Índice de Capítulo

    Um frio intenso percorreu seu corpo enquanto ela era abraçada por aquele breu intocável. Seus sentidos pareciam ter sumido por um momento, como numa noite de sono pesado. 

    Depois que ela retornou a si, abriu os olhos. Demorou alguns segundos para seus sentidos se ajustarem. 

    Onde eu… vim parar?

    Ela estava sonolenta, sua visão, um pouco embaçada, logo se recuperou.

    As lanternas de bronze foram as primeiras coisas que ela viu. Uma suave luz vermelha preenchia o ambiente. Ao contrário do que ela esperava, era bem aconchegante. 

    Levantou os olhos. As paredes de madeira envernizada, o chão coberto por tatames de palha de arroz deixavam um odor natural pairar. Ao fundo, um altar, e sobre ele uma estátua rodeada por algumas velas aromáticas.

    “Esse lugar…”

    Era exatamente igual a um templo como conhecia. 

    Mas ela sentiu que estava esquecendo algo. Ponderou por um momento… Não parecia ser nada tão importante. 

    Depois de olhar mais um pouco ao redor, percebeu que havia várias portas de correr. Deveria seguir por elas? Algo dizia que sim. 

    Então escolheu uma e caminhou em direção a ela. Aberta a porta, só havia uma luz que acariciava seu rosto suavemente. 

    Ela olhou para dentro daquela luz. Era sua memória. Havia duas crianças brincando e sorrindo em um campo verde, num dia ensolarado. O rosto de uma das crianças estava borrado, como numa foto, mas dava para ver seu sorriso radiante. 

    Enquanto a outra…

    “Aquela sou eu…” Ela piscou algumas vezes, como se tivesse acabado de recuperar lembranças nostálgicas. 

    Ver aquela cena aqueceu seu coração. Ela sentiu isso como se recebesse um abraço carinhoso de quem mais amava. Algo pulsou dentro dela.

    A vontade de sentir aquilo mais uma vez a levou a abrir uma porta atrás da outra, e todas ela mostravam aquelas duas crianças sorrindo. Elas pareciam ser incrivelmente próximas. Fosse nas brincadeiras, na hora do sono… elas estavam sempre juntas. 

    Mas Fuka sentiu falta de algo. Por que ela não conseguia se lembrar do rosto daquela sua amiga? Estava se esquecendo dela aos poucos? 

    Um temor se apossou dela. Não era o que queria. 

    Eu preciso me lembrar!

    Esse sentimento a moveu. Fuka começou a vasculhar todos os cantos daquele templo, buscando por mais portas.

    Eu preciso me lembrar dela!

    Ela achou um corredor extenso com muito mais portas e não hesitou em abrir uma após outra. As memórias iam ficando nubladas e frias, assim como o conforto de estar ali desapareceu, como fumaça ao vento. 

    Os sorrisos pareciam mais forçados, mais fracos. Os dias, mais silenciosos e sombrios. 

    Os pés de Fuka estavam doloridos, ela estava arfando, suor escorrendo por seu rosto que expressava um desespero crescente. 

    Ela parecia estar retomando suas memórias aos poucos, porém, uma enxurrada de sentimentos complexos vieram junto.

    Eu preciso me desculpar com ela…

    Tenho que pedir perdão…

    Eu quero te ver… Hikari…

    Quando a última porta foi aberta, uma luz carmesim invadiu o corredor e Fuka foi transportada para um cenário assustador, sufocante, onde o caos reinava. Chamas para todos os lados, gritos agonizantes irrompiam no ar, cheiro de carne queimada impregnando suas narinas e pessoas fugindo desesperadamente. 

    O calor queimava sua pele e a desolação enchia seus olhos. 

    Eu me lembro disso …

    Paralisada, os olhos de Fuka se encheram, as lágrimas rolaram sem resistência, o coração acelerado doía, como se fosse forçado a bater. 

    Aquele dia estava gravado em sua memória; tão profundamente que a fizera esquecer de muitas coisas importantes.

    Todo o ódio que ela sentia pela Tengoku no Mon parecia injustificável. Coisas como dizer que eles eram o mal e precisavam ser eliminados pareciam até meras desculpas para uma luta fútil. 

