Capítulo 109 - A terrível arte da escolha
Takashi estava dirigindo, retornando para sua casa depois de terminar seu trabalho. O farol iluminava a rua vazia.
Era cerca de três horas da madrugada. Já não era normal encontrar pedestres pelas ruas, principalmente nas áreas que costumavam ser mais movimentadas durante o dia.
Aquele dia de trabalho se seguiu de forma natural porque, desde que o departamento abriu mão de vários casos criminais problemáticos, eles puderam voltar aos mais rotineiros, como roubos e outras ocorrências mais “comuns”.
No entanto, para Takashi, aquilo só tinha aumentado seus problemas. O desaparecimento de Masato ainda estava sob investigação — da forma como a polícia trabalhava —, mas Takashi decidiu levar isso de outra forma.
Ele estava certo de que portadores estavam dominando as ruas há algum tempo, mas estava se abstendo de se envolver devido ao filho e ao passado que o seguia.
Caleb, filho de Olívia, estava observando Mayck a fim de descobrir se ele estava envolvido com os portadores, mas não havia resultados até aquele momento.
Era assustador pensar que tantas coisas ruins poderiam estar acontecendo debaixo de seu nariz. Eventualmente, tudo poderia mudar da noite para o dia, e tudo o que os meros figurantes poderiam fazer era sofrer com uma catástrofe iminente.
“Será que Sophia se sentia assim?”
Naquele tempo ele também vivia nas sombras. Sua amada lutava todos os dias para proteger sua família, e ele nem sequer imaginava isso. Quando percebeu, já era tarde demais para fazer alguma coisa.
Takashi não queria ver isso se repetir outra vez.
Vendo o sinal vermelho, ele freou e esperou. Porém, neste período de tempo, seus olhos foram guiados por uma movimentação estranha em um beco. Ele se inclinou sobre o volante, forçando sua vista.
“O que é aquilo?”
Estava escuro ali, então não era possível dizer o que era.
Movido pela curiosidade e sua obrigação como policial, ele encostou o carro perto da calçada, desligou o motor e saiu. A arma em sua cintura foi destravada e colocada em punho, pronta para qualquer situação perigosa.
Calmo e silencioso, ele seguiu até o beco, andando próximo à parede para evitar surpresas.
O chuvisco que caía desde a manhã, deixou o clima úmido. Cada passo de Takashi carregava um peso desconhecido e ressoava em seu interior. Ele não conseguia afastar a sensação de não estar sozinho.
Assim que se aproximou do beco, espreitou e rapidamente avançou, analisando cada centímetro dele.
Não havia ninguém ali, à primeira vista. Lixeiras e o encanamento dos edifícios ao lado eram o principal ali. Aquele beco se estendia até um muro a poucos metros de distância, então se houvesse alguém ali, deveria estar ali.
Onde está? Não tinha como sair sem eu ter visto.
Em segredo, no fundo de seu coração, ele cultivava uma esperança não muito boa. Seria essa uma pista para o que tanto procurava?
Seus batimentos estavam acelerados. Sua profissão não permitia que ele se sentisse instável numa situação daquelas, já que esse tipo de coisa não era tão incomum em uma busca por criminosos. Porém, normalmente, ele teria uma equipe, então fazer isso sozinho mudava a perspectiva.
Ficando nervoso a cada movimento, ele sentia cada molécula de seu corpo levemente aquecido se agitar e entrar em conflito com o ar úmido e gelado.
De repente, um barulho nas latas de lixo o fizeram apontar sua arma para elas, mas era apenas um gato de rua, que logo saltou para longe, assustado.
“Não me assuste desse jeito”, suspirou de alívio.
Por um momento ele pensou que tinha sido surpreendido por algo desagradável…
Não estava errado, no fim.
Num segundo após esse, um som grave e incompreensível correu por suas costas, fazendo suas células estremecerem e seu corpo arrepiar cada fio de cabelo.
Sua respiração travou. O que quer que fosse aquilo, não era para estar ali. Era algo que fedia a sangue e carne podre, odor que impregnou suas narinas, fazendo Takashi ter um refluxo instantâneo.
Em um movimento rápido, ele se virou apenas para ver uma criatura serpentina que estava pendurada atrás dele, olhando-o, com uma face grotesca, que facilmente seria confundida com a de um oni. Os dentes pontiagudos e enfileirados estavam cheios de sangue e havia restos de carne entre eles.
