Alguns instantes antes do banquete, longe da diplomacia de duas caras, duas crianças estavam ofegantes. O vento soprava seus cabelos para longe.

    — O que foi aquilo lá de “subordinado”, cara? — Kael ainda olhava por cima do ombro ao perguntar.

    Sorria. Sair bem de uma situação desfavorável contra a nobreza era motivo suficiente para se alegrar.

    Beltrão Moura podia ser um peixe em mar aberto, mas em uma lagoa com Kael e Elian, ele ainda era um tubarão.

    — Eu… não sei. — Elian deu de ombros.

    E não sabia mesmo. Estava tão surpreso quanto Kael, talvez mais.

    Vozes ecoaram em seguida, chegando até eles.

    — Assassinato! Mataram alguém!

    — Oh, meu Deus!

    Os garotos ouviram.

    Uma palavra forte: a ‘morte’. Para alguns, normal; para outros, curioso. Até inimaginável. Era o caso de Elian.

    Não tinha como um garoto de oito anos saber sobre a morte. Alzira também o protegia muito.

    Estava curioso.

    — Vamos ver?

    Mas diferente dele, Kael sabia. Embora também fosse jovem, sua realidade era diferente. Muito diferente. Amarga e sofrida.

    Brumalva era diferente do calor e aconchego que o comércio de Alzira trazia.

    Kael já vira sua cota de corpos. Muitas vezes servindo de alimentos para porcos e ratos.

    A diferença entre um e outro era como o céu e a terra.

    Mas Kael não via isso como um motivo para zombar de Elian; pelo contrário, queria preservar.

    — Não. Vamos embora. — disse, firme. 

    — Mas…

    Kael se virou e agarrou Elian pelos ombros, se abaixando um pouco. Seus olhos âmbar fixos em Elian.

    — Olha, cara… Alzira te deixou vir porque estava comigo. — suspirou. — Com que rosto eu olharia para ela se algo acontecesse com você?

    Elian não tinha palavras para contestar, desviando o olhar.

    A mão de Kael se afrouxou.

    — Bom que entendeu. Croco também está lá e quero voltar. Agora vam-

    Mas antes de terminar de falar, Elian saiu correndo, desvencilhando-se.

    Ele queria ver. Queria entender.

    O que era aquilo que todos tinham medo?

    O coração palpitava pelo esforço. Seus cabelos negros dançavam a medida que o suor se acumulava em seu pequeno corpo.

    Corria sem se preocupar com Kael gritando atrás dele.

    Kael, por outro lado, corria não por curiosidade — mas para proteger. Gritava pois sabia que existiam momentos que moldavam a percepção de mundo de uma pessoa. Esse era um desses raros casos.

    Mas sua voz não alcançava seu amigo.

    Não foi difícil para Elian chegar ao lugar. Era só correr no sentido oposto das pessoas que pareciam fugir de algo.

    O que era a morte que fazia até os adultos correrem de medo?

    Não precisou de muito para ver.

    Um líquido rubro escorria. Lembrava a água que ele ia pegar de uma nascente para ajudar a Alzira de manhã.

    Mas não era da fonte que vinha de rochas, mas de um homem. Um homem imóvel com os olhos arregalados.

    O cheiro de metal cobria o ar.

    Mesmo a brisa fraca parecia ter sumido. Mesmo distante, conseguia ouvir uma mosca zunindo ao redor.

    Aqueles pares de asas subindo e descendo.

    Por um momento, um breve momento, tudo parou. Sejam as vozes, os gritos, a discussão de Roderick e Beltrão, tudo congelou.

    Ali só restavam Elian e o corpo.

    Aquilo era a morte. Uma casca vazia deixada para apodrecer. Nada grandioso como imaginou, apenas um corpo largado ao chão.

    Uma história que teve seu fim ali.

    “Por que ele morreu?”

    E não tinha respostas para essa pergunta.