    O que eu estou fazendo aqui afinal?

    A garota abaixou-se e cobriu os ouvidos. Seus gemidos eram nada perto dos gritos de agonia das pessoas que corriam ao seu redor, tentando salvar a própria pele.

    “Eu quero ir pra casa…”

    Fuka era só uma criança perdida naquele mundo. Ela não merecia a vida que foi obrigada a carregar. 

    “Hikari… me perdoa…”

    O nome saía de sua boca, mas ela não conseguia lembrar de quem se tratava. 

    “Eu não te ajudei em nada… Por minha culpa… se não fosse por minha culpa, você teria sido salva.”

    Aquele inferno se foi. Fuka novamente estava no templo, agachada em frente a porta a qual só guardava escuridão. Porém, ela não ousou se mover. Permaneceu parada, desejando que sua vida fosse ceifada como uma forma de redenção pelos pecados que ela cometeu contra sua melhor amiga…

    Amiga…

    “Fuka.”

    A voz nostálgica, gentil e suave que ela amava ouvir chegou aos seus ouvidos. Ela se virou levemente. Atrás dela tinha um espelho, mas seu reflexo não se movia como ela. Estava de pé, as mãos para trás em um movimento delicado. 

    Olhos castanhos claros e brilhantes, um cabelo sedoso, tão fino quanto seda. 

    “Hikari…?”

    “Mm… Está chorando de novo? Quantas vezes eu tenho que dizer que está tudo bem?”

    “Mas, Hikari, você… Por minha culpa, você—”

    “Ei, ei. Pare com isso!” A garota no espelho mudou sua expressão para uma falsa raiva, com as bochechas infladas, uma expressão fofa. Era típico de Hikari. “Você não tem culpa de nada. Eu disse que ia te proteger, não disse?”

    Fuka ficou em silêncio e acenou com a cabeça. 

    “Muito bem!” Ela sorriu. E quando Fuka olhou novamente, ela já não estava mais lá. 

    Para onde foi? Eu preciso encontrá-la de novo. 

    Cambaleante, ela se levantou. Ainda havia mais portas a serem abertas em outros corredores. 

    No entanto, antes ela tinha que cuidar daquela pessoa que apareceu no lugar do espelho. Ela estava vestida com a túnica enegrecida da Tengoku no Mon e segurava uma faca ritualística, adornada com uma certa pedra. 

    “Vocês vão sair do meu caminho…”

    Fuka tirou seu capuz. Em sua mão, sua adaga. Então ela se lançou contra a figura que sequer tinha uma aparência. Elas lutaram com suas armas e depois de trocar alguns golpes, Fuka prevaleceu. Após cortar diagonalmente no abdômen, a figura perdeu sua arma e seu equilíbrio, sendo finalizada com um chute giratório que o empurrou para uma das paredes. 

    A parede se quebrou como isopor, lanternas de bronze se quebraram, o chão tingido de vermelho. 

    Fuka tinha um olhar determinado a encontrar sua amiga. Havia muitas coisas para esclarecer. Por isso, ela avançou. Seguiu seus instintos para abrir todas as portas. 

    Vários outros da seita entraram em seu caminho, mas ela os eliminou sem remorso ou hesitação. 

    Eu esperei toda a minha vida até agora por isso. Eu jurei que vocês iriam pagar. Eu vou salvar a memória de Hikari. 

    Conforme prosseguia, ela abria mais portas e mais recordações inundaram sua mente. As batalhas que ela foi travando no caminho a iluminavam. Então ela chegou à última porta do corredor. 

    Ela moveu sua mão e a abriu. 

    Se deparou com uma casa de estilo tradicional japonês. Havia um extenso jardim, e um pequeno riacho corria no meio dele.

    As ameixeiras eram comuns ali e enchiam todo o jardim com suas folhas brilhantes e flores deslumbrantes. 

    Numa pequena ponte de madeira acima do riacho, havia uma garota. Estava sentada, calma, sorrindo. Segurava algumas flores de ameixa gentilmente. Usava um vestido rosa claro, longo, de mangas compridas e tecido delicado. 

