O estômago de Kael roncava.

    Este era seu despertador natural.

    As pálpebras, ainda sonolentas, custavam a abrir. A visão embaçada precisou de um tempo para focar. O teto remendado foi o que o comprimentou depois que conseguiu enxergar com clareza. Não era o melhor, mas era o que o protegia do tempo. Bom o suficiente.

    A cama, um amontoado de palha fofa que causava coceiras, era coberta com algumas roupas esfarrapadas. Estava a apenas alguns centímetros acima do solo. Quase não fazia diferença de já dormir no chão. 

    Mesmo assim, o chão era frio. Desconfortável. Ele ainda lembrava de quando não tinha nem isso para repousar o corpo.

    Definitivamente era melhor ter do que não ter.

    Croco estava ao lado, dormindo profundamente aninhado mansamente junto ao corpo de Kael.

    Sempre dormia junto dele. O calor era aconchegante para os dois. Ajudava no frio da noite.

    Nos últimos meses a aparência dele melhorou muito. De um cão maltrapilho — quase só pele e osso — para até ter alguma gordura. Seus pelos mais fartos e bem cuidados.

    Por mais que Kael cuidasse bem dele à sua maneira, sozinho não conseguia fazer muito. Sobreviver já era quase um luxo. Todavia, a situação de ambos melhorou: o cão estava bem e ele melhor ainda. Tudo isso era graças a Alzira.

    Quem imaginaria que o menino que ele salvou no beco aquele dia seria o neto da única padeira do local?

    Foi apenas natural a velha senhora os ajudar. E ainda continuava ajudando. Kael tinha grande consideração pela mulher.

    O destino trabalha em linhas tortas, é certo.

    Porém, quis este mesmo destino que as coisas se complicassem. Era sempre assim. Uma situação boa não durava muito tempo.

    A preguiça estava tomando conta do corpo. Kael não queria levantar, mas tinha que o fazer.

    Croco grunhiu ao movimento de levantar de Kael, colocando uma pata sobre o abdômen dele para fazer o mesmo deitar de novo. Estava confortável.

    Kael acariciava sua cabeça.

    — Eu sei. Eu sei. Mas temos que levantar, amigão

    Quem ouvisse, não reconheceria o garoto agora; a sua voz falando com o cão era diferente. 

    Croco balançava o rabo em movimentos circulares. Batia na perna de Kael, trazendo consigo uma sensação agradável. De sua boca, caía um pouco de saliva.

    — Não me olha assim. Temos que levantar.

    Demorou alguns minutos a mais na cama antes de se por de pé. Quando se tratava de Croco, ele era um pouco mais mole.

    Caminhou até um balde de água. Era de madeira; quase podre, mas servia ao propósito. Perfeito.

    Sempre deixava pronto de noite. Como morava perto de um riacho, pegava um pouco de água para o outro dia. Também servia para Croco beber.

    Quanto ao uso dela, ele não se importava de usar a mesma água que o Croco bebia.

    Tinha um pouco de remela no olho e baba seca no rosto. Conseguia ver pelo reflexo do balde. Agachou-se para pegar um punhado com as mãos, em concha, e lavar-se. Logo sua face estava limpa de novo.

    Fez a mesma coisa com o resto do corpo. A água pela manhã, fria, despertava pelo desconforto. A parte mais difícil era jogar o primeiro volume de água, depois ficava mais fácil.

    — Hora de comer — disse, secando-se.

    Alzira tinha dado alguns pães no dia anterior. Ele não tinha comido tudo. Fazia parte de sua natureza ser precavido. Aprendeu essa tática quando passava por situações de ficar dias sem comer. Outros tempos.

    — Croco, pega.

    O cão abocanhou o pão que voou em sua direção precisamente.

    — Bom garoto!

    Quanto a si, ele estava encostado na porta, comendo; vendo os pássaros cantarem . Sempre cantavam lindamente.

    O sol estava nascendo. A vista era muito boa, mesmo com as árvores ao redor atrapalhando.

    Uma pena. Seria algo a se apreciar se sua mente não lhe causasse aborrecimento.

    A situação na caravana. Ainda fresca na memória.

    O fato de Elian querer ver um corpo.

    “… idiota”, estalou a língua com o pensamento.

    Kael quase toda sua vida estava a mercê do destino, nada podendo fazer para mudar isso. Sozinho, se virava como podia. Conseguia comer e beber por aprender a viver assim: na miséria.

    Era diferente de Elian. Demais.

    Elian tinha uma casa quente, um teto sem goteiras e comida quando quisesse. Uma vida invejável. O que ele queria ver com um corpo? Pior, aquilo parecia causar-lhe fascínio.