Uma visão realmente irreal, mas Takashi nem sequer teve tempo de refletir sobre isso.
Seus instintos de sobrevivência o fizeram disparar contra aquela coisa três vezes. Ele acertou à queima roupa. Obteve sucesso. Um líquido espesso, roxo, derramou no chão como um vazamento, mas nem sinal de que havia causado algum dano real naquele Ninkai.
Um tiro acertou no olho, os outros dois em partes aleatórias do rosto, mas nada parecia ter mudado.
As mãos de Takashi estremeceram. Já tinha ouvido de Olívia sobre aqueles monstros e se perguntava o motivo de nunca tê-los encontrado antes. Mas, pensando melhor, era bom que nunca tivesse encontrado.
O policial deu um passo para trás involuntariamente, suando frio, seus batimentos eram incalculáveis e nada se passava em sua mente a não ser sua vontade de fugir.
“O que é essa coisa—”
Sua voz mal saía de sua garganta, e o que saiu foi apenas isso.
O Ninkai grunhiu de um jeito estranho, abrindo sua bocarra mais que um ser humano conseguiria, revelando suas centenas de dentes.
Ele avançou contra o homem, cujo único reflexo foi fechar os olhos e aceitar o seu fim. Ele conseguia sentir o odor e o bafo horrível que vinha daquele ser imundo, prestes a devorá-lo vivo, mas um estalo mudou tudo.
Não era um mero estalo, mas um disparo que se assemelhava a uma arma de fogo.
Takashi abriu os olhos. Um rastro enorme de sangue roxo em sua frente, que se entendia até a rua. A cabeça que estava lá havia sido completamente estourada como um balão de água.
“O que aconteceu…?” olhou perplexo.
Suas balas — apesar de atravessarem o monstro — nem fizeram cócegas, mas um único disparo desconhecido foi capaz de neutralizá-lo com tanta facilidade?
Para o bem ou para o mal, isso foi obra do homem que surgiu atrás dele como um fantasma, portando uma arma estranha nas mãos.
“Uau”, exclamou. “Essa foi por pouco. Encontrar um Ninkai desses é como ganhar uma passagem direta para o paraíso. Claro, se você tiver sido uma pessoa boa.”
Aquele homem gargalhou levemente, guardando sua arma de aparência estranha no coldre embaixo do sobretudo.
Takashi, que ainda se recuperava do choque, se virou lentamente para ele. Aquela voz não lhe era estranha. A risada muito menos. Seus olhos se arregalaram e seu corpo congelou por um instante.
“Por que…”, disse Takashi, incrédulo. “Por que você está aqui, Masato?”
Seus olhos se encontraram e um silêncio sufocante pairou sobre eles por segundos que mais pareciam horas. Masato não parecia se importar com isso, no entanto. Em vez disso, ele sorriu.
“Isso é o que você diz depois de reencontrar seu melhor amigo? Hahaha! Bom, eu não te culpo. Muitas coisas aconteceram, não é?”
Obviamente, a reação de Takashi foi completamente diferente. Seu tom de voz diminuiu, mas dava para perceber que ele estava furioso.
“Você simplesmente desapareceu sem dizer nada. Todo mundo está preocupado, procurando você igual um bando de malucos. Onde você esteve o tempo todo?!”
“Ei, tenha calma. Não precisa de tanto barulho. Eu estou bem, como pode ver. Só precisei sair para cuidar de alguns assuntos.”
“Hm? Do que você tá falando?”
Masato caminhou até Takashi e parou ao seu lado, observando o corpo do Ninkai se desintegrar como poeira, cair no chão e finalmente desaparecer misteriosamente.
“Meu objetivo, Takashi. Apenas isso.”
“Seu objetivo— Cara! Você tem ideia de como Tsukiko-san e Hana-chan estão?! Tsukiko-san nem sai de casa por você ter sumido. Elas estão arrasadas.”
“É, eu sei. Não tinha como evitar isso. Eu sei de tudo o que está acontecendo, mas eu já sabia muito bem que seria assim.”
Takashi estava confuso com as palavras de Masato. Não faziam sentido. Ele torceu o nariz e empurrou o ombro de seu amigo, fazendo-o olhar diretamente para ele.