    Ela parecia estar feliz. Seu sorriso era encantador. E também, ela era idêntica à Fuka, com apenas algumas diferenças como a cor dos cabelos. Os olhos castanhos claros eram iguais, o rosto arredondado também. 

    Se dissessem que eram irmãs, todos acreditariam. 

    Fuka se aproximou dela e foi percebida imediatamente, sendo recebida com um sorriso caloroso. 

    “Hikari…”

    “Mm? Ah, Fuka-chan. Bom dia. Dormiu bem?”

    “Hm…”

    “Eu estava te esperando. Hihi. Do que vamos brincar hoje?”

    Um abraço invisível, mas gentil envolveu Fuka. Seu coração estava realmente aquecido. Ela se lembrava claramente daquilo. Hikari sempre foi assim. Ela parecia perfeita em todos os aspectos; não sentia raiva, não sentia tristeza. Todos os momentos ao lado dela era como se a vida ganhasse um significado. 

    Fuka apreciava aqueles momentos com sua alma. Ela definitivamente amava Hikari e sabia que também era amada por ela. 

    Elas fizeram outra coroa de flores. Hikari colocou sobre a cabeça de Fuka e deu uma risadinha. 

    “Você realmente fica linda com isso. O que acha de fazermos um colar também? Aposto que vai ficar perfeito.”

    As duas passavam o tempo todo brincando. Correr pelo jardim era simples, mas elas adoravam. Observar as flores sendo carregadas pelo vento, ver os peixinhos nadando no riacho, ouvir o canto dos pássaros e tentar seguí-los apenas para ver seus ninhos, dividir as frutas que Hikari pegava de casa…

    A diversão parecia sem fim. 

    “Hmm… Parece que já é hora de voltar”, dizia ela sempre que o sol estava se pondo. Esse era o único momento em que ela sempre fazia uma expressão tristonha, mas dessa vez parecia diferente, o sorriso vacilou em seu rosto. 

    Fuka a olhou com uma expressão curiosa. 

    “Fuka-chan… eu… Não. Não é nada. Vamos nos ver amanhã de novo, não é?”

    Ela acenou com a cabeça. 

    “Hahaha! Isso é ótimo”, disse ela sorrindo novamente. Depois, desviou seus olhos do riacho para o pôr do sol. “Sabe porquê eu escolhi esse nome pra você? É porque eu amo flores de ameixa. Principalmente quando o vento sopra elas.”

    Num timinho perfeito, um vento forte soprou e balançou os cabelos de Hikari. As pétalas voando fizeram seu novo sorriso destoar dos outros que ela já tinha dado. Parecia mais sincero, mas com um misto de felicidade, medo e tristeza. 

    Fuka continuou ali, na ponte, mesmo após Hikari ir embora.

    Aquela expressão que a garota fez antes de ir a preocupou. Ela queria saber se Hikari estava triste. Teria de perguntar no dia seguinte, mas algo a fez ir atrás dela imediatamente. 

    Com a lua alta no céu, ela correu pelo quintal da casa. E depois de andar muito, Fuka ouviu alguns barulhos estranhos vindo de outra parte do jardim que havia atrás da casa. Pensando ser Hikari, ela correu até lá. Seu coração palpitava de alegria. 

    Mas isso mudou assim que ela alcançou o jardim e se deparou com um grupo de pessoas reunidas em volta de um altar de pedra. Havia um torii do tamanho de uma pessoa sobre ele, que certamente não era usado para guardar a entrada do templo, mas para outra coisa até bizarra. Os pássaros empalhados nele revelavam isso.

    Fuka levou poucos segundos para reparar que a garota acorrentada no meio do torii, com mãos e pés suspensos, era Hikari. 

    Seu coração errou algumas batidas neste momento. Ela não sabia exatamente o que estava acontecendo, mas o vestido molhado e a expressão sem vida da garota denunciavam que não era algo bom. 

    Seu primeiro impulso foi entender o que estava ocorrendo. 

    “Hikari… Hikari!” 

    Sua voz ecoou pelo jardim. Toda a atenção ali se voltou a ela. Hikari ficou surpresa por vê-la ali, embora as circunstâncias não fossem nada boas. 

