Capítulo 117 - Sorrisos roubados
Mayck não sabia o que estava acontecendo dentro daquele templo obscuro.
Já tinha se passado mais de meia hora desde que Rikki entrou, e nem sinais de que estavam voltando seguros.
Ele movimentou sua katana para a esquerda e depois para a direita, desviando alguns pequenos sincelos que vinham em sua direção como pequenos meteoros.
“Já chega disso, não?” Ele parou, encarando Haruki, que mantinha a cabeça baixa. “Não tem mais necessidade de ficar nessa”, disse, com um olhar calmo.
Era um absurdo. Mayck não sabia que Haruki estava sofrendo com a maldição de Hachishakusama? Por que ele esperava uma resposta racional? Porém…
“Haha… é verdade”, respondeu Haruki. “Foi mal. Acabei me empolgando.”
Ele levantou a cabeça e chacoalhou num instante. Seus olhos voltaram ao normal e sua expressão despreocupada retornou ao seu rosto.
“Deu pra ver.”
“Ai ai… Isso foi complicado. Faz tempo que não luto desse jeito intenso. Você não tem piedade mesmo, né?”
“É, sim, claro. Agora para de enrolar. O que foi tudo isso? Você não estava possuído coisa nenhuma. Pra que todo esse teatro?” Mayck gesticulou, exigindo uma explicação.
Em resposta, Haruki sorriu brevemente, mas logo fez uma expressão séria.
“É… não existia maldição nenhuma. Na real, eu tive um motivo pra fazer tudo isso. Eu não deveria falar nada, mas como é pra você, não vou esconder.”
O garoto sentou-se no tronco de uma árvore que estava atrás dele. Mayck se aproximou.
Eles ficaram em silêncio por um momento, apenas ouvindo o som dos insetos da floresta. A chuva já tinha passado há um tempo, mas ameaçava recomeçar em breve.
“Eu te falei que a GSN convocou todo mundo pra uma reunião? Eles disseram que algo grande estava para acontecer, mas não explicaram muita coisa. Depois, veio a Fuka com essa história de youkais.”
“Você achou estranho?”
“Eu pensei que ela estava me zoando naquela hora, mas depois eu lembrei de umas coisas. Aliás, se a GSN estava atrás de alguma coisa viva, nem fudendo que a Strike Down e a Black Room iam deixar passar.”
A explicação de que as duas organizações mais poderosas do país ignoraram um sinal, mesmo que fraco, parecia sem pé nem cabeça — isso não aconteceria de forma alguma.
“Eu percebi que não é como se eles tivessem deixado passar, eles só não estavam detectando aquela coisa em específico.”
“Como assim?” Mayck inclinou a cabeça.
“Você sabe que eles possuem um tipo de radar que mede as radiações anormais tanto de Ninkais quanto de portadores, certo? Pois é. O que a GSN está procurando, não tem esse tipo de energia.”
“Por isso passou despercebida… Essa tal energia são os youkais?”
Haruki acenou com a cabeça.
“Eu até pensei em deixar de lado, mas depois de várias coisas, eu pensei que deveria fazer alguma coisa… Prepara que lá vem história”, disse o garoto, fazendo um gesto malicioso.
Sem escolha, Mayck se sentou ao lado dele com um suspiro.
“Eu nunca te contei sobre minha mãe, né? Pelo menos, não como ela foi parar no hospital.”
“Mm.”
Haruki olhou para o céu escuro. A paisagem em volta deles já estava completamente diferente de uma hora atrás. Árvores caídas, destroços para todos os lados e estilhaços de gelo derretendo.
Com uma voz calma e nostálgica, ele contou sobre sua mãe. Disse que seu pai não era o único seguindo um caminho ruim na vida. Desde jovem, ela participava de uma seita que tinha como objetivo cultuar os seres mitológicos do Japão, a Tengoku no Mon.
Ele só veio a descobrir isso um tempo atrás, alguns meses após sua disputa com Mayck, mas ele apenas fingiu não saber de nada. Ele não queria aceitar que o fato de sua mãe estar em coma era por causa de um ritual falho e o único motivo dela estar viva era porque aceitou ser uma cobaia para o grupo.
“Certo dia, a Tengoku no Mon foi julgada como um grupo homicida e doentio, então o alto escalão da GSN decidiu acabar com eles o mais rápido possível. Eles até fizeram, mas alguns merdas decidiram que a seita tinha muitos conhecimentos úteis.”
“Então eles não foram destruídos totalmente? A GSN resgatou alguns?”
“Isso. Você já deve imaginar o quão incrível é poder invocar uma força mitológica para o nosso mundo, certo? A GSN está atrás disso. Como minha mãe era uma cobaia voluntária, eles deixaram ela viver e a mandaram para um hospital em estado vegetativo. Ah! Não foi a GSN que fez isso. Pelo menos é o que dizem.”
O garoto balançou as mãos, como se estivesse dispersando um possível mal entendido no ar.
“Segundo o que eles disseram, quando chegaram ao lugar, já estava uma bagunça. Parece que um ritual deu errado e uma entidade maligna matou quase todo mundo que estava lá.”
“Então, tecnicamente, eles realmente não destruíram a seita.”
“Positivo. Foi a entidade que eles acabaram invocando, eu acho. Não tenho certeza disso… Mas o ponto é…”
Haruki parou de falar de repente, como se estivesse considerando o que ia dizer em seguida e se deveria ou não continuar. Ele encarou o chão por alguns segundos, deixando Mayck na expectativa.