“Olha, eu não sei o que está acontecendo, mas se quiser me falar alguma coisa, é só falar. Que tal voltarmos, ein? Já está tarde, você pode passar a noite na minha casa e amanhã nós vamos até a sua. Pode ser?”
Masato não respondeu, mas apenas continuou olhando para ele, sorrindo. Só havia uma forma de interpretar aquele olhar e Takashi percebeu isso quase imediatamente, recuando com hesitação.
“Você… foi embora por vontade própria?”
Era difícil aceitar, mas a resposta era óbvia. Masato sumiu, e quando voltou, matou um Ninkai assustador com apenas um tiro, sem sequer hesitar. O significado estava claro.
“Olha só, não tinha outra maneira e eu queria evitar consequências piores… Quer dizer, as coisas seriam diferentes se ele não tivesse se metido. Enfim, eu escolhi fazer assim. Não tenho intenção de voltar.”
“De quem você tá falando? Como assim interferiu? Masato, no que foi que você se meteu? O que é tão importante assim que fez você abandonar a própria família—”
“Me diga, Takashi, você não sente falta de Sophia?”
“Sophia? O que ela tem a ver com isso?”, retrucou.
“Você perdeu não só Sophia, como também a Alana. Não sente falta delas?”
Sua voz estava séria. Apesar de querer desconversar e tentar entender o que seu amigo planejava, Takashi sentiu que deveria responder com a mesma seriedade. Era esse o tipo de situação que eles estavam.
Depois de uma pausa rápida, Takashi respirou fundo e moveu os lábios.
“É claro que sim. Sophia foi a primeira mulher que eu amei e Alana foi a garotinha que eu segurei nos meus braços no dia em que nasceu. As duas sempre foram e sempre serão valiosas pra mim.”
“E mesmo assim, você se casou com outra mulher, não é? Você tem certeza que as ama de verdade?”, perguntou com um tom sarcástico. Ele estava disposto a por Takashi contra a parede.
“Eu…”
De repente, Takashi se viu em um dilema, onde teria que fazer a fria a cruel decisão de qual vida era melhor. Ele sentia falta de Sophia? Seus sentimentos por ela esfriaram? E quanto a Suzune? Seu amor por ela era mais fraco?
Essas e mais dúvidas inundaram a mente do policial, que ficou em silêncio torturante por vários segundos.
Se eu amo de verdade…? É claro que eu…
Sua língua parecia dobrar na hora de responder, então ele cerrou os dentes com força. Aquela pergunta era apenas para fazê-lo questionar suas escolhas. Era isso. Masato só estava tentando confundi-lo.
Essa não é a primeira vez que eu me pergunto sobre isso. Eu já tenho minha resposta há muito tempo. Eu amo Suzune, de verdade. E meu amor por Sophia está refletido no cuidado que eu tenho pelo meu filho. É um laço que eu nunca vou quebrar.
Ele fechou os olhos por um breve momento e os abriu. Agora, seu olhar estava confiante. Ele poderia dar uma resposta verdadeira.
“Eu amo todas elas. Amo Sophia e amo Suzune. Não amo uma mais que a outra. Ambas são importantes pra mim. Sophia se foi… o que eu sinto por ela é a melhor das minhas lembranças e mesmo que eu tenha um novo amor, isso não vai mudar.”
Masato riu alto.
“Porra. Que hipócrita da sua parte. Não consigo imaginar alguém que possa dividir o mesmo sentimento por duas pessoas diferentes. Se isso for mesmo verdade, então eu sinto inveja de você, Takashi. Sinto inveja por não ser capaz de amar Tsukiko e Hana da mesma forma que amei meu irmão.”
A menção ao falecido pegou Takashi de surpresa. Era sério o que Masato estava dizendo? Depois de tantos anos, ele ainda não havia superado a morte do irmão?
“Masato, ele se foi há mais de vinte anos.”
“E daí? O que eu sinto deveria esfriar apenas por conta disso? Assim como Sophia é preciosa para você, ele é pra mim. Tudo o que eu quero é que ele seja feliz.”
Masato caminhou para fora do beco e levantou seus olhos para o céu nublado. As minúsculas gotas d’água caíam em seu rosto como pequenas partículas de nostalgia, trazendo, à tona, memórias de um passado distante.
“Chame de obsessão, mas eu não vou aceitar o fato que alguém que fez o bem para todos não recebeu nada além da morte. Eu odeio esse mundo por tê-lo recompensado de forma tão fria e cruel”, declarou Masato, seu olhar repleto de determinação.