    “Fuka-chan… Por que está aqui—”

    “O que essa imundice está fazendo aqui? Nós não tínhamos nos livrado dela?” um membro da seita falou. Ele estava claramente enfurecido. 

    “Ela pode ter fugido usando algum feitiço de ilusão. Que surpresa. Até mesmo isso consegue fazer algo tão simples”, comentou outro. 

    “Que seja! Tirem isso daqui. Não vamos atrapalhar o ritual. Matem-na se for preciso!”

    Fuka entendia tudo o que estavam dizendo. O medo de morrer se apossou de seu coração. Ela ficou completamente imóvel enquanto duas pessoas cobertas da cabeça aos pés seguiam na direção dela carregando adagas ritualísticas. 

    “Fuka-chan! Corre!”

    A voz de Hikari atravessou a multidão. 

    “Você tem que fugir, agora!”

    Era o que ela dizia, mas como Fuka poderia abandoná-la ali? A verdade era que Hikari não se importava com sua vida. Todas as garotas que viveram com ela tiveram o mesmo destino trágico depois de tudo aquilo. 

    Hikari seria o último teste, mas Fuka não sabia sobre isso. Ela acreditava que as duas se veriam no dia seguinte e passariam o dia juntas novamente. 

    Mas… mas, Hikari—

    “Não se preocupe comigo! Você tem que se proteger. Eu não consigo fazer nada agora, então, por favor, Fuka…!”

    As lágrimas rolaram pelo rosto de Hikari, que estava incapaz de fazer qualquer coisa. Ela não podia pensar que poderia ver Fuka ser morta em sua frente. 

    Por outro lado, Fuka enfrentava um dilema quase impossível. 

    Não… Não! Eu não quero isso! Eu quero que você fique comigo, Hikari!

    “Vai! Agora!!”

    Fuka deu um passo para trás, prestes a obedecer a ordem. Os dois indivíduos já estavam bem próximos. O coração dela estava tão rápido que parecia que saltaria de seu peito. Foi aí que Fuka deu as costas, sentindo um pavor imenso sobre a decisão que estava para tomar. 

    Não… Eu não vou te abandonar assim!

    Ela desviou do caminho e passou rapidamente pelas duas figuras ali, correndo na direção do altar. 

    Eu vou te salvar! Então, por favor…

    “Não, Fuka-chan! Não venha!”, Hikari clamava, mas nada adiantava. Ela continuava correndo e desviando de todos que entravam em seu caminho. 

    A poucos passos do altar, uma faca foi lançada em suas costas, perfurando até suas entranhas, por conta de seu corpo pequeno. 

    A dor percorrendo até seu cérebro foi alucinante. Ela caiu, sua consciência se esvaindo. 

    “Fuka!!!”

    “Não a deixe chegar perto do altar! Ela vai corrompê-lo!”

    Após isso, um deles chutou Fuka forte e brutalmente, lançando-a para o outro lado do jardim. A faca nas costas foi mais fundo, causando uma dor agonizante. Seu sangue jorrou sobre as camélias brancas e escorreu pelo jardim. 

    Foi a primeira vez que ela viu Hikari chorar. Sua respiração estava falhando, seus órgãos tinham sido perfurados. Ela não sabia quais, no entanto. 

    O ritual teve prosseguimento. Um cântico macabro foi entoado pela seita, o vento começou a uivar de forma misteriosa, os candelabros ao redor do torii emitiam uma luz vermelha bizarra.

    Enquanto Fuka assistia tudo isso, seu coração foi tomado por desolação, dor e uma aflição interminável. Seus olhos se encontraram com os olhos de Hikari. Ao contrário da gentileza de sempre, do conforto que sempre dizia que as coisas ficariam bem, tudo o que ela via era um pedido de socorro amargurado. 

    Hikari… Eu vou te salvar… Hikari… Hikari!

    Fuka levantou seu corpo fraco. Era doloroso, porém, era pior ver Hikari sofrer daquele jeito. Então ela se arrastou, deixando uma trilha de sangue para trás. 

    A seita não percebeu, devido à concentração em seu ritual. O ar estava mais pesado e saturado. Uma pulsação estranha ressoou em seus ouvidos. Não eram de seus próprios corações, mas de algo diferente. Algo que não deveria estar ali. 

