O último cliente saiu da loja, deixando uma mulher sozinha — apoiada no balcão.

    Havia pó de farinha em suas roupas e um pouco nos cabelos, presos num coque firme.

    A única luz vinha das brasas do forno.

    Suas mãos estavam cerradas num aperto. Os nós dos dedos, brancos. Os olhos, presos nas marcas do tempo em sua própria pele.

    — O que eu faria se eu te perdesse, menino? — murmurou, e um suspiro escapou junto.

    Uma lágrima escorreu da pálpebra, secando antes de tocar o rosto. Talvez pelo calor, talvez pela pele ressecada.

    Permaneceu ali por mais tempo do que devia. Precisava.

    Mas não podia.

    Só restou a marca das mãos no pó do balcão — arrastado.

    Pegou um recipiente de madeira e logo encheu com alguns pães e biscoitos. Elian gostava.

    Ali naquele momento, relembrar o passado foi inevitável. 

    Foi em um dia nada parecido com aquele — solitário. A noite já tinha se aproximado e Alzira preparava-se para dormir. A cama, enorme, apenas ela. Quantas vezes já não passou noites em claro alí?

    Quando conseguia dormir, sonhava. Sonhava que tinha conseguido ter uma família. Um marido amoroso e protetor, filhos amáveis, um lar acolhedor… antes daquelas palavras soarem e transformar tudo em um desastre:

    — Você é amaldiçoada. — Com tristeza uma velha senhora explicou. — Seu ventre é amaldiçoado, criança. Nunca poderá gerar um filho.

    Aquela cabana era fria a ponto de fazer qualquer calor escapar, mesmo com paredes estruturadas.

    Depois de tantas tentativas para engravidar, buscar orientação foi sua única escolha. 

    Quando saiu da moradia, o vento frio tirou-a do transe. Não era um pesadelo, a sensação causava-lhe arrepios sobre os braços. Chegando em casa, caiu em prantos. Chorou como se voltasse a ser uma menininha.

    Talvez fosse ainda pior do que quando era pequena. Não havia ninguém para a consolar. 

    Naquele momento seu destino de ser mãe e seu parceiro a abandonaram. 

    Ela tinha apenas vinte anos quando ouviu aquelas palavras. Ainda agora, depois de tantos anos, machucava.

    Aquela situação a assombrava desde então. Havia perdido as contas de quantas vezes acordava em plena madrugada — cabelos agarrados ao corpo devido ao suor. 

    Os olhos escuros e opacos daquela idosa em sua memória. Mesmo em sua morte, depois de algum tempo, ainda vivia como uma lembrança amarga.

    Arfava pesadamente naquela cama. Sozinha, como sempre.

    E então, um choro — distante.

    Ainda assim, ecoava em seu coração.

    Vinha do lado de fora. Um apelo que ela não teria como ignorar.

    Um surto de sua cabeça? Talvez ela tivesse enfim cedido à loucura. Talvez seus pesadelos tenham ganhado voz. Ainda assim, ela tinha que verificar. Algo a chamava.

    O piso frio da madeira sobre seus pés não a incomodavam. Seus passos continuavam firmes.

    Quando abriu a porta, o frio a abraçou. Brumalva a comprimentava com a tristeza habitual, exceto por algo diferente: um cesto.

    Abandonado na noite. Coberto com alguns farrapos.

    Um choro entregue a incerteza da vida  — mas que lutava para ser ouvido.

    A forma que encontrou de desafiar seu destino.

    Alzira viu aqueles pés rosados saindo entre os buracos dos panos. Quando se deu por si, o bebê já estava aninhado em seus braços. Pequeno. Frágil. 

    Os cabelos tão negros quanto a escuridão que fazia naquela madrugada. Os olhos azuis como a luz da lua refletida na água.

    Ela soube na hora. Foi abençoada com uma nova chance. 

    — Elian… seu nome será Elian. Deus, por meio de você, também me salvou. — Declarou, acariciando-lhe o rosto.

    Aquela mão pequena abraçou firmemente o dedo de Alzira, finalmente se acalmando. Um momento que ela guardava com carinho no coração.

    Saber que essa chance quase foi tirada dela foi um golpe forte no peito. Um que não suportaria.

    A falta de propósito, o grito sem voz preso na garganta, o vazio no peito ainda eram bem vividos. 

    Elian curou muitas dessas feridas e continuava curando — mas havia cicatrizes que nunca se apagariam.

    Depois que ele entrou em sua vida, tudo mudou. Não se imaginava sem ele. Não podia. 