“Você está preso nisso desde que ele morreu. Eu sei que foi horrível como aconteceu e é óbvio que ele não merecia isso, mas, mesmo assim…”
Takashi baixou os olhos, interrompendo sua fala por um instante.
“Ele… Ele foi uma ótima pessoa, além de um ótimo professor… Masato, mesmo que você esteja buscando vingança, a essa altura, quem fez aquilo com ele já está morto. Não faz sentido seguir esse caminho.”
“Você garante isso?” Masato o olhou de relance, com um olhar assustador.
“O quê?”
“É brincadeira.” Sua expressão mudou drasticamente para seu sorriso habitual. “Se eu quisesse me vingar, eu poderia fazer esse mundo todo sofrer como ele sofreu, mas não é disso que eu estou atrás.”
“Então…”
“Eu quero ele de volta. Eu quero que ele retorne para esse lugar e possa ser feliz como ele merecia ser. Eu quero transformar esse mundo em um lugar digno para ele viver. É tudo o que eu quero”, afirmou com clareza.
Takashi arregalou os olhos por um segundo. Seu coração estava batendo forte novamente. Ele temia a resposta que receberia após sua próxima pergunta, mas teve que arriscar.
“O que você quer dizer quando diz que vai trazê-lo de volta?”
Em resposta, um sorriso malicioso, como Takashi nunca havia visto. Era um lado de Masato que ele sequer imaginou que existia.
Um sentimento de urgência disparou em sua mente. Tinha que parar seu amigo antes que uma besteira maior fosse realizada, foi o que ele pensou.
Nisso, Masato respondeu:
“Quanto a como eu vou fazer isso, eu só preciso do… Opa! Quase falei demais. E aquele cara falou pra mim não contar nada além do necessário, então vou calar a boca. Enfim, até mais, Takashi. Sinta-se livre para tentar me parar.”
Se você tiver alguma chance, disse ele antes de partir tão subitamente quanto apareceu, deixando Takashi sozinho, nas sombras, enquanto o chuvisco acariciava seu rosto e a brisa gélida soprava, como se sussurrando sua incapacidade de segurar qualquer coisa em suas mãos.
“O que aconteceu aqui…?”
Masato apareceu e se foi como um relâmpago numa tempestade. No entanto, isso só ajudou Takashi a perceber que havia muito mais coisa acontecendo do que ele podia imaginar.
Eu não posso deixar as coisas assim. Dessa vez, não vou ficar para trás. Vou recusar totalmente o papel de figurante dessa vez.
<—Da·Si—>
Kurokawa saiu do seu luxuoso banho de banheira. Vestiu-se com roupas leves e sentou-se no sofá aveludado, que ficava de frente a uma enorme janela de vidro, a qual dava uma visão esplêndida da cidade de Tóquio.
A iluminação baixa e incandescente do quarto realçava ainda mais a beleza da paisagem, embora o céu estivesse nublado.
Ao longe, dava para ver a Torre de Tóquio com suas luzes brilhando, mostrando toda a elegância de uma estrutura feita pelo homem.
Na mão de Kurokawa, uma taça de vinho tinto repousava, da qual ele saboreou com toda a calma. Era hora de finalizar mais um dia cheio de trabalho irritante. Até porque, para alguém como ele, isso era o mínimo, ele dizia a si mesmo.
No entanto, apesar de querer desfrutar de um momento simples e repleto de paz, ele não conseguia esquecer o que Takeru havia lhe dito alguns dias atrás.
“Existe alguém que está nos mirando, ein…”
Cortando a facção Takeru da equação, só restava Yamada e Akagi. Apenas eles poderiam representar perigo naquele momento.
“Qual desses dois será?”
No decorrer dos dias, ele tinha observado silenciosamente o conflito entre seus rivais, mas não notou nada relacionado à sua facção, o que o permitiu relaxar um pouco quanto a esse assunto.
“Espero que as coisas não saiam de controle. Tenho que ficar atento”, disse a si mesmo.
A taça de vinho foi deixada na mesinha redonda ao lado, junto a garrafa de vidro.
“É desagradável… Esses caras estão começando a passar dos limites. Nesse ritmo, o governo vai interferir. Se aqueles tontos continuarem, vão acabar sendo tratados como ameaças graves pela Strike Down, melhor, pela Black Room.”