    Fuka rastejou até o altar e se agarrou ao torii. 

    “Eu… Eu vou te salvar”, disse, aos prantos. 

    “Fuka-cha…”

    “Não! O que essa praga infernal está fazendo ali?!”

    Alguém abriu os olhos e gritou ao ver a cena. Imediatamente  os demais abriram os olhos, alarmados. 

    O ritual daria errado. 

    “Tirem logo isso de lá!” 

    Com os punhais cerimoniais em mãos, eles avançaram na direção de Fuka, mas era tarde demais. 

    As sombras projetadas pelos candelabros de luz vermelha macabra pareciam crescer a cada segundo e ameaçavam engolir tudo o que havia ali. 

    Depois de tudo, apenas um mar de chamas engolia o jardim. Corpos carbonizados, dilacerados espalhados por toda a parte. 

    Dentro de Fuka, um demônio. 

    Parecia fictício demais. Fuka voltou a si. Dentro do templo, ela estava em choque, arrepios passeavam por seu corpo. 

    “Eu matei todo mundo…”

    Essa memória tinha sido arrancada de sua cabeça. Ela deveria estar satisfeita. Tinha vingado o sofrimento de sua amiga. 

    Mas ela estava vingando o quê, exatamente?

    Já que a morte de Hikari tinha sido causada por ela mesma?

    Seu coração e mente foram tomados por arrependimento. 

    Não havia servido para nada. Toda a sua luta tinha sido inútil. O verdadeiro monstro estava ali o tempo todo. 

    A única forma de se redimir, era matando o que estava dentro dela. Aquele maldito demônio que a possuiu. Ele era a causa de tudo. 

    Fuka agarrou sua cabeça com as mãos e puxou fortemente as orelhas. Apesar da dor, ela parecia não ligar, tudo o que desejava era arrancar isso de dentro dela. 

    “Aaaaaaah!!!”

    Sua raiva e tristeza se manifestaram em um grito que ecoou pelo corredor. 

    Ela não conseguiu arrancar as orelhas. Era doloroso demais, sua cabeça foi tomada por uma dor pulsante. Lágrimas desceram em seu rosto e ela abafou seus gemidos infelizes. 

    Voltando pelo corredor, ela pretendia encontrar uma forma de sair dali. Havia se esquecido de como entrou, mas sabia que precisa dar o fora logo. 

    A sensação de que alguém precisava de sua ajuda palpitava em seu coração, embora ela se perguntava se tinha o direito de ajudar alguém. 

    O que eu estava fazendo mesmo?

    Lembrava que estava perseguindo a Tengoku no Mon, mas não lembrava o motivo. Se era para vingar Hikari, então isso já tinha sido realizado há muito tempo. 

    Era difícil aceitar que era assim que as coisas aconteceram. 

    Possuída por um monstro, ela matou todos, inclusive Hikari. Mas ainda tinha algo faltando, ela não conseguia dizer como tinha acontecido, era só a conclusão que ela tivera depois de presenciar suas memórias. 

    E se…

    Aquela expectativa crescia em seu peito.

    E se eu estiver me esquecendo de mais alguma coisa?

    Sem que ela percebesse, seus passos ficaram mais rápidos. Então ela se viu correndo para outro lugar, para a direção oposta do corredor. Aquela não podia ser a última porta. 

    Por favor… que eu esteja certa!

    Seus cabelos escuros balançando com seus movimentos ligeiros. Os olhos distintos cheios de esperança, enxergaram uma luz branca à frente. Fuka estendeu a mão para agarrá-la. 

    Se for isso, então talvez eu possa me libertar desse monstro!

    A luz estava bem próxima. Fuka teria a pego se não fosse obrigada a recuar seus passos devido aquela presença amedrontadora. 

    Hachishakusama se pôs entre ela e a luz, com sua aura negativa e aterrorizante, como se estivesse ali para evitar que Fuka chegasse a ela. 

    O pavor tomou conta da alma da garota, que recuou alguns passos como um gato assustado. 

