Chovia sobre o vilarejo encolhido entre as montanhas. A água escorria como um lembrete: tudo ali apodrecia aos poucos. As gotas batiam nas estruturas de madeira podre e pedra lascada que resistiam como velhos bêbados — se recusando a cair. Os ventos colidiam, trazendo um ranger incessante.

    Pedestres amaldiçoavam as ruas enlameadas que faziam o barro se agarrar aos sapatos. Os cavalos relinchavam em protesto contra seus condutores ao trafegar no local.

    — Olha as frutas fresquinhas que temos aqui na barraca! — uma mulher acima do peso anunciou.

    — Tenho temperos de todo tipo aqui! — disse outra, de cintura fina, dentes no lugar e peitos firmes. Parecia mais eficaz que a anterior em chamar atenção. Homens se reuniam no local.

    A primeira torceu o nariz em desgosto, mas não podia fazer nada a respeito. Seus tempos de beleza haviam passado há muito tempo.

    Cada um sobrevivia com as armas que tinha. Ali não era diferente.

    Uma figura encapuzada caminhava entre as tendas. Os comerciantes o olhavam com certo receio.

    — Esse desgraçado já veio de novo tão cedo — comentou um deles, cuspindo no chão.

    — Ei, fala baixo! — retrucou outro. — Se ele te ouvir, a gente tá fudido!

    — Porra… — o que tinha reclamado voltou rapidamente aos seus afazeres.

    Um esforço em vão. O homem já caminhava em direção a eles. Logo retirou o capuz, revelando-se: um homem de coque malfeito e rosto coberto de cicatrizes.

    — S-senhor Garran. O qu-

    O soco veio antes do fim da frase. Depois, outro. E mais um. Ele caiu — Garran não parou.

    — Verme imundo — cuspiu as palavras, chutando o velho caído no rosto, fazendo com que alguns dentes voassem. — Se você é um verme, aja como tal.

    O sujeito tentava falar. O sangue acumulado na boca dificultava.

    — N-nã— e, mais uma vez, um chute o silenciou.

    — Eu — outro golpe. — não. Te dei. Permissão. Pra falar!

    A cada pausa, ele desferia um chute.

    Uma mulher então se pôs entre ele e o velho caído.

    — Ele vai morrer! Por favor, pare! Tenha um pingo de misericórdia!

    Garran parou e olhou-a nos olhos.

    — Que porra você tem a ver com isso? — disse. — E daí se esse cuzão morre ou não?

    — Eu pago! — prosseguiu a mulher, com a voz chorosa. — Pago dez ferrins. Por favor, seja misericordioso!

    Garran então sorriu.

    — Tá vendo? É só pagar. Era tão difícil? — Ajeitou o coque com calma, ainda com sangue na mão. — Diálogo é tudo, não é, dona?

    Abaixou-se perto do sujeito caído e agarrou-o pelos cabelos, erguendo a cabeça do homem a fim de escutar melhor. O sangue escorria pela boca e apenas murmúrios podiam ser ouvidos como resposta. 

    — É. Eu acho que ele concorda — O sorriso ainda estava no rosto. Então estendeu a mão. — Pague. Agora. 

    — A não ser que queira pagar de outra forma? — a voz transbordava de lascividade, enquanto lambia os lábios.

    A mulher recuou, enojada. Rapidamente se apressando em pagar.

    As moedas tilintaram em sua mão como música.

    — Sempre é um prazer fazer negócios com vocês — disse, cuspindo no rosto do velho antes de sair. — Voltem sempre.

    Ali só se ouviam os gemidos de dor.

    Garran deixou o sujeito sangrando na lama. Subiu a colina com passos pesados — cada um mais lento que o outro. Uma suntuosa residência o esperava no topo. Lá de cima era possível ver a região quase como um todo.

    “Essa porra fede. Lugarzinho miserável”, pensou.

    — Garran — disse um dos guardas à entrada, de maneira casual. — O senhor Varn o convocou. Pediu para avisar quando tu chegasse.

    “Merda, era o que eu menos queria ter que lidar”, continuou seus devaneios.

    — Ok, vou lá — respondeu. — Avise Martin que preciso falar com ele, se você o vir.

    — Quando for, limpa o rosto. Tem sangue espirrado — comentou o guarda, liberando a passagem. — Se eu vir o sujeito, aviso.

    Garran assentiu, limpando o rosto com a manga do gibão.

    Ao adentrar o local, o calor o recebeu. Agradável. Contrastava com o frio de um dia chuvoso. O local ostentava peles de animais no chão e, nas paredes, cabeças emolduradas — troféus de antigas caçadas. Ao centro, uma bandeira vermelha com uma fênix dourada acima da lareira. Apesar do fogo, a sombra do cômodo parecia viva — não se deixava iluminar.

    A frente, uma armadura completa. O calor do fogo o permitia ver seu reflexo claramente através dela.

    Seu cabelo estava uma bagunça. Fios soltos. O sangue ainda continuava lá. Suas antigas cicatrizes eram um lembrete do que não poderia ser apagado, mesmo com o passar do tempo.