Não era como se a organização estivesse alheia a tudo isso; pelo contrário, a Strike Down vinha combatendo essas facções desde que elas se tornaram mais ativas, o único problema era que elas surgiam como uma praga — ou eram iniciadas por rebeldes, que se opunham a organização, ou elas simplesmente não desapareciam de vez.
A facção Kurokawa, no entanto, era bem especial, ela já contava com anos de história, diferente das outras que eram um amontoado de criminosos; seus interesses estavam além do poder que o submundo podia oferecer.
“Bem, só me resta esperar para ver o que vai acontecer. Não sou idiota o bastante para arriscar tanto por nada. Se todos eles forem arrastados juntos, então é perfeito.”
Kurokawa decidiu deixar o destino das outras facções nas mãos da organização. Se eles fossem retirados da jogada, mesmo que temporariamente, então seria esse o momento de reivindicar o controle do submundo.
Mas ele não estava fazendo tanta questão disso.
“Por enquanto, vou apenas relaxar o máximo que posso. Tenho certeza que vou me encher de trabalho logo mais.”
Levantando-se de seu conforto, Kurokawa andou até a mesa de cabeceira ao lado da cama de casal, forrada com lençóis de alta qualidade. Metendo a mão na última gaveta, tirou de lá uma Desert Eagle dourada, com entalhes brancos, sua fiel companheira desde muito tempo atrás.
“Certamente, não sou uma pessoa normal. Mesmo sem uma ID, eu ainda posso fazer muita coisa. Não tolero idiotas que acham que podem fazer de tudo só por causa de um poderzinho único”, confessou, com um sorriso leve no rosto.
Em sequência, os entalhes da arma emanaram uma luz, confirmando sua ativação. Dava para ver que não era uma arma de fogo comum, mas uma arma especial feita com materiais de fora da ciência normal conhecida.
“E também não acho que esse é o melhor momento para receber um convidado”, concluiu.
Poderia ser apenas para se exibir, mas Kurokawa percebeu que havia mais alguém ali além dele, então preparou-se para eliminar quem quer que fosse.
Apontou sua arma carregada para um certo indivíduo de pé, em silêncio, perto da janela. A iluminação não permitia revelar muito seu rosto, mas era um jovem de cabelos escuros e olhos castanhos que pareciam brilhar com o reflexo da luz interna.
Kurokawa estava sorrindo, mas, por dentro, turbulento. A pergunta de como aquela pessoa tinha entrado ali martelava sua mente de uma forma brutal.
“Achei que não fosse se importar. Vi a porta aberta e acabei entrando”, disse o jovem, olhando fixamente para ele. Seu olhar era indiferente, mas a aura dele era assustadora.
“Hahaha. Pra mentir dessa forma… Eu nunca deixo a porta aberta nem quando estou aqui. Como você entrou?”
Aquilo se tornou um enigma em sua cabeça. A janela não era do tipo que podia ser aberta, então a única forma de entrar seria pela porta, realmente.
Será que eu me descuidei e deixei aberta?
“Bom, isso não interessa agora. Eu estava mesmo querendo falar com você. Líder da facção Kurokawa, Kenzo Kurokawa”, Mayck proferiu o nome verdadeiro do líder, mostrando seu rosto sem preocupações. “Descobrir sobre você me custou mais que o esperado. Então seja bonzinho e faça o que eu digo.”
Atônito, Kenzo travou por um momento, mas logo riu alto, depois de desfazer a expressão surpresa em seu rosto.
“Maldito… O que uma criança está fazendo aqui? Quem mandou você? Takeru? Não. Ele não deve fazer a menor ideia de quem eu sou… Se for apostar, então aposto que é coisa de Akagi.”
“Você faz perguntas demais. Vou ser direto: quero que você passe uma mensagem.”
“Uma mensagem? Então é mesmo ele que está atrás de nós?”
“Do que isso se trata?”
Mayck fingiu ignorância. Kenzo não fazia ideia de quem ele era, então era melhor assim. Dessa forma, poderia mover o que quisesse sem ninguém desconfiar.
Então, ele prosseguiu:
“De qualquer forma, só tem uma coisa que vocês precisam saber. É bom se afastarem totalmente dessa disputa. Se escondam na toca de vocês, que é o governo, e nem pensem em se envolver mais”, gesticulou, falando da forma mais arrogante que conseguia.
