Capítulo 2 — Um cão, um estranho e um sonho
Primeiro, o som abafado de um chute.
Um grito de dor.
Depois, outro chute.
E mais um.
E então, silêncio: combinava com uma viela esquecida como aquela.
— Droga, está morto? — um dos garotos recuava, ofegante. — Achei que ele duraria mais tempo como boneco de treino.
— Já chega, ele vai acabar morrendo — disse outro deles; a voz transmitia insegurança.
— Que morra — retrucou, mas seus punhos já haviam se afrouxado.
E então, passos quebraram o silêncio instalado no beco. As duas vozes calaram-se, dando passagem à nova figura.
A pouca luz das lamparinas, que lutavam contra as sombras, revelava uma jovem de feições delicadas e roupas limpas e bordadas — contrastando fortemente com o local.
— Nossa… que bagunça vocês fizeram com ele! — as palavras saiam de seus lábios com delicadeza, abaixando-se ao lado de um quarto indivíduo caído. — Olha… parece que ele ainda respira. Isso é uma surpresa.
Ela analisou mais de perto a situação.
No chão, havia um menino caído, com sangue escorrendo da boca.
Talvez por sadismo, ou simples curiosidade, puxou-o pelos cabelos e ergueu sua cabeça.
— É bonito, até. Pena que seja apenas um plebeu.
O menino caído não conseguia ver nada. Sua vista estava embaçada. Seu corpo doía em vários lugares, e ele se sentia muito cansado. Queria apenas dormir.
Ele não sabia o que tinha feito para parar ali.
Só lembrava que tinha saído de casa com algumas moedas para comprar farinha. Não achou que seria um problema, pois ainda havia muitas pessoas nas ruas.
Tudo estava como de costume: os homens bêbados andando entre tropeços, outros rindo deles, e alguns poucos seguindo o exemplo. Uma sinfonia descoordenada de música cantada por bebuns na única taverna de Brumalva.
As mulheres com roupas curtas demais, gesticulando para os rapazes que passavam.
Vendedores oferecendo seus produtos aos pedestres, competindo uns com os outros pela atenção da clientela.
Tudo parecia muito normal. Tão normal que ele não entendia o motivo de sua avó ficar tão preocupada.
“Elian, cuide-se. Vá comprar a farinha e volte rapidamente, tudo bem? Tem muitas pessoas malucas por aí no mundo.”
Mas agora ele entendia.
Estava andando pelas ruas quando tropeçou em uma pedra. Uma simples pedra o fez perder o equilíbrio e esbarrar em alguém.
Até aí, tudo bem — tropeçar e esbarrar em alguém não seria um problema.
O problema foi em quem ele esbarrou.
E, pelo visto, era alguém importante demais para ser tocado por um plebeu.
Apesar de se desculpar e fazer de tudo para não elevar os ânimos, tudo foi em vão.
Parece que quanto mais tentava, mais piorava.
Ou, talvez, aquelas pessoas só buscavam um pretexto para brigar.
De qualquer forma, ele não entendia o motivo de estar naquela situação.
Ali, naquele chão de lama e excrementos, só podia aceitar sua realidade.
“Que merda… eu queria ser forte… se eu fosse forte… talvez…”
E não sabia o que pensar.
O que faria se fosse forte? Se vingaria?
De todo modo, ali estava ele: em um estado miserável. Essa era a verdade nua e crua.
Não adiantava pensar em cenários frutos da imaginação.
Ele era fraco e, em um mundo como aquele, os fracos estavam à mercê dos fortes.
E ele sabia disso.
Isso era tudo.
Se tivesse forças para chorar, choraria.
O chão frio abraçava todo o seu corpo. A lama agarrava-se a ele.
A menina que o observava logo pareceu perder o interesse. Levantou-se e bateu as mãos uma na outra, tentando limpar a sujeira de ter tocado em um plebeu.
— Vamos — a voz agora sem o tom sádico de antes. — Isso já perdeu a graça.
— Mas, Eleanor, esse filho da puta esbarrou em você! Vai deixar ele ir apenas com isso? — retrucou um dos meninos.
— Sim. E vocês já o puniram. É o suficiente.
— Mas… — disse a outra figura.