    “Finalmente… eu te encontrei… Depois de tanto tempo… eu finalmente percebi o seu valor”, disse ela com uma voz hipnótica, que fazia as entranhas de Fuka se revirarem. 

    Por que logo agora…?! Droga! Minha cabeça tá girando.

    Ela foi atingida por fortes náuseas. 

    Parecia que nem ela seria capaz de resistir àquela pressão e medo anormais causados pela presença de Hachishakusama. 

    Se eu usar… Não! Nem pensar. Eu não vou depender do poder de um monstro!

    O poder do youkai dentro dela talvez fosse o suficiente para dar a volta por cima daquela entidade. 

    Mas foi por causa daquilo que Hikari morreu. Aquele poder era nojento, imundo. Fuka não queria usar isso mesmo que fosse a troco de sua vida

    “Venha… minha raposinha… saía dessa carcaça… Liberte-se e fique junto a mim.” Hachishakusama abriu os braços, mostrando um sorriso largo e assustador, com vários dentes pontiagudos. Seus olhos pareciam refletir um abismo sem fim, onde os gritos mais altos não poderiam ser ouvidos.

    Tudo isso gerou um efeito psicodélico em Fuka, que mal conseguia se manter em pé. Sua cabeça girava e as náuseas ficavam mais fortes a cada segundo. 

    Lutando contra isso, ela se perguntava por que Hachishakusama estava tão obcecada com o youkai dentro dela, quando devia estar atrás de Haruki…

    Haruki?

    O nome a fez se lembrar do seu objetivo ali. 

    É verdade! Eu vim até aqui pra resgatar Yuno e acabar com a maldição de Haruki! Como foi que eu esqueci disso?!

    Ela ficou tão presa ao próprio passado que sequer se lembrava. 

    Mas a situação não mudou muito. De uma forma ou de outra, ela encontrou a fonte de toda aquela situação, então só precisava seguir em frente e derrotar Hachishakusama. 

    Aliás, onde o Kaito tá? Será que se perdeu?

    Antes que ela percebesse, aquele pavor que arrepiava todo o seu corpo desapareceu. 

    Voltando a si, ela pôde enxergar o que realmente importava. 

    Não é hora pra ficar com medo. 

    Ela respirou fundo e recuperou o equilíbrio físico e mental. 

    Derrotar ela era o objetivo desde o início. 

    Sua mão esquerda escorregou por sua coxa e segurou o cabo da adaga, puxando-a na altura do peito. Fuka encarou o youkai. Não havia mais medo em seus olhos. 

    Tudo o que restava, era vencer e sair daquele lugar. 

    Em um rápido movimento, encurtou a distância entre elas e deslizou a lâmina horizontalmente na direção do pescoço do youkai, que movimentou seus longos cabelos em forma de contra ataque, tentando agarrar a garota. 

    Fuka os cortou e continuou a prosseguir, assim que teve a oportunidade, cravou a adaga no peito de Hachishakusama. Mas, não. Como se atacasse uma projeção holográfica, Fuka foi parar do outro lado do corredor. 

    Intangível?! Eu tenho certeza que cortei os cabelos dela.

    Antes que achasse uma resposta, os cabelos se agarraram ao seu pescoço e a estrangularam. Hachishakusama parecia ter o poder de ser intocável quando atacada, mas voltava ao normal quando partia para a ofensiva. 

    Nesse caso, Fuka só precisava atacar ao mesmo tempo; uma tarefa nada fácil. 

    Porcaria!

    Ela foi erguida no ar. Suas vias aéreas estavam sendo obstruídas no aperto. Ela até tentou arrancar os cabelos com as mãos, mas foi inútil, cortar com a adaga também seria impossível, porque ela escorregou das mãos da garota nesse momento. 

    Tudo parecia perdido. Seus pulmões clamavam por ar, mas ela sequer tinha forças para se mover e só podia ficar se debatendo. Não que ela não tivesse o poder para se libertar; ela tinha. Porém, como dito antes, Fuka não queria depender de algo imundo que acabou com a vida de sua preciosa amiga. 

    “Minha linda raposinha… Liberte-se!” 

    Não tinha como escapar das mãos de Hachishakusama de outra forma, então só lhe restava esperar pela morte. 