Os lábios de Kenzo se contraíram e logo se tornaram um sorriso amargo.
“Oh?… Isso é uma ameaça?”
“Interprete como quiser. Só passe a mensagem… Passe ela para o verdadeiro Kenzo Kurokawa.”
Dessa vez, Kenzo recuou um passo. Sua mão estremeceu, fazendo-o vacilar.
“Não estou entendendo o que você quer dizer. Eu sou Kenzo Kurokawa—”
“Masahiro Nakano. Órfão, não completou os estudos, foi preso por furto três vezes, acusado de estelionato, homicídio e tráfico. Sua ficha é bem mais suja que isso, não?”
Mayck olhava seu celular enquanto citava todos os feitos do homem à sua frente.
Kenzo — agora Masahiro — arregalou os olhos. Sua mão se afrouxou e a arma caiu no chão. Ele nunca imaginou que ouviria seu nome verdadeiro e todo o seu histórico criminal ser dito por alguém fora o verdadeiro Kenzo.
“Como… Como você sabe sobre isso?!” A aura hostil que ele passou a emanar era quase palpável.
“Ouvi por aí. Ah, além disso, você também foi o responsável pelo assassinato de vários políticos, assim como de suas famílias. Conseguiu escapar da prisão várias e várias vezes. Será que foi esse o motivo que levou Kurokawa a fazer de você um representante? Para eliminar seus concorrentes?”
Mayck andou até a parede e recostou-se sobre ela, mantendo seus olhos fixos em Masahiro, o qual não dava nenhum sinal de se acalmar.
Em sua mente, ele repetia que sua vida estava acabada. No momento que alguém descobriu quem ele era, seu destino estava selado.
Naquele ponto, parecia não haver motivos para continuar mentindo e nem fazia sentido continuar. Era simplesmente inútil. A própria reação de Masahiro confirmou as falas do garoto.
“Isso não é da sua conta. Não sei quem é você e nem o quanto sabe, mas você não pode mais ir embora daqui.”
“Sabe que isso não me assusta nenhum pouco? Enfim, é claro que vocês não têm nenhuma chance de ficar no controle. Pensa que eu não sei quem está acobertando vocês?”
Masahiro riu de uma forma desesperançosa.
“Hahaha! Você sabe até isso? Então deve estar ciente do tipo de pessoa que ele é, não é? Continue assim, e sua cabeça vai ser usada de exemplo para todos os filhos da puta que tentarem me atacar.”
Lentamente, ele pegou sua arma no chão e a levantou na direção de Mayck.
“Eu posso dizer só de olhar que você é bem forte. Mas não tem muitas pessoas que podem bater de frente comigo.”
“Hm? Não, não. Você entendeu errado. Meu objetivo aqui não é lutar com você. Só quero que a mensagem seja transmitida para Kenzo, não importa como.”
“Foda-se o que você quer! Não vou deixar alguém que sabe mais que o necessário ir embora vivo. Quem é você afinal de contas? Nah. Não interessa. Apenas morra aqui!”
Masahiro não podia suportar o peso de saber que alguém conhecia sua identidade real. Depois de ser recrutado por Kenzo, jurou que iria escondê-la para o resto da vida. Jurou que viveria reinando ao lado de seu líder sem que ninguém soubesse quem ele já foi um dia.
Isso não significava que ele pretendia mudar ou que estava arrependido. Era apenas um ato de lealdade para consigo mesmo e para com Kenzo. Afinal, no dia em que se submeteu a ele, uma única condição foi imposta a ele e, cumprindo-a, teria tudo o que desejasse.
Não deixe ninguém saber quem você é de verdade. Se isso acontecer, considere-se morto como meu representante.
Essas foram as palavras de Kenzo para ele.
Era certo que, talvez, Kenzo só estivesse tentando proteger sua própria identidade, para evitar que, caso Masahiro fosse pego, o denunciasse e o arrastasse para o fundo do poço.
Com o sangue fervendo, Masahiro não estava interessado em nada além de acabar com a vida daquela pessoa que mostrava ser um grande perigo para ele e sua vida.
Sem hesitar, ele disparou várias vezes contra o garoto. Os projéteis luminosos rasgaram o ar tão rápido quanto uma bala normal. Daquela distância, o acerto era garantido. Masahiro estava confiante por um momento, certo de que havia acabado com um perigo iminente.
