A grama acariciava com um toque gelado os pés descalços. Macia. Fria. Mesmo assim, era aconchegante, trazendo consigo uma sensação agradável. Fazia cócegas conforme raspava os dedos.

    Os passos de Elian afundavam no solo, amassando  e deixando suas pegadas ficarem registradas.

    Um enorme campo a céu aberto que se estendia para além do que os olhos poderiam ver. Um lugar que não conhecia, mas, de alguma forma, ainda era familiar.

    “De novo, um desses sonhos estranhos…”, pensou enquanto olhava os arredores.

    O campo era um tapete floral com vários tipos diferentes de plantas. Flores brancas preenchiam o chão.

    Uma agradável brisa soprava seus rosto e fazia seus cabelos negros balançarem. Os fios dançavam em frente ao seu rosto, obstruindo a visão, fazendo-o ajeitar com as pequenas mãos.

    Seu cabelo não era grande, mas também não era curto. Seu tamanho se esticava quase até o pescoço. Isso o fez ficar confuso com a situação. Se lembrava de Alzira sempre correndo atrás dele com uma tesoura para aparar-lhe os fios. Não era para estar grande, mas estava.

    “… Estranho”

    O ar estava meio gelado. Minúsculas bolinhas subiram sobre sua pele, fazendo seus pelos ficarem arrepiados.

    “Que frio”

    “… Um sonho não deveria ser tão real. Quando eu vou acordar?”

    Ele ficou andando mais e mais. Para onde olhava só havia vegetação. A única diferença no vasto campo era uma floresta mais ao longe — tão minúscula que mal poderia ser vista.

    Sem pássaros, animais. Nada. Nem mesmo os vermes e insetos. Estava sozinho.

    — Tem alguém aí?!

    Ele gritou o mais alto que conseguiu. Sem resposta.

    — Alguém! QUALQUER PESSOA!

    Embora em céu aberto, havia eco de sua voz. O som se seguiu até desaparecer no mundo. No entanto, ainda continuou sem resposta. Aquilo lhe deixou aflito.

    “É um sonho… né?”, pensou enquanto segurava a região do peito.

    Sentiu o coração palpitar; seguida pela falta de ar. A batida de seu próprio coração poderia ser ouvida por ele mesmo.

    “Eu quero acordar…”

    “Não quero continuar aqui…”

    “Vovó…”

    Ficar ali estava lhe trazendo algumas lembranças. Se lembrava da padaria de Alzira — principalmente do aconchego que proporcionava. Os pães quentes e frescos e a companhia de sua avó. Boas lembranças. Mas tinha as más também.

    Dentre elas havia aquela mosca. Em como ela parecia… lenta. Lenta demais. As asas subiam e desciam enquanto voava ao redor do corpo; com o cadáver largado ao chão sem vida — sem ser mais o que foi e nem o que poderia ter sido. Completamente… esquecido. Salvo as lembranças de quem conviveu com ele. Mas mesmo essas pessoas morreriam, então mesmo essa pequena ‘prova’ de sua existência se perderia.

    O que seria do cadáver então, se não apenas um pedaço de carne deixada para apodrecer?

    Nada!

    Ou pior: um empecilho. Uma ‘obrigação’ que um soldado mais jovem teria que limpar pois seus colegas lhe deixaram a cargo disso.

    Então, qual o sentido disso tudo?

    Era isso que Elian estava experimentando agora.

    Não era que ele não sentia nada, pelo contrário — sentia muito. Seu corpo apenas o protegeu do trauma.

    Mas aqui, sozinho, ele tinha tempo de sobra para encarar a realidade. Processar essa experiência de vida.

    “Eu também vou virar um corpo largado em qualquer lugar?”

    Rangeu os dentes, o estômago embrulhava; o mundo girou e, quando se deu por si, estava de bruços, sobre os joelhos. As duas mãos apertavam fortemente a barriga.

    A sensação de vômito veio, mas nada saiu. Era pior. Restou apenas o amargor na boca. Um frio na espinha arranhava suas costas, como dedos deslizando sobre a pele; a terra beijava sua testa.

    Ficou ali naquela posição por um tempo. Ele tinha andado muito. Não estava cansado, mas estava em uma colina — mais exposta ao tempo. O mundo estava indiferente em relação ao seu desespero agindo como sempre agiu.