    Então quando ela percebeu que o jovem ainda não tinha voltado, procurou. Procurou sem rumo.

    Mesmo os bêbados jogados em qualquer canto já dormiam.

    Apenas ela e a luz do luar.

    Estava cansada, mas não conseguia dormir. Voltou para casa tentando não pensar no pior.

    Não havia dormido, nem comido. Abriu a loja pelo hábito. O sorriso, automático — ela não precisava disfarçar. A boca seca com gosto de metal, mesmo na ausência do sangue.

    Mas quando viu ele, desmoronou. Sua máscara não se sustentava no rosto.

    Os machucados, a sujeira, a roupa rasgada. Tudo a machucava. Ressoava em cada parte do seu ser, como se pudesse sentir a dor.

    Mas acima disso tudo, restava o alívio. Alívio por poder segurá-lo de novo nos braços.

    Ao lado dele havia outra pessoa, um menino. Ela não havia se importado no momento, mas agora, segurava a travessa com força. Seu neto nunca havia trazido visitas.

    Elian era amável. Doce. Sabia disso melhor do que ninguém, mas, ainda assim, não procurava fazer amigos ou brincar, tal qual outras crianças da mesma idade. Isso a preocupava. 

    O jovem era diferente. Alzira não sabia explicar, mas sentia. Muitas vezes parecia presente, sim, mas, ao mesmo tempo, distante. Algo que só era possível ver em pessoas mais velhas, com vivência, não uma criança. Todavia, eram apenas momentos — com o menino agindo normalmente depois de um tempo. 

    Começou depois de um aniversário, o de 5 anos. Sem amigos, nem parentes. Apenas eles e um bolo quentinho que ela havia feito. Ainda se lembrava do sorriso largo que ele tinha quando comeu o primeiro pedaço. Mas então, quando anoiteceu e foram dormir, foi acordada repentinamente na madrugada.

    Seu neto repousava ao lado, em sono profundo. Imperturbável. Estava murmurando enquanto dormia. O idioma? Nenhum que ela reconhecia. Não era o que falavam nas terras mais ao norte. Parecia algo… que o mundo já tinha esquecido — ou tentava.

    Então quando amanheceu e o menino acordou, estava apático. Os olhos azuis vibrantes — apagados. Fitavam algo que ela não conseguia ver. 

    O que não a preocupou foi que, apesar disso, ele não apresentava confusão alguma, além de que isso durou apenas um breve momento. Entretanto, desde o ocorrido, sempre vem acontecendo. Todas as noites. 

    Por isso sabia. Havia ocorrido na noite anterior também.

    “Não adianta pensar sobre isso, adianta?”, balançou a cabeça, afastando tais pensamentos.

    Estava parada enquanto olhava a porta, a única barreira que separava ela dos dois meninos. Os petiscos estavam cheirosos.

    Apesar de tudo, trabalhar com pães sempre foi sua vocação. Sentia orgulho disso. Seus esforços não a trairiam, refletindo-se no maravilhoso cheiro que ela estava sentindo naquele momento — fazendo com que um sorriso se formasse.

    — Vó? — Elian gritou de dentro do quarto. — A senhora está bem?

    — Estou sim. — Respondeu, entrando no lugar. — Apenas estava pegando essas coisas.

    — Vamos comer, tá? — Alzira soltou as palavras com carinho, colocando a travessa em cima da mesa. 

    Era rústica, sendo apenas uma tora. Mas funcionava. Em cima dela, os pães ainda quentes já perfumavam o lugar.

    Sentados em outro canto, duas figuras já salivavam. Croco parecia ter uma fonte no lugar da boca.

    — Oh, meu Deus! — A mulher exclamou em preocupação, juntando as mãos na altura do rosto. — Que rude da minha parte! Vocês também podem vir, venham!

    Mesmo após isso, não se moveram. Elian notou.

    — Qual é, cara? Vai ficar todo acanhadinho aí, agora? — Disse, arqueando a sobrancelha. — Ué, cade o “não tem problema em ser forte?”

    Ele tinha percebido que, desde que chegaram, seu convidado estava retraído. Entendia o sentimento.

    Por outro lado Kael observava como Elian deixava as feições sérias tentando o imitar. Não sabia se ficava zangado, mas tinha a impressão que mesmo se tentasse, não conseguiria. 

    Um sorriso surgiu em seu rosto. Nem tinha percebido.

    — Ok, ok. Você tem um ponto. — Levantando as mãos em rendição. — Vamos, Croco.

    O cão respondeu abanando o rabo.

    Apesar de tentar parecer forte, ainda era uma criança. Uma casa com comida fresca? Fazia algum tempo que ele não sentia a sensação.