No entanto, onde estava o corpo caído e ensanguentado do garoto? Ele não estava ali quando Masahiro olhou.
“Sério. Coisas assim são tão inúteis que me deixam entediado. Vocês não sabem fazer outras coisas não?”
Mayck estava atrás dele. Masahiro arregalou os olhos. Poderia até ter se virado e tomado distância, disparando de novo até garantir o caixão fechado como queria, mas eles não estavam sozinhos naquele quarto. Naquele momento, a terceira figura já tinha perfurado sua garganta com uma adaga.
Estava acompanhado…? Desgraçados….
“Que…m … é vo…cê… ?”
O sangue escorrendo por seu pescoço e encharcando suas roupas limpas até então. Masahiro reuniu suas últimas forças e ódio que conseguiu para questionar a identidade do garoto pela última vez. Infelizmente, muito infelizmente, aquelas eram suas últimas palavras.
“Você já deve ter ouvido falar de mim”, disse Mayck. A máscara branca em seu rosto e seus olhos brilhando em azul, os quais lembravam uma lua cheia num céu totalmente escuro.
“Olh…os Azuis…”
Masahiro caiu após ter a adaga retirada de seu pescoço. Seu sangue rapidamente se espalhou pelo quarto.
“Eu acho que não precisávamos matá-lo, Shidou.”
“Você não especificou nada, então achei que qualquer coisa estava valendo. Além do mais, eu sou Suzuki, não Shidou”, o garoto de cabelos pretos arrepiados reclamou.
“Agora já era. Só resta deixar o recado por escrito. Tem papel e caneta aí?”
Suzuki o encarou de forma estranha, mas sua mente logo se iluminou. Como havia matado Masahiro, não tinha como ele passar a mensagem que Mayck mandou. Nesse caso, seria necessário deixar escrito para quando alguém viesse atrás dele.
“Entendi. Vacilei nessa. Toma aqui.”
Suzuki retirou uma pequena caderneta e uma caneta da pochete que ele sempre carregava consigo.
Mayck pegou os materiais. Ele se perguntou o quão acostumado a isso Suzuki estava, já que ter matado alguém não parecia causar nenhum efeito nele. Deixando isso de lado, ele escreveu o que precisava.
“Vamos. Nosso trabalho aqui terminou. Só resta esperar para ver o que vai acontecer. E lembre-se: bico fechado”, Mayck alertou cerrando levemente os olhos na direção de Suzuki.
“Eu já entendi, relaxa. Mas não tem nenhum perigo de alguém funcionário do hotel encontrar ele antes?”
“Mesmo que isso aconteça, não vai dar em nada. Os chefes dele vão abafar o caso imediatamente caso algo assim aconteça.”
Mayck largou a folha contendo a mensagem ao lado do corpo e saiu pela porta casualmente, seguido de Suzuki. O corredor estava vazio naquele horário e as câmeras de segurança não eram um problema, então eles saíram do hotel sem nenhuma preocupação.
Ambos se separaram na rua, como dois desconhecidos que se encontraram por acaso.
O chuvisco ainda caía. O silêncio tenebroso fazia os pensamentos perturbados do garoto parecerem estar em voz alta, como se fossem sussurros em seus ouvidos, culpando-o e julgando-o por todos os seus crimes.
O que era justificável. Afinal de contas, não dava para contar o tanto de pessoas que Mayck tirou do seu caminho em busca dos seus objetivos.
Ao voltar para casa e encontrar sua Haruna e Suzune, alegres, sentadas na mesa prontas para o jantar, ele não pôde deixar de sentir o arrependimento se apossar de seu coração, torturando-lhe com as verdades mais dolorosas possíveis, contra as quais não haviam palavras para refutá-las.
A desculpa de que todos os que ele matou eram criminosos hediondos já não o consolava mais.
“Bem vindo de volta, Mayck-kun”, Suzune o recebeu com um sorriso gentil.
Haruna também estava sorrindo. Ela havia mudado bastante seu comportamento em relação a ele, desde o último incidente envolvendo seu pai.
“… Sim. Estou de volta.”
Apesar de tudo, Mayck sabia para o que fazia tudo isso. Ele escolheu proteger sua família e seus amigos. Já tinha se decidido há muito tempo. Não importava o quão doloroso fosse o caminho, quanto ele teria que perder, tudo o que queria era um final feliz; mesmo que não fosse para ele.
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