    Mas isso não o incomodava. Não mais do que a lembrança de Kael. Aquele lugar de Brumava com o capitão discutindo com aquele mercador gordo; o corpo jogado no chão; os guardas tensos; aqueles olhos desapontados que o julgavam fortemente. Os olhos de seu amigo, Kael.  Em como, naquele momento, ele não viu apenas seu amigo, mas alguém que sabia do mundo como realmente era. Um mundo além da padaria de Alzira.

    “… ele queria me proteger”

    “Desculpa”

    Tinha alguma coisa entalada na garganta. Perceber seu erro, reconhecer… aquela percepção aliviou por uma grande margem o sentimento que, algum tempo depois, se transformou em alívio. A face de choro veio, mas não se seguiu com lágrimas. Elas não desciam. Mas de qualquer forma, aliviou muito a sensação.

    A realização o atingiu.

    “… eu tenho que me desculpar com ele”

    Ele tinha ignorado Kael completamente por seus próprios motivos mesquinhos. Saber o que era a morte? Que piada. Como se arrependia! Se pudesse voltar no tempo, o faria sem pestanejar. 

    Aquilo só trouxe miséria. Se pôs em maus termos com seu amigo, preocupou sua avó e colocou-se em uma situação complicada com o capitão da guarda, Roderick. Tinha que dar um jeito nisso, mas ainda estava preso naquele sonho.

    “… Há quanto tempo eu estou aqui?”

    Seus olhos estavam apagados. Só queria ir embora. Acordar.

    Algumas folhas de grama estavam agarradas em suas mãos e tinha um pouco na sua testa a medida que ele ficou sentado, apoiado sobre os calcanhares. 

    O céu, um azul claro com o sol imponente ostentando sua luz, ainda não dava sinais de mudança alguma. Ainda muito brilhante, como se o tempo não tivesse passado nem um segundo sequer. 

    Elian encarava a floresta. Ele estava perto agora. De alguma forma, mesmo com a luz do sol sendo obstruída e deixando apenas alguns raios de luz teimosos passarem entre as copas das árvores, ainda era bem atraente para o desesperançoso garoto entrar.

    Já tinha andado e andado. Tudo era igual. A única coisa diferente naquele lugar era aquela floresta. Era sua melhor chance. Ficar parado não ajudaria.

    A passos lentos, porém constantes, ele continuou seu caminho. As árvores de cascas duras o cumprimentavam à medida que ele adentrava mais e mais. Não havia animais. Não havia insetos. A mesma situação de antes. A única vida era o ambiente e, agora, Elian — que se aventurava incerto do seu destino. Por vezes tropeçava e vinha a cair, porém, levantava e seguia em frente. Não tinha muito o que fazer além disso.

    Não havia propósito ou sentido em sua busca naquela floresta. Ele apenas queria seguir em frente e isso era tudo. Talvez fosse um sentimento. Algo… familiar, mas incerto.

    Ou talvez fosse apenas uma esperança frívola. 

    Acreditar em algo em uma situação desesperadora muitas vezes é o que mantém um fio de esperança; mesmo que seja trêmulo, esticado até o limite ao ponto de quebra. Ainda assim, algumas pessoas se prendem nisso. É muitas vezes o que empurra uma pessoa a continuar vivendo, apesar dos pesares, com a esperança de que, no fim, algo valerá a pena ou que terá alguma coisa. 

    Às vezes uma mentira feliz é melhor do que a verdade dolorosa.

    Quem poderia o culpar por perseguir essa pequena chance? Mesmo que nula, era algo. 

    O corpo de Elian estava bem, sem qualquer mudança. Não existia machucado, por mais que tenha passado por situações que o machucaria, como as várias quedas; não existia cansaço, por mais que tivesse andado muito.

    A única coisa que havia era sua cabeça doendo e girando. Ele já havia perdido a noção do tempo.

    O que é a realidade senão aquilo o que se vivencia durante a vida? A realidade de uma flor é germinar enquanto luta pela sobrevivência ao buscar os raios de sol e água para florescer. A realidade de uma mosca é viver na decadência achando um luxo, e para ela é.

    … Às vezes até batendo as asas perto de um corpo para cima e para baixo.

    A realidade para Elian já havia se transformado naquilo: escuridão. Uma solidão esmagadora. Cercado por árvores antigas, perdido. Sem saber mais onde estava a saída. 

    Saída? Existe saída de uma situação desesperadora? E se, no final, tudo for… em vão?

    “… Talvez eu deva ficar”

    — Sim, é isso! — riu loucamente. — vou apenas ficar aqui!

