— Você está me dizendo que alcançou o primeiro círculo? — A voz de Varn ecoava enquanto, sentado em seu trono, ouvia atento uma jovem figura feminina.

    Essa não era outra se não Eleanor Talrick, sua filha.

    Seus traços joviais e delicados denunciavam uma beleza encantadora. Com cabelos loiros e levemente ondulados, sua pele branca — mas não pálida — rosada e brilhosa. Seria o tipo de beleza calorosa, não fosse seus olhos azuis frios.

    — Sim, patriarca — Respondeu enquanto fazia uma pequena mesura, pegando as pontas da vestimenta com os seus finos dedos.

    Era um vestido vermelho. Bonito. Seus detalhes rendados deixavam claros que eram obra de um artesão com anos de ofício. Definitivamente caro.

    Talvez o suficiente para alimentar uma família por um mês.

    A luz do dia se esgueirava entre as janelas, iluminando o local. No entanto, Varn, mais ao fundo, ainda não era revelado. Apenas seus pés e pernas visíveis.

    — Quando? — perguntou, e sua voz não carregava o tom autoritário de sempre, porém, ainda longe do tom fraterno de um pai orgulhoso.

    — Ontem… mais ao anoitecer — A jovem disse sem rodeios. — Não foi difícil

    O coração da jovem batia levemente com alegria e um sorriso quase imperceptível estava em sua face. Orgulhosa de si mesma.

    Varn, entretanto, não era do tipo comemorativo.

    — E nem deveria. Você é uma Talrick

    Apenas isso. Seco. Não foi um ‘parabéns’, muito menos uma comemoração; Foi apenas o esperado e isso era tudo.

    — Sim, patriarca — respondeu, firme, mas seus lábios tremeram um pouco. Os nós dos dedos, brancos, apertavam o vestido com mais força.

    Aquilo foi um balde de água fria no inverno.

    O homem, ainda sentado, apenas continuou olhando para baixo.

    — Porém, uma conquista ainda é uma conquista — Disse, e isso fez os olhos de Eleanor brilharem com algum singelo entusiasmo. —- O que deseja? Contanto que seja possível, providenciarei

    Aquilo era uma oportunidade rara e ela sabia.

    — Eu quero orientações do senhor, pai… ! …. digo, patriarca!

    Varn bufou e seu descontentamento era evidente.

    — … Ajeite sua postura. É suficiente

    Eleanor, ainda em reverência, seguiu conforme o pedido de seu pai. Seus olhos, no entanto, ainda não conseguiam se encontrar com os do homem.

    Em parte pelas sombras, sim, mas também por uma parede invisível, fria, que os dois construíram em um relacionamento distante com o passar dos anos.

    Alguns segundos de respirações passaram antes de Varn perguntar:

    — Por que magos são temidos?

    Uma pergunta. Apenas uma. Entretanto, não tinha nada de simples nisso. Não funcionava assim na família Talrick.

    Os olhos de Eleanor tremeram um pouco ao buscar nas memórias alguma resposta que agradasse o homem.

    — Por causa do controle da mana que permite que manipulemos nosso elemento?

    — Não

    A negativa fez ela perder um pouco a compostura. Não estava acostumada a ser contrariada.

    — Poder, então?

    Varn suspirou. Seu rosto agora era visível à medida que apoiava o corpo nos braços sobre as pernas, se inclinando levemente. Se pôs a esclarecer: 

    — Se fosse apenas poder bruto, existiriam apenas os magos criando engenhos de cerco. Covardes demais para a guerra

    Eleanor ainda o olhava fixamente, com aqueles olhos azuis. Não compreendendo o todo. Varn então continuou:

    — Dobramos a mana de acordo com nossa vontade. Nossas experiências próprias. Um mago de pleno direito é um mago que descobriu seu próprio caminho. Aqueles que tomam um rumo mais fácil, sempre serão mais fracos se comparados aos que realmente se esforçaram e descobriram por si mesmos. Essa também é a principal diferença entre os magos nobres e plebeus

    O homem fez uma expressão azeda; seu nariz e testa se enrugando. Um contraste feroz com a tirania controlada de sua persona.

    — … A mera ilusão de ter o dom da mana faz com que aqueles tolos achem que estão no mesmo nível que nós, sangues puros — disse, ao mesmo tempo que olhava para o lado, lembrando de algo distante. — Mas isso também é bom, pois o controle é uma ferramenta. Você entende, Eleanor?

    — … Sim, patriarca

    O homem então voltou a se recostar sobre seu trono. Havia muitos fios brancos em sua barba e em seu cabelo. Não era mais tão jovem e sua coluna fazia bem o favor de lembrá-lo disso.

    Mas agora não tinham mais tantas sombras no local. Seu olhar pesado ainda continuava visível para Eleanor.