    Sentia fome, sim, mas controlava suas necessidades. Focava apenas na sobrevivência. Quantas vezes já não partiu o mesmo pão em vários pedaços para comer durante os dias?

    Agora, naquele exato momento, estava vendo comida suficiente para durar semanas e estava simplesmente sendo convidado para comer junto? Por mais que a barriga protestasse, a razão ainda o comandava.

    Ou assim seria, se não fosse Elian o provocando. E o cheiro da comida também era tentador demais. Quando se deu por si, já estava sentado perto da mesa. Um maravilhoso pedaço de carne seca já estava derretendo-se na sua boca. Croco igualmente parecia perdido em meio ao que escolher dentre as coisas que Kael jogou no chão.

    — Para quem tava com vergonha lá atrás, agora tá comendo bem, né? — Elian disse, zombeteiro. 

    — Vergonha não enche a barriga de ninguém! — Kael retrucou, mas um leve rubor havia surgido em suas bochechas.

    — Obrigado… tia. — Continuou, mas os olhos ainda estavam focados na comida.

    Alzira apenas acenou com a cabeça pelo agradecimento. Um sorriso repousava em seus lábios. Toda aquela situação, embora estranha, ainda era boa.

    Tirando os clientes, há muito tempo não recebia visitas.

    — Bom… acho que está na hora de me contarem o que aconteceu. Não acham?

    Elian retornou de volta à mesa o pedaço de pão que tinha pegado, apenas para Kael pegar em seguida e devorar — imperturbável pelo clima.

    Por um instante, se entreolharam. O olhar de Kael parecia dizer: “Se vira. Estou comendo.”

    Um suspiro se seguiu. Foi abandonado por um pão.

    Droga… ela não vai deixar isso de lado, vai? O olhar de sua avó, mesmo que com ternura, ainda repousava sobre ele.

    Isso respondeu sua pergunta interna.

    — Vó… não é como se eu não quisesse te contar. É tudo tão estranho que eu não sei por onde começar…

    — Do início.

    — … Quê?

    — Começa do início.

    Ele não queria. Era uma memória dolorosa. Desviava o olhar para o chão. O corpo retraído.

    Mas conhecia sua avó. Ela  queria e tinha o direito de saber.

    O jovem contou tudo, desde o momento que tinha saído, ao esbarrão com o grupo de jovens, o espancamento e como Kael o salvou. Não escondeu nada de sua avó.

    Por vezes a mão da mulher tremia, mas seu olhar sobre Elian nunca vacilou.

    Mesmo Croco havia ficado quieto, deitado. Parecia entender.

    A história já havia acabado, mas todos ainda estavam sentados. Alzira tinha as mãos juntas, servindo de apoio para a cabeça.

    — Você está bem, vó?

    — Estou sim. Essa velha aqui apenas precisa de um momento…

    Kael apenas observava. Por mais que se simpatizasse com a situação, sabia que não havia espaço para ele alí.

    Foi quando sentiu uma mão repousar sobre a sua. Quente. Firme.

    — Obrigada. — Alzira disse. — Obrigada pelo que fez. Se não fosse por você… eu temo…

    E a voz falhava. Ela não conseguia terminar. A feição chorosa.

    Elian correu para abraçar sua avó, que retribuiu o abraço. A mulher então desabou e as lágrimas caíram.

    — Não foi nada… — Kael respondeu, baixinho.

    A imagem da mulher forte que ele tinha montado na cabeça, se fragmentou. Agora o que via era apenas uma mulher preocupada com sua família, se permitindo ser frágil — o que era raro naquele lugar.

    Elian permitiu aquele momento por mais algum tempo, antes de afastar sua avó. A expressão que ela tinha no rosto era dolorosa. Um olhar que marcava.

    Não se parecia com a tristeza de um joelho ralado. Era profundamente mais doloroso. Pesava na alma.

    “Não… eu não quero ver você com esses olhos.”

    Seus dedos pequenos tentavam enxugar as lágrimas que teimosamente ainda caíam do rosto da mulher.

    — Não chore, vó. Eu estou aqui. Estou bem.

    — Sim, você está certo…

    Levou alguns longos instantes para a mulher se acalmar. Já era tarde da noite. Elian já estava dormindo.

    Devido ao que aconteceu mais cedo, Alzira insistiu para que Kael ficasse, que dormisse ali por aquela noite.

    O jovem aceitou, mas sabia que não era só por gratidão o convite.

    — Precisamos conversar. — A senhora disse. Duas xícaras de chá na mão. 

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