    Não dá… Eu nem consigo me livrar disso, pensou, Por que eu sou tão inútil?

    Seria igual aquela vez. Ela não salvaria Haruki, não resgataria Yuno e nem estaria ao lado de Kaito. Ela sequer sabia como estava a situação com eles. Rikki estava bem àquela altura? Ele era um cabeça quente, então se não conseguisse manter a calma, certamente perderia. 

    Kaito poderia estar fora de controle também sem saber como salvar os outros. Ele tinha um belo complexo de herói escondido atrás da máscara de alguém que conseguia pensar nas coisas mais idiotas possíveis. 

    Yuno era medroso em comparação aos demais. Ele devia estar sofrendo tanto…

    E eu… não posso fazer nada… Sou fraca… medrosa. Não consigo nem manter uma promessa…

    Seus olhos deixaram as lágrimas correrem pelo rosto avermelhado. Ela estava perdendo a consciência aos poucos. Hachishakusama venceria, tomaria o poder que estava dentro dela e realizaria algum plano obscuro. 

    Era óbvio que aquela era mãe de Haruki possuída por um youkai. 

    Mas uma pessoa comum não deveria suportar tanto… É preciso ter um corpo aprimorado pra isso…

    Uma pessoa normal seria completamente destruída se algo como aquilo tomasse seu lugar, tanto físico quanto espiritual e mentalmente. 

    Enquanto isso permanecia um mistério, Fuka encontrou os olhos dela por um momento; já tinha visto aqueles olhos antes. 

    Havia uma mulher que tentou matá-la naquele fatídico dia… Alguém que fazia parte da seita…

    “Era… você…? Guh!”

    Por que…? Por que?!

    A mãe de Haruki fazia parte da Tengoku no Mon. Então o fato de ela estar em coma há tantos anos significava que Fuka tinha culpa nisso também. Ela tinha sido pega no fogo cruzado, não tinha como ela ter sobrevivido. 

    Quando a GSN atacou, ela garantiu que não restasse nenhum deles.

    Não. Espera. E se eles a deixaram viva de propósito? Haruki interferiu nisso? Não, é impossível, ele era só uma criança nessa época… Então quer dizer que a GSN realmente—

    “Ugh—!” Ela foi apertada mais forte. 

    O mistério estava maior. Ela não queria partir sem entender tudo, mas parecia que isso não seria possível.

    “Alguém… me ajuda—”

    Quando seu fim estava próximo, quando o pescoço dela estava prestes a ser esmagado, uma explosão aconteceu bem ao lado de Hachishakusama. A parede foi explodida e estilhaços voaram para todos os lados. 

    O youkai também foi arremessado para a outra sala ao lado. Os cabelos largaram Fuka e ela caiu no chão, tossindo, tentando recuperar o fôlego. 

    O que foi isso?

    Seus olhos se levantaram pela cortina de poeira. Ela mal podia acreditar no que viu emergindo dela. Kaito e Rikki. Seu coração imediatamente encheu-se de alívio por eles estarem bem.

    ‘Bem’ poderia não ser a palavra correta, já que ambos estavam feridos, em estados lamentáveis, mas estavam vivos. 

    “Vocês…”

    Rikki andou até ela, seus passos estavam pesados.

    “… Que bom que estão bem…”

    “Que porra você tá fazendo, imbecil?!” Ele nem esperou ela se levantar, mas gritou furioso. “Como você conseguiu deixar isso acontecer?!”

    “Ei, pega leve”, Kaito tentou aplacar a raiva do amigo, mas em vão. 

    “Cala a boca você também! Olha aqui, sua idiota! A gente não veio aqui pra salvar você! Viemos pra ajudar aquele merda do Haruki e o bosta do Yuno foi sequestrado”, esbravejou. 

    Fuka não conseguia reagir direito, então apenas ouvia com uma expressão boba e desacreditada. Ela tinha acabado de chegar perto da morte, era sério que estava ouvindo aquele sermão? De Rikki?

    Ele continuou:

    “Eu odeio admitir essa merda, mas você é mais forte do que eu. Eu perdi feio lá fora. Se não fosse por aquele cara… eu já estaria morto.” Seus punhos foram cerrados fortemente, fazendo gotejar um pouco de sangue, os olhos fixos nos tatames refletiam sua frustração. 