    “Porra…” , pensou, ajeitando tudo em um coque de novo. “Eu tou cansado dessa merda.”

    Antes de prosseguir ao destino deu uma última olhada em si. Não gostava do que via.

    A madeira do chão rangia sob seus pés. Quanto mais se aproximava, mais quente ficava.

    Seu coração palpitava.

    Logo chegou em frente a uma porta, batendo com a mão para anunciar sua chegada.

    — Entre — uma voz grave do outro lado. Reverberou pelo lugar.

    E então entrou. Uma figura já o esperava sentada. Seus olhos o encaravam fixamente, como se pudessem ler sua alma. E talvez pudessem.

    — Senhor Varn — mansamente Garran disse, fazendo uma reverência, engolindo o orgulho. — A que devo a honra?

    O homem não respondeu de imediato.

    Uma mão tamborilava no trono. A outra segurava a cabeça. A luz da lareira revelava cabelos escuros, com fios de prata. A barba, espessa. Um leão velho. Ainda perigoso.

    Quatro paredes e duas pessoas. Um assento. Um de pé. Nada mais precisava ser dito.

    — Como está sendo a coleta de impostos? 

    Poucas palavras, peso enorme. Garran sentia-se sufocado. Não era apenas uma pergunta, mas um teste.

    — Estou fazendo meu melhor, senhor, mas os habitantes estão se mostrando cada vez mais indispostos.

    O crepitar do fogo parecia ser a única coisa a quebrar o silêncio.

    — Você sabe o motivo de ter esse cargo, Garran?

    Ele não sabia responder. Apenas balançou a cabeça negativamente. Suor frio escorria por suas costas.

    — Não? — Varn continuou. — Bem… é porque você é útil. — Em seguida, apontou para a lareira com a mão. — Olhe ali. O que vê?

    Garran então olhou em direção ao fogo. Além do calor que proporcionava, não entendia nada.

    — Vejo fogo, senhor. Produz calor — respondeu, engolindo em seco.

    Varn parecia desapontado. Como se explicar o óbvio fosse um incômodo.

    — Você não está errado — disse o homem. — O fogo, de fato, produz calor. Esse calor serve a diversos propósitos… mas, pra continuar aceso, precisa de combustível. — E então murmurou algumas palavras inaudíveis, conjurando uma poderosa fênix.

    O enorme animal circulava graciosamente pela sala. Apesar de feito de fogo, os móveis e o conjurador não se afetavam minimamente.

    Garran, por outro lado, sentia um calor intenso.

    — Um sistema que envolve pessoas funciona da mesma forma — Varn continuou. — Pra se manter vivo, precisa de combustível… Dinheiro é um forte combustível.

    O homem não era idiota. Sabia o que Varn queria dizer.

    — Não o desapontarei, senhor.

    — Mas é claro que não vai — disse Varn. — Afinal, não tenho serventia pra gente inútil.

    Garran sentia suas pernas vacilarem. Sabia que, quando Varn brincava com fogo, alguém saía queimado.

    — Mas eu não posso esperar muito de você também — continuou Varn, sem se importar em mascarar seu desprezo. — Vou falar com Roderick a respeito. — Ao dizer isso, a fênix sob seu controle dirigiu-se a uma pequena abertura na parede, sumindo do local. — Agora vá. Está liberado.

    Mais palavras não eram necessárias. O homem sumiu rapidamente.

    Ainda na mesma residência, ao passo que o dia ia se pondo, três jovens estavam em um quarto. Uma bola frequentemente caía e subia até o teto, repousando em uma mão.

    — Tãooo chato… — disse um menino entre bocejos. — Ficar sem fazer nada o dia todo.

    Tac. Tac. Tac.

    Ele continuava jogando e pegando a bola. O som era abafado pelas peles de animais enroladas rusticamente na esfera.

    — Para com essa merda aí, caralho — manifestou-se uma voz do outro lado da sala. — Você ficou a tarde toda jogando essa porra.

    — O que tu disse?!

    — É surdo agora? — a outra voz continuou com um sorriso irônico. Levantando as mãos, chamando-o com os dedos.

    Então o menino largou a bola e se pôs de pé. Passos furiosos em sequência. A outra figura não se intimidou, se preparando para o conflito. Sorria ainda mais.

    — Parem — ordenou uma jovem que folheava um livro. — Vocês estão atrapalhando.

    Ambos pararam. Punhos se abaixaram. Apenas isso foi o suficiente.

    Os dois tinham cabelos negros e olhos castanhos. Eram gêmeos.

    — Desculpa, irmã — disseram em sincronia.

    Sentada, folheava o livro sem realmente ler. De repente, fechou-o. Olhou para o fogo. Os olhos refletiam a chama — mas eram mais frios.

    Transmitia uma calma impassível, um contraste com todos naquela residência. Ainda assim, emanava um risco sutil.

    Ela refletiu por um instante. Então decidiu:

    — Vamos sair. Será bom pegar um pouco de ar fresco.

    Os meninos pareceram se alegrar com a ideia, mas não sem antes demonstrarem preocupação.