    Era para Kael… estranho.

    Ele sempre conviveu largado a violência de Brumalva. Já viu muitos corpos jogados em qualquer lugar com os ratos comendo. Apodrecendo ao ar livre. Somente a igreja parecia se importar, fazendo funerais mesmo aos que não tinham ninguém presentes.  De uma coisa Kael sabia: não tinha nada de fascinante na morte.

    Para ele Elian era um tolo. 

    Elian tinha uma vida muito, muito fácil. Nunca passou dificuldade. E agora queria arrumar problemas.

    “Será que ele não sabia que voltar poderia arrumar pra a cabeça?”

    “… Claro que não. Ainda é muito novo”

    Kael tinha doze anos, mas via a situação com uma maturidade que muitos adultos ainda não tinham desenvolvido.

    — … Talvez eu deva ir lá — a voz saiu um sussurro de seus lábios.

    Mas foi o suficiente para Croco escutar.

    Latiu.

    Concordava com seu dono. Ele já tinha terminado há muito o seu pão.

    — Hehe… você também acha, Croco? Certo, eu acho que eu vou lá

    De qualquer forma, que amizade não tinha suas desavenças? A melhor forma de lidar com uma situação complicada com alguém que se tem um laço era conversando. 

    O problema era que… Kael não sabia fazer isso.

    Na realidade, ele era quase um recluso. Não muito melhor que Elian quando se tratava de situações sociais.

    “Talvez eu só deva ir lá, como sempre?”

    — Não, isso não vai funcionar.

    “Seria mais fácil só aparecer lá como sempre, mas o negócio de antes deixou a situação estranha”

    “Se eu for primeiro vou parecer fraco?”

    “Elian, sobre ontem… não, isso tá idiota”

    Kael tinha algumas linhas em sua testa.

    — … Droga

    O cão observava a situação, sentado. Sua cabeça ia da esquerda para a direita e da direita para a esquerda. Acompanhava Kael indo de um lado a outro.

    Croco soltou um som baixo, entre um bocejo e um resmungo satisfeito — um daqueles ruídos fofos que só os cães sabiam fazer.

    — Você está certo — disse. — Talvez eu só esteja complicando demais essas coisas. Apenas vamos lá e pronto

    Croco latiu com a decisão.

    — Sim, sim — concordou, antes de olhar para baixo. — …Só deixa eu colocar alguma roupa. Tou pelado 

    Era cedo ainda. O ar fresco da manhã era puro e enchia os pulmões. O sol já estava um pouco acima da linha do horizonte, com seus raios de luz iluminando Brumalva.

    Os passos de Kael e Croco amassavam a grama, emitindo um som mais alto que o normal — a calmaria matutina não escondia o ruído.  

    Foram necessários alguns passos para chegar perto do centro do lugar.

    A caravana, antes barulhenta mesmo pela manhã, já havia partido. Beltrão Moura já havia encerrado seus negócios por hora. De sua passagem por ali só restou a bagunça: destroços de objetos, caixas de madeiras quebradas e alguns alimentos.

    O que era ainda bom para o consumo muito provavelmente as pessoas já haviam levado. Kael mesmo já foi um destes antes. Agora só havia restado o que não prestava, podre, mas mesmo estes eram disputados com os ratos e outros insetos.

    “Que bagunça…”

    “Vão ter trabalho para arrumar isso depois. Aposto que Roderick vai mandar os guardas limparem”

    Ele deu uma pequena risada com o pensamento.

    E então, mais um latido. Kael virou rapidamente. As mãos em um aperto firme; os olhos, encolhidos como a ponta de uma agulha, procurando uma ameaça.

    Mas foi desapontante o que viu.

    Era Croco. Correu para tentar emboscar um corvo que estava comendo um pedaço de repolho.

    Suspiro.

    — Croco, não… — disse, estendendo a mão. — E lá se vai ele

    O pássaro voou rapidamente, coaxando de insatisfação pelos ares, incomodado por ter seu banquete interrompido; deixou apenas o cão latindo sucessivamente no chão.

    Os ratos já tinham se dispensado por várias direções diferentes, mas não haviam fugido — apenas esperando pela oportunidade de voltar ao local e voltarem a comer.

    — Croco, vamos embora. Agora

    O cão se virou, olhando para Kael e depois para o corvo, insistindo em sua busca.

    — Não me faça repetir

    Croco soltou um som triste, mas cedeu.

    — Você está fazendo muito barulho logo pela manhã — Kael explicou. — Não quero problema

    Andando em direção a padaria de Alzira, falava sozinho.