    “Mas olha só pra você! Está no chão, de forma patética, apenas por não querer usar seu poder. Se você veio aqui para ajudar aqueles dois, então tem que lutar até o final! Se não, você vai ser só um peso morto aqui.”

    “Já chega, cara… Ela já deve ter entendido”, Kaito insistiu que ele parasse. 

    “Tsc. Ver pessoas ter tanto poder e não usar me irrita.” Ele desviou o olhar. 

    Mas, no fundo, ele tinha razão. O peito de Fuka palpitava e as palavras ressoavam em sua mente. Se aqueles dois não estivessem ali, ela estaria morta a essa altura e terminaria sua vida cheia de arrependimentos, sem poder salvar ninguém. 

    Mas eu não posso usar isso… Foi culpa dele eu ter ferido minha preciosa amiga… Eu não quero usar essa porcaria pra nada.

    Mas ela não tinha força para isso. Em questão de poder próprio, ela não era tão mais forte que Rikki e nem chegava aos pés de Haruki. 

    Uma vez, ela acabou usando. Era uma situação de extremo risco, mas ela simplesmente odiou o que fez com toda a sua alma; jurou que nunca mais o usaria novamente. O nojo que ela sentia era ao ponto de querer morrer só de pensar no que tinha dentro dela. 

    “Olha! Ela tá voltando”, disse Kaito, ao ver a sombra de Hachishakusama se erguer na escuridão da sala ao lado. 

    “Anda logo, Fuka! Não temos tanto tempo assim. Se não quer que a gente morra levanta logo—” Mal terminou de falar e milhões de fios negros e finos atravessaram a parede e agarraram Kaito e Rikki, erguendo-os no ar. 

    Os dois tentaram resistir. Se debateram e até tentaram ativar suas habilidades, mas não conseguiram fazer nada. Seus corpos já estavam chegando no limite. Não dava para saber o que eles tinham enfrentado antes de chegarem ali. 

    Enquanto isso, Fuka os assistia serem estrangulados sem remorso nenhum. Dava para ouvi-los gemendo sem conseguir respirar. 

    Se continuasse assim, em poucos segundos eles morreriam. E ela seria a próxima. 

    Então é assim que vai acabar…? Eu tenho mesmo que depender disso pra lutar?

    Uma fúria emergia das profundezas de seu coração. Sua fraqueza era a culpada de tudo isso, em primeiro lugar. As mãos delas se contraíram no chão, arranhando o tatame sujo. 

    Que porcaria…

    Quando ela pensou que tudo se resolveria, as coisas tomaram um rumo pior. 

    Fui em quem arrastou os três pra isso. Se eu deixar eles morrerem, não vai ter mudado nada… 

    Não havia outra escolha se ela não quisesse esse resultado. Ela precisava lutar. 

    “Fuka…”, Kaito a chamou com dificuldade, tentando arrancar os cabelos de seu pescoço. “Eu não sei por que você tem tanto medo… mas eu sei que você consegue fazer isso… Não se preocupe, a gente te ajuda com o restante depois. Não estamos aqui pra isso?!”

    “Kaito…”

    “Nenhum poder… é uma maldição… A não ser que você faça ele ser isso… Argh! É bom você se levantar e lutar contra qualquer arrependimento.”

    “Rikki…”

    Eles estavam certos. Apesar de não serem um grupo oficialmente, eles já realizaram muitas coisas juntos, já choraram e riram juntos. Se queria salvá-los, então porque não fazer um pequeno favor a si mesma e sacrificar o próprio orgulho por um momento?

    Tanto Kaito quanto Rikki estavam precisando dela. Ela não se perdoaria se os perdesse ali. 

    “Eu… Está bem… Só dessa vez. Eu juro que vou ser mais forte.” Com a voz e o corpo ainda trêmulos, ela se levantou lentamente. 

    O olhos e orelhas de raposa estavam mais visíveis do que nunca, seu cabelo tomando uma tonalidade mais clara e mais vibrante. 

    “Eu vou fazer isso.”

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