    Ele não estava sujo, mas seu comportamento era feral. Cabelos desgrenhados e nu, como veio ao mundo. Há muito tinha perdido suas roupas. Não precisava mais delas.

    — Por que voltar? Não tem sentido!

    Correu livremente. Uma liberdade plena. As árvores se transformavam em um borrão conforme continuava avançando. Não importa o esforço, não se cansava. Por vezes subia em árvores e ficava brincando se jogando de um lado para o outro nos galhos. Muitas vezes caía, mas sem ferimentos.

    Ficou muito tempo nisso. Tempo suficiente para esquecer algumas coisas importantes.

    “Como eu vim parar aqui?”

    — Eu estou… com medo

    Sua voz saiu fina, cansada. Mas verdadeira.

    O vento passou pelas árvores criando um coral melódico macabro, como se a própria natureza desse risada e zombasse da condição miserável do humano ali presente.

    — Medo é uma coisa boa — uma voz na escuridão respondeu.

    Aquilo foi como um jarro de água para alguém sedento de sede no deserto. Mesmo bem, as pernas de Elian cederam. Ele caiu de cima de um galho em que estava.

    O baque oco não o incomodou nem um pouco.

    — Q- quem? Quem é?!

    — ME RESPONDA!

    Olhava para os arredores. Nada.

    Talvez enfim tivesse cedido à loucura. Quanto tempo se passou apenas vagando por aí, sem rumo? Mesmo a loucura era uma companheira melhor do que a solidão.

    Ele continuou chamando pela voz. Seus passos secos reverberaram pela floresta. Talvez fosse um delírio, mas mesmo assim era algo; um algo que veio de um nada depois de muito tempo. Valioso. Seu corpo ainda era o de uma criança, embora. Não amadureceu nada. 

    — E ai… como é a morte, Elian? — uma voz cortou o ar, sombria.

    Elian se virou. Demorou para reconhecer  a figura. Era alguém  ao chão. Estava na sombra de uma grande árvore e, como estava distante, Elian teve que se aproximar. Passos cautelosos.

    — … Você? 

    A pergunta foi incrédula. Uma surpresa. Um corpo jogado no chão com uma flecha atravessando sua traqueia; o sangue regava o solo.

    Contra todas as lógicas possíveis, ali estava, o mesmo corpo que ele tinha visto antes naquela infeliz situação.

    A voz do sujeito era fria e amarga, carregada de uma mistura de ódio com cinismo seco.

    — A morte… é para você um entretenimento? — mesmo a flecha não impedia o homem de falar, ostentando um sorriso macabro. — Espero que eu tenha sido um bom espetáculo!

    — M- me desculpa! — Elian respondeu, horrorizado.

    O corpo gargalhou. Sua risada ecoou sinistramente pelas árvores antigas da floresta.

    Seu olhar não desviou sequer uma vez. Sempre cravado nos olhos de Elian.

    — Um garotinho assustado! É ISSO O QUE VOCÊ É!

    Deixou as palavras ecoarem, antes de continuar:

    — Faz as coisas como e quando quer, sem  se importar com a vontade dos outros. Sua avó, seu amigo… você não se importa com eles

    — Mentira!

    — Ah… mas é verdade. Olhe para mim! Não passo de um instrumento para satisfazer sua curiosidade! — seus olhos se estreitaram. — mesmo agora, olha pra você garoto… sorrindo

    Elian não acreditou nas palavras do homem, elevando suas mãos para tocar a face, mas o resultado foi inesperado. Ele realmente ostentava um sorriso. Um de orelha a orelha.

    A visão de um corpo falante era de alguma forma… morbidamente cômico. Elian riu com vontade. 

    Riu como nunca riu antes. Parecia a maior piada contada. 

    Mas ele não respondeu nada. Estava cansado. E o que tinha a ser dito? 

    Vendo a falta de resposta do garoto, o homem simplesmente revirou os olhos, enfim ‘morrendo’; em seguida decompondo de maneira visivelmente acelerada. Não demorou muito para se transformar em carne podre, depois em uma pilha de ossos e, por fim, se dissolver em um enxame de moscas.

    Elian observou todo o processo. Calado. Seus olhos fixos a média que a última mosca ia desaparecendo em uma forma brilhosa, dando um pouco de luz além do sol.

    Mas antes dessa mosca desaparecer completamente,  disse:

    — Você é um ser que não deveria ter nascido — a voz agora um sussurro fraco. — Um erro…

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