— Mas o quê? — Por fim, a menina pareceu perder um pouco da calma que naturalmente havia. — De repente, parece que vocês estão se tornando muito rebeldes. Devo lembrá-los do motivo pelo qual a Casa Talrick valoriza a força acima de tudo?
De repente, o ar pareceu se tornar mais pesado. O ambiente ficou mais quente.
Mesmo os ratos e baratas nos entulhos se apressaram para sair do beco.
Pequenas faíscas começaram a se formar ao redor da jovem garota, iluminando um pouco mais o local.
Mesmo com a visão prejudicada, Elian conseguiu ver.
“Magia?”, pensou, observando as faíscas que giravam em torno da garota.
Ele ouvira histórias — raras, distantes, quase lendas.
Mas era assim mesmo? Aquilo era magia?
Nunca tinha visto pessoalmente. Era algo raro.
Embora existisse no mundo, apenas pessoas com afinidade com a mana podiam usar esse recurso.
Por vezes, ele se pegava sonhando com a chance de um dia manifestar esse dom.
As faíscas dançavam ao redor da garota como pequenos vaga-lumes, acendendo e apagando.
Era uma visão simples, mas intimidadora — aos olhos dos garotos, ela parecia uma entidade.
E então… tudo cessou.
Eleanor simplesmente deu meia-volta com naturalidade, como se não tivesse acabado de ameaçar dois garotos e um terceiro largado no chão.
Suas roupas bordadas balançavam ao vento frio da noite enquanto se afastava.
Os outros dois a seguiram em silêncio, de cabeça baixa.
Elian apenas observava o silêncio voltar ao beco, à medida que o som dos passos se distanciava.
Tentou levantar, mas não conseguiu.
Suspirou e tentou de novo, dessa vez com mais força — nada.
No fim, apenas bufou.
Foi o que conseguiu fazer.
“Droga… Eu estou um caco. A vovó vai ficar preocupada.”
Apesar de inútil, ele ainda tentava levantar.
Cada respiração era uma luta. Seu corpo não respondia aos comandos.
Mas então ouviu passos. De novo.
“Porra! Vieram completar o serviço? Se arrependeram de me deixar vivo? Ainda queria fazer muitas coisas… Ainda queria, mesmo que uma última vez, ver a vovó…”
No entanto, os sons eram diferentes.
Não pareciam os pesados sapatos pomposos dos nobres.
Não transmitiam a arrogância de alguém grande.
Logo, ouviu um latido.
Uma figura se aproximava.
Ele só conseguia ver borrões. O sangue atrapalhava. A mistura de luz e sombra deixavam as coisas indistinguíveis.
De repente, alguém estava de pé, olhando para ele.
Uma voz juvenil, cheia de tédio — mas com um sarcasmo natural — ressoou.
— Já vi cachorros moribundos com mais vida que você, amigo. Um necromante novato falhou tentando trazer você de volta?
Elian piscou algumas vezes. Tentou falar, mas não conseguiu.
— Não consegue nem responder? Isso é falta de educação, cara — disse a voz, agora mais próxima. — Isso é bem rude, até pra mim. Isso não parece falta de educação, Croco?
Um breve silêncio. Um suspiro resignado.
“Quem caralhos é Croco? Merda… Topei com um doido.”
— Sabe de uma coisa? Vou te deixar jogado aí, então — disse, virando-se de costas. — Se morrer, não é problema meu.
“Não! Volta! Por favor…”
O menino se distanciou apenas alguns passos…
Mas ainda conseguia escutar a respiração pesada de Elian.
Por algum motivo — talvez pelo silêncio da noite — o som parecia alto demais.
Ele não conseguiu ignorar.
— Droga! Ok, ok, tá legal? Vou te ajudar — Bufou. — Eu não acho que conseguiria dormir sabendo que poderia ter feito algo e não fiz.
Elian sentiu algo quente nas costas — um casaco? Um pano velho? Não sabia.
Depois, mãos pequenas, porém firmes, o puxaram com cuidado.
— Não morre, idiota. É um trampo do cacete arrastar defunto.
Antes de apagar de vez, o esforço do salvador misterioso de o carregar foi a última coisa que viu naquela noite.
Quando abriu os olhos, estava em um lugar impossível.
