura, o delírio da dor e da fome finalmente tomando conta. Pressionei as palmas das mãos contra as orelhas, mas foi inútil. O som não vinha de fora.
Eles lhe tiraram os olhos.
A voz falou novamente, e desta vez, não era apenas um som. Era uma afirmação de fato, uma declaração que reconhecia minha dor mais profunda. Uma onda de terror e uma estranha validação me percorreram. Não era minha imaginação. Havia algo ali comigo. Algo que sabia.
Meu corpo tremia incontrolavelmente. Tentei me arrastar para o canto mais distante, um gesto patético de fuga contra uma presença que já habitava minha mente. A voz me permitiu o silêncio por um momento, deixando o peso de sua existência assentar em minha alma aterrorizada. Então, ela fez a pergunta. A oferta. O pacto.
Mas você ainda quer VER?
A questão pairou na escuridão de minha mente, e por um instante, o terror deu lugar a um novo sentimento: a certeza da minha própria loucura.
Era isso. Finalmente. O golpe final de uma mente que já não suportava o peso do sofrimento. Eu estava ouvindo coisas. A escuridão não era mais vazia; agora, ela sussurrava para mim com a voz de deuses esquecidos e promessas impossíveis. Tentei me agarrar à realidade, ao que restava dela. Foquei no frio da pedra sob minhas costas, no cheiro de mofo, no som distante de uma gota d’água. Isso é real, eu disse a mim mesmo. A voz não é.
Mas a voz era paciente. Ela não insistiu, não gritou. Apenas esperou que a minha frágil realidade se mostrasse pelo que era: uma prisão. Um inferno de dor, memórias e escuridão sem fim. O que era a sanidade, afinal? Era sentir a queimação constante em meu rosto? Era lutar para lembrar do sorriso de minha irmã, apenas para senti-lo escapar como areia por entre os dedos? Se isso era ser são, a loucura parecia uma alternativa misericordiosa.
A voz retornou, mais suave, mais sedutora, como se lesse meus pensamentos. Ver o rosto dela novamente, pequeno… Sentir o sol através dos olhos de uma águia… Conhecer cada pedra de sua prisão…
O conflito se instaurou em meu peito. Uma parte de mim, a parte que ainda se lembrava de quem eu era, lutava contra aquilo. Era uma armadilha. Um poder profano que me consumiria. Mas outra parte, a parte que estava esmagada sob o peso da agonia, perguntava: E o que restou para ser consumido?
Foi então que a verdade, uma verdade terrível e libertadora, me atingiu. Não fazia diferença.
Louco ou são. Cego ou enxergando as paredes imundas de pedra ao meu redor. A minha realidade já era um pesadelo. Se eu estivesse são, este sofrimento era real e eterno. Se eu estivesse louco, talvez passasse a ver outro mundo, a enxergar meu sofrimento de uma forma menos penosa.
Talvez a loucura fosse a única porta de saída daquela cela. Talvez, ao dizer “sim” àquela voz, eu pudesse finalmente me afastar deste corpo, desta dor, e abraçar uma insanidade que, comparada a este sofrimento, se pareceria com a paz.
Lentamente, com as mãos tremendo, eu as levei ao meu rosto. Meus dedos, que conheciam cada centímetro daquela prisão de cicatrizes, encontraram as pálpebras seladas. E, em um ato de desespero final, eu pressionei. Tentei forçar a abertura do que não existia mais, como se pudesse arrancar a visão de volta da minha própria carne destruída. Uma dor aguda e lancinante explodiu em minha cabeça, e o grito ficou preso em minha garganta.
Foi nesse ápice de agonia, com meus próprios dedos cravados em minhas feridas, que eu respondi no silêncio de minha alma. Não com esperança, mas com um desafio ao meu próprio sofrimento.
Sim. Se isto for a loucura, então que ela me leve.
O silêncio que se seguiu foi quebrado por um som que gelou meu sangue. Dentro da minha cabeça, a voz não respondeu. Ela riu. Uma risada baixa, antiga e desprovida de qualquer alegria. Era o som de uma fechadura se encaixando, de uma armadilha se fechando.
Então, o sussurro retornou, agora íntimo, possessivo.
Bom menino. Agora… abra seus novos olhos.
Regras dos Comentários:
Para receber notificações por e-mail quando seu comentário for respondido, ative o sininho ao lado do botão de Publicar Comentário.