    Isso o intrigava.

    A vida do homem era tão fácil de ser tirada como pisar em uma formiga. Elian evitava fazer isso. Tinha pena. Mas mesmo ele, empático como é, às vezes o fazia. Não porque queria, mas era fácil demais fazê-lo.

    A formiga simplesmente às vezes entrava no caminho.

    Talvez o homem caído fosse igual aquelas formigas que ele pisava de vez em quando.

    Talvez o açúcar a matou. Ele se lembrava de como teve uma vez que derrubou quase meio pote de açúcar no chão. Alzira não ficou brava, mas as formigas se juntaram aos montes. Ele teve que varrer para se livrar delas.

    Quantas não morreram naquele ato? Mas precisava ser feito.

    Qualquer que fosse o motivo, agora o homem não passava de algo que um dia foi. Igual aquelas ‘formiguinhas’.

    Teve um motivo? Se sim, valeu a pena?

    O rosto que o homem, sem vida, parecia dizer que não.

    — … como se eu fosse na sua casa foder com sua esposa. — A voz cortou o ar. Roderick. O homem que o chamou de ‘subordinado’.

    Alguns guardas ao redor riram da situação.

    “Foder? O que é foder?”, Elian pensou.

    Não estava perto, mas também não estava longe. Isso permitia ver a situação geral.

    Era o clímax da discussão de Roderick e Beltrão.

    Foi nesse momento que Elian percebeu Kael ali. Estava ao seu lado, pacientemente.

    Kael apenas tinha ficado parado, olhando-o.

    Seu rosto não estava mostrando raiva, como Elian pensou que estaria, mas desapontamento.

    A voz dele apertou o coração:

    — Está satisfeito? Resolveu sua “curiosidade”?

    Elian queria falar, mas as palavras morriam na boca.

    Ele tinha feito merda. Sabia.

    A relação entre ele e Kael nesses meses foram de uma boa amizade. Nesse tempo eles se tornaram verdadeiramente próximos. Tirando Alzira, ele nunca tinha tido esse tipo de conexão com ninguém.

    Kael e Croco vinham em sua casa regularmente. Os dois até ganharam peso. Kael, em particular, estava ficando com uma expressão mais madura.

    A confiança que Kael tinha em Elian estava ali, por um fio.

    Elian não queria ser tratado como uma ‘criança’, mas ali estava, agindo como uma. 

    Todavia, sua curiosidade foi satisfeita. Não sentiu nojo, medo ou qualquer coisa. Ele sentiu… vazio.

    Por que tinha esse sentimento estranho?

    Nada. Não havia nada. Era como uma situação comum do cotidiano. Por não sentir nada, estava confuso.

    Tinha que haver algo, certo? Todos tinham um sentimento em relação à morte.

    Mesmo os guardas ao redor tinham alguma expressão ao ver aquele corpo jogado. Por que ele não tinha?

    Não sabia.

    — Vamos embora. Agora. — A voz de Kael o tirou de seu transe.

    Todos já tinham saído. Só tinha um guarda jovem do lado de fora junto com eles. 

    Imperturbável pela presença dos dois garotos, o guarda estava mais preocupado com ‘limpar a cena’. O corpo e  mais um que estava no chão. Esse parecia vivo, embora não muito melhor que o sujeito morto. Seu peito subia e descia.

    Elian só se deu por si ali, naquele momento. Com o guarda pegando o corpo nos ombros e reclamando. Ele nem viu Roderick, Beltrão e os mercenários sumindo.

    “Era assim que seu corpo é tratado quando você morre?”

    Essa dúvida ficou sem resposta enquanto ele seguia Kael para longe de tudo aquilo. Quando estavam passando pela caravana, Elian parou, parecia recordar algo.

    — Kael, espera.

    Kael tinha uma cara de poucos amigos nesse momento.

    — O que foi?

    — Eu preciso ir pegar o vinho.

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