    Não tinha muitas pessoas nas ruas. Os poucos transeuntes que haviam estavam ocupados com seus próprios afazeres, abrindo lojas, carregando ferramentas — mesmo entrando em alguns becos escuros.

    Ninguém realmente se preocupava com uma criança qualquer. E isso era perfeito para o desavergonhado Kael.

    — Eh… Elian, olha…

    “Não, assim não…”

    — Vamos esquecer isso e continuar como se nunca tivesse acontecido…

    “… isso é coisa de mulher”

    Conforme divagava, suas mãos se comunicavam junto com a boca. Ensaiando uma conversa como um vendedor tentando vender um vaso de planta inútil para uma senhora idosa.

    À medida que se aproximava do destino, seu coração palpitava mais forte.

    As mãos subiram sobre a cabeça, coçando-a.

    — Isso é muito difícil!

    Quase passaria despercebido se ele continuasse em seu dilema, mas lá estava, o local que o corpo tinha caído. O local que Roderick e Beltrão estavam em um impasse, indiferentes pelo corpo morto, mais interessados nas consequências do ato em si que tirou-lhe a vida.

    O chão ainda tinha uma mancha vermelha onde o homem morreu com uma flecha atravessada no pescoço. Um leve cheiro de metal, se prestasse atenção, ainda podia ser sentido.

    Kael apenas deu uma olhada. Nada mais que isso, continuando seu caminho. Tinha algo mais importante para fazer.

    Ainda em seu trajeto, ouviu o badalar de um sino. Alto. Ecoava por todos os Lugares de Brumalva.

    A capela. Oito horas da manhã o sino tocava. Era a rotina.

    Tinha mais pessoas que o normal reunidas.

    “…Provavelmente o caso de ontem”

    Kael ficou parado, olhando o enorme sino no alto da capela. Foi quando ouviu alguém conhecido.

    — Faz tempo que não lhe vejo, jovem Kael.

    Era uma voz conhecida. Elizabeth, a irmã que ministra as missas.

    Uma mulher jovem. Cabelos loiros presos firmemente em um coque que ficavam muito bem escondidos debaixo de um manto. Uma alma boa. Um enorme contraste entre ela e Brumalva.

    Sabia ler. Uma habilidade pouco desenvolvida entre os comuns. Sabia conversar muito bem. A forma que ela conduzia as missas também eram muito boas. Sempre ajudando os necessitados, Kael incluso, quando podia. 

    Uma das poucas pessoas boas em Brumalva, pela visão de Kael.

    Ele não entendia o que uma mulher como aquela estava fazendo em um fim de mundo como esse. Com aquelas habilidades, ela poderia estar aproveitando muito mais o que o mundo podia oferecer. Até entrar em um monastério melhor. Qualquer coisa já parecia melhor que a capela decadente de Brumalva.

    Kael, mais novo, lembrava de ter comentado algo parecido com isso com essa irmã.

    A resposta o surpreendeu na época:

    “Todas as pessoas merecem conhecer a grandiosidade de nosso Deus. Não é um trabalho de uma serva fazer a vontade de seu mestre?”

    — Bom dia, tia Liz

    — Quando você me chama de tia eu pareço muito velha

    Ela sorriu ao dizer isso. Um lindo sorriso. Kael retraiu um pouco sua postura e seus ombros ficaram mais tensos, sentindo um calor se instalar nas bochechas.

    Elizabeth era muito bonita.

    Não apenas isso, mas gentil também. Muitas vezes quando ficou com fome era ela quem o ajudava. Até arrumava algumas roupas para ele.

    Apesar de viver largado em meio a violência, podendo viver uma vida como essa também, Kael ser uma pessoa que ainda acreditava na bondade humana era, por uma grande margem, por causa dessa mulher.

    Em seu desespero, ela foi a primeira a estender a mão sem querer nada em troca; em um lugar onde até mesmo a bondade era uma moeda.

    Kael gostava dela, mas Croco não compartilhava do mesmo sentimento.

    Quando a mulher se aproximava, ele se afastava, rosnando baixo.

    — Croco!

    — Hehe… parece que o Croco ainda não gosta muito de mim

    Kael olhou para o lado, não mantendo contato visual. Estava ainda mais envergonhado.

    — De qualquer forma… o que está acontecendo? Tem mais pessoas que o normal hoje

    Ele queria urgentemente mudar de assunto.

    — Vamos realizar o funeral do finado Luriuz. Mesmo sendo um ladrão, merece um enterro — Elizabeth explicou. — Você não quer vir conosco? Tem um novo irmão que chegou recentemente em Brumalva

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