Acima das nuvens.
O céu se estendia em todas as direções e, abaixo, o mundo parecia minúsculo.
Não sentia medo, nem frio — apenas estranheza.
Estava no corpo de outra pessoa. Um mero observador.
Montanhas ao longe. Florestas. Nada fazia sentido.
“Que lugar é este? Eu me lembro apenas de estar jogado naquele beco…”
E então, uma voz.
Doce. Antiga. Transbordava autoridade.
— Entendo.
Demorou um tempo para perceber: a voz saía dele mesmo. Do corpo que ele habitava naquele instante.
— É realmente fascinante. Não sei como foi feito… mas funciona. Por hora.
Elian tentava entender. Não conseguia.
“O que que funciona?”
— Você ainda não está pronto. Não ainda. Volte.
“Espera! Quem é você?”
Então, foi retirado de sua posição como observador. A visão que o comprimentou foi de tirar o fôlego.
Uma mulher. Uma especialmente bonita. De feições delicadas e cabelo negro sedoso.
— Que fofo… Como eu disse, você não está pronto — Disse, empurrando-o para fora daquele espaço.
Em seguida, Elian se sentiu caindo em um buraco infinito e vasto, perdido em pensamentos e tomado por dúvidas.
“Quem era aquela pessoa? Por que parecia… familiar?”
E então, acordou.
Molhado. Áspero. Cheiro de bafo.
Um cão o lambia.
Quando abriu os olhos, o animal se afastou — assustado.
Um teto de madeira gasta foi a primeira coisa que viu.
Cheiro de poeira e mofo preenchia o ambiente.
Seu coração estava acelerado — uma prova imutável de que não era imaginação.
O que viu aconteceu.
E era real.
“Esses sonhos… de novo…”
Deixando esses pensamentos de lado, tentou se levantar — arrependimento imediato.
Seu corpo doía por inteiro.
— Onde estou? — murmurou, deitando-se novamente.
Olhou ao redor.
Um barraco improvisado, feito de tábuas, pedaços de cercas e panos esticados.
Tudo dava a impressão de desabar a qualquer momento.
Mas, por dentro… estava limpo, ainda que o chão fosse de barro.
E então, inesperadamente, um rosnado soou de um dos cantos da casa, assustando Elian.
Com dificuldade, ele virou o pescoço, tentando ver melhor a fonte do som.
“O cachorro de antes?”
Magro, pelo falhado, postura firme.
Observava-o com olhos atentos — como se avaliasse uma ameaça.
Logo em seguida, passos. E uma voz.
— O que foi, Croco?
Cabelos desgrenhados. Roupas um pouco grandes demais.
Um menino. Um pouco mais velho que Elian.
O cão abanava o rabo freneticamente.
— Isso ai, amigo. Quem é o meu parceirão, hein? — Afagava a cabeça do animal, antes de se sentir incomodado por algo.
Um olhar. Vinha da cama improvisada.
— Ah, olha ele aí. Enfim acordou. Achei que você tinha batido as botas ou algo assim. Já estava quase me arrependendo de ter te ajudado.
Sentou-se em um banco baixo. — Enterrar um corpo dá mó trabalho — continuou. — Bem-vindo ao meu humilde castelo!
Nenhuma resposta.
— Sabe, cara, você é mudo ou algo assim? Ou te deram uma surra tão boa que você ficou traumatizado?
Mais silêncio.
— De boa. Vou pegar um pão pra mim e fingir que você não existe, então.
— …Onde eu estou? — Elian finalmente disse.
Ele não conhecia aquele garoto. Sentia-se desconfortável com a situação.
— Onde mais seria, cara? — o outro respondeu. — Você está em Brumalva. O lugar esquecido por todos… — disse, enquanto abocanhava um pão.
Não parecia se importar com a confusão de Elian.
Pegou mais dois pães.
— Toma, Croco — jogou um para o cão. — Esse é pra você. Pega.
O arremesso veio de surpresa. Por pouco Elian não pega o alimento.
— Valeu.
O menino não respondeu. Apenas balançou a cabeça afirmativamente.
Naquele momento, nenhum dos dois sabia — mas seus destinos haviam acabado de se entrelaçar.
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