    — Contanto que você entenda… — disse, apoiando o queixo sobre a mão. — Você é uma mulher, portanto, não poderá herdar o legado de nossa casa. A posição será de um dos seus irmãos. Mas como mulher, ainda deve se casar com um bom homem de uma boa família. Eu tenho alguns contatos, posso cobrar alguns favores e…

    — NÃO!

    O grito de Eleanor foi alto o suficiente para assustar alguns pássaros que estavam fora da residência em cima de uma árvore.

    — … Não? 

    A pergunta de Varn, gélida, fez o coração da Jovem tremer.

    Ela realmente tinha contrariado seu próprio pai?

    Um zunir estava ao seu ouvido devido ao choque da realidade.

    — Pai… digo, patriarca… — gaguejou, enquanto buscava as palavras certas.

    “O que eu digo?!” Pensou por uma fração de respiração, e os olhos predadores de seu pai, ainda sobre ela, não ajudavam

    Varn Talrick, no entanto, não era um homem que permitia aqueles abaixo dele ditar alguma coisa. Mesmo que fossem o próprio sangue.

    — Duas escolhas — disse, cortando a jovem. — Você se casa, e eu garanto que o pretendente seja de uma linhagem nobre e respeitável, ou você se sujeita ao caminho arcano, aceitando o fardo que isso implica. Decida

    A jovem Eleanor estava incrédula. Se perguntava como uma notícia aparentemente boa caminhou até uma decisão que ditaria o destino de sua vida.

    Seu pai, Varn Talrick, realmente não tinha consideração alguma por ela?

    Ela não era contra a ideia de se casar. Se encontrasse alguém que gostasse e sentisse algo, provavelmente se casaria; mas com um completo estranho?

    Impensável.

    E quando descobriu, mais nova, que poderia manifestar mana, sentiu imensa alegria. Seu pai era um mago, logo, sentiria orgulho quando ela alcançasse o primeiro círculo. Talvez enfim ele mostraria algo que não fosse o frio patriarca de sempre.

    Ingenuidade de sua parte, parece.

    Quando colocadas lado a lado, as duas escolhas tinham uma resposta clara:

    — Eu quero ser uma maga! — disse em tom firme e decisivo.

    Por um longo momento, os dois se encaravam. Uma conversa onde palavras não eram ditas, mas eram trocadas por olhares.

    O homem aprovou levemente com a cabeça. Suas intenções nebulosas.

    — Fique reta — Varn ordenou. — É uma maga agora

    — Como maga, agora você tem deveres que devem cumprir — disse, mas seus olhos mostravam emoções complicadas demais para a jovem entender com apenas a pouca experiência de vida que tinha. 

    — … Deveres?

    — Sim, com o reino. Daqui a dois anos, quando você estiver com quinze, vai assinar com sua mana o registro oficial dos magos… 

    Varn tomou um tempo para respirar antes de continuar: 

    — Uma cerimônia oficial

    As palavras, pesadas, pareceram ganhar um novo significado para a entusiasmada jovem. Um que o homem há muito esqueceu, ou forçou-se a isso.

    Ele via como, apesar da máscara nobre que a jovem mantinha proficientemente esconder bem, ela estava entusiasmada.

    No entanto, ele não se expressou sobre isso.

    Eleanor fez uma outra mesura.

    — Obrigada… patriarca — agradeceu graciosamente, mas sua face denunciava algo

    Mas o homem não deixaria isso passar.

    — Foi sua escolha. Não há volta

    — O quê?

    — Sua escolha — Varn ressaltou — Foi você quem optou por isso, por que essa cara?

    Eleanor levou um tempo para compreender a situação e, quando o fez, um sorriso ameaçou escapar, mas foi rapidamente desfeito.

    — Não é isso, patriarca. Estou contente com minha escolha é só… eu tinha direito à um pedido

    O vento suavemente adentrava o ambiente, e isso refrescava a memória também.

    Era verdade. Ela não havia pedido nada.

    — O que deseja?

    A sala agora estava apenas com um homem encarando o líquido transbordante de uma taça.

    Pensativo, vez ou outra ele bebia um pouco.

    — Ela me lembra você… isso me preocupa 

    Varn deixou o recipiente sobre o trono, olhando para o reflexo de algo que aparecia no vinho.

    O pedido da garota ainda fresco na memória.

    Ele riu um pouco relembrando a cena. Quem visse Varn Talrick agora, acharia, enfim, que o homem tinha ficado louco.

    Seus olhos pousaram sobre o líquido rubro.

    — Não me olha assim. Eu estou fazendo o melhor por ela

    Sua mão, então, derrubou a taça, que se fragmentou em variados cacos, o vinho escorria pelo chão e levantava um aroma doce.

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