    — E o pai? — perguntou um deles.

    — Ele não precisa saber — Respondeu. — E, mesmo se soubesse, não se importaria. Ele nunca se importa… — a frase final foi dita mais para si mesma do que para eles, que a olhavam com confusão.

    — Não é nada. Vamos — continuou, percebendo os olhares dos irmãos.

    Então abriram a porta do quarto. Já haviam passado por ali tantas vezes que conheciam cada canto do local — desde onde costumavam brincar quando mais novos, até o campo de treinamento que agora eram obrigados a frequentar.

    A jovem sentia falta de tempos mais simples.

    Agora tudo era escuro e frio. Só restava o poder do fogo para aquecê-la.

    Enquanto andavam, as sombras se misturavam entre si. Dançavam enquanto a luz das tochas iluminava o ambiente. Um dia ela sentiu medo disso, mas não mais.

    Mas, ao fundo do corredor, uma sombra ainda tremeu de maneira incomum.

    Não demorou muito para chegarem à entrada. Ainda que magnífica em relação ao resto do vilarejo, a residência tinha um tamanho modesto. Quando a jovem foi abrir a porta, ela se abriu antes.

    — Eleanor, Marcos e John… — uma voz ríspida cruzou o ar assim que os avistou. — Estão indo para algum lugar?

    A postura era inconfundível: a de um militar. A mão repousava sobre o cabo da espada ao lado da cintura.

    Olhando para cima, os três só podiam ver o rosto de um homem severo. Cabelo curto, olhos semicerrados. Um corpo esculpido para o combate.

    — Sim, estamos — respondeu Eleanor, a jovem, a única dos três que não parecia intimidada. — Não podemos, Roderick?

    O homem não parecia surpreso pela arrogância que a jovem demonstrava.

    — Está de noite — A voz embargada pelo álcool. O cheiro da bebida pairava no ar.

    — E daí? — indagou Eleanor, fitando-o nos olhos. — Não vai nos deixar passar?

    Roderick então abriu espaço na porta. Os irmãos saíram logo em seguida.

    Ele apenas os observou descendo a pequena colina. Um guarda na entrada tinha observado toda a situação junto.

    — Ei, você — disse Roderick, chamando a atenção do sujeito. Então botou a mão sobre o ombro do rapaz. — Você vê eles… certo?

    — Não entendi, senhor? 

    — Tô falando pra você olhar eles, caralho… — ordenou Roderick. — Cuida pros moleques não se foderem por aí, entendeu? — Seus olhos azul-acinzentados o olhavam de cima a baixo. — Você não precisa ser visto…

    — Sim, senhor!

    Depois disso, ele entrou, restando apenas o guarda confuso — que logo se apressou em cumprir as ordens.

    Roderick não sabia se era por causa da bebida, mas a cabeça empalhada de um alce o olhava fixamente com um sorriso macabro.

    — Que foi, cretino! Hein?!… — jogou as palavras entre tropeços, se aproximando da parede. — Você ta olhando o quê?!

    Piscou algumas vezes. O sorriso do alce não aparecia mais.

    — Porra… tenho que parar de beber.

    Ele estava jogado no campo de treinamento. Tinha bebido e depois ficado balançando sua espada contra um boneco de treino até cair. A areia do lugar havia se grudado na saliva da boca, fazendo-o limpar com o dorso da mão.

    Teria continuado apagado lá até de manhã, como de costume, se não fosse uma fênix o acordando. Varn o convocava.

    Cambaleava enquanto tentava manter sua postura militar habitual antes de abrir a porta que levava ao aposento de Varn sem rodeios.

    — Cheguei — anunciou, sem qualquer classe. — O que foi?

    — Se eu não te conhecesse, teria perdido a cabeça pela petulância — comentou Varn.

    — Mas conhece — continuou Roderick. — E me matar seria um favor.

    — Sim, eu sei. Mas não vou atender seu desejo.

    Roderick apenas o olhava sem entender nada.

    — Seus filhos saíram.

    — Eu sei — respondeu Varn. — Deixe-os. Não foi por isso que te chamei. Serei direto: separe dois homens e os ceda a Garran.

    O homem estreitou os olhos ao ouvir o nome do sujeito.

    — Esse porco não consegue fazer nem o mais simples dos trabalhos sozinho — resmungou. Sua expressão, azeda. — Agora ele precisa de alguém pra cuidar do rabo dele?

    Silêncio.

    — Ok — resmungou. A falta de resposta de Varn o desconfortava. — Farei isso.

    — Aproveitando, Roderick, como vão as ruas ultimamente? 

    — Como sempre: estão imundas. Se não for urgente, não nos envolvemos.

    — Continue assim — ordenou Varn. — Deixe o submundo funcionar como tem que funcionar. Dá mais lucro. Agora vá, está liberado — disse, gesticulando com a mão.

    Roderick saiu, e Varn permaneceu no trono, imóvel. O fogo crepitava, indiferente ao destino da vila. A noite estava apenas começando — e algo se movia nas sombras.

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