“Recentemente, eu descobri que a tal entidade era Fuka.”
“Fuka? Ela foi possuída por um youkai?”
“Uh-uh”, ele negou.
Apenas com isso, Mayck entendeu o que ele quis dizer, mas ainda restavam dúvidas. Fuka não foi possuída por uma entidade, mas era a própria entidade.
“Na real, Fuka foi a coisa invocada. Eu não sei os detalhes, mas ela foi resgatada quando já tinha forma humana. E ao que parece, ela já não tinha tantas memórias sobre isso quando eu a conheci.”
“Essa é uma revelação e tanto.”
“Pois é.” O garoto inclinou seu corpo para trás, olhando para o céu novamente. “Descobrir que minha mãe fazia parte de uma seita já foi um choque ferrado…”
“Eu imagino. Mas o que me deixou curioso foi você ter armado tudo isso. Você fingiu estar amaldiçoado apenas para trazer Fuka até aqui? Como foi isso?”
“Ah, sabe como é… Não foi nada tão mirabolante quanto você faz. É que um dia, quando eu visitei minha mãe no hospital, acabei encontrando um membro da Tengoku no Mon escondida entre as enfermeiras. Eu fiquei confuso também, mas decidi investigar. Foi aqui que eu fiquei sabendo de tudo isso.”
“Sobre Fuka também?”
“Isso aí. Eu vi que ela tinha medo de usar os poderes do youkai dentro dela depois de lutarmos juntos várias vezes… Então pensei que fosse a oportunidade perfeita para ajudá-la a enfrentar seu passado.”
Enquanto Haruki falava com um tom calmo, Mayck não pôde abafar um pequeno riso.
“O que foi?”
“Não, não é nada. Eu só não esperava por isso. Haruki criou um plano para ajudar os amigos. Parece tema de filme.”
“Não fique brincando comigo”, reclamou.
Mayck se levantou.
“Claro. Você não fez isso só por esse motivo, não é?”
Ele se virou para o garoto ruivo, um olhar tranquilo, mas ameaçador no rosto. Ele sabia que seu amigo tinha outro motivo oculto e queria que ele revelasse.
“Hum?”
“Você deve ter decidido fazer isso para expor a GSN, certo? Nesse ponto, aqueles quatro já devem ter percebido que a organização poupou parte da seita. E como eles são um inimigo que deve ser eliminado a todo custo, isso pode até ser chamado de traição. Especialmente para Fuka.”
Eles salvaram a garota, dizendo que eliminaram os grandes inimigos dela, quando, na realidade, estavam cooperando com eles. Esse era um dos maiores gestos de traição.
“Hahaha… Eu realmente não posso bater de frente com você, não é, Mayck? Mas você está certo. Eu não sei o que aconteceu comigo, mas depois de te ver fazendo tanto pelas outras pessoas, eu acabei ficando inspirado. Você é como um herói dos mangás.”
“Parou por aí. Eu não quero ser chamado disso.”
“Ah é? Foi mal, foi mal.”
Haruki também se levantou e andou até o centro da clareira criada artificialmente.
“No começo eu pensei em ficar quieto, deixando as coisas rolarem… Só que eu me perguntei: o que Mayck faria nesse caso? Além do mais, Fuka é uma boa garota. Ela tem o direito de saber a verdade sobre si mesma e sobre a organização.”
Além disso, Haruki não disse, mas seu olhar baixo revelava que ele tinha um rancor contra a GSN. E isso era sobre sua mãe.
Apesar de que fazer parte da seita e ser tratada como cobaia para Hachishakusama fosse uma escolha dela, ele não conseguia suportar o fato de que todo o tratamento dela em todos aqueles anos tinha sido apenas para prepará-la para se tornar um monstro.
“É difícil de pensar nisso. Minha família foi totalmente destruída. Não restou nada pra mim. Ei, Mayck, você ainda tem pessoas pra salvar, certo? Eu poderia ser uma delas?”
“O que você quer dizer?” Mayck apertou os olhos. O cenário que rolaria a seguir passou em sua mente.
“Lute comigo mais uma vez. Uma luta séria. E, se possível, me mate. Eu fiz um bom papel de vilão agora, não fiz? Atraí e joguei meus amigos num lugar perigoso. Isso não conta?”, gesticulou.
Mayck ponderou por um momento. Se fosse medir eticamente, não estaria incorreto. Mas ele sabia a base e os motivos para isso, então era facilmente perdoável.
Por outro lado, ele entendia os sentimentos de Haruki. Aqueles sentimentos que agarravam o coração e o deixava vazio. Aquela perda irrecuperável, a sensação de que não havia mais nada para ele no mundo.
Após alguns segundos pensativo, Mayck levantou a cabeça.
“Se é o que você quer, então eu vou fazer isso.”
“Sério? Pensei que você resistiria mais… Mas dane-se. Vou aproveitar esse gás agora.” Ele sorriu. “Vamos fazer como na primeira, beleza? Espero que você não se contenha.”
“Como quiser.”
Os dois se posicionaram em pontos opostos. Uma ventania soprou sobre eles, as nuvens carregadas se abriram levemente e deram espaço para a luz da lua iluminar seus rostos confiantes.
Seria uma luta cujo resultado seria inquestionável, sem remorso, sem arrependimentos. Ambos estavam prontos para o que viria a seguir.
Sabe, Haruki, eu sempre te admirei. Você era um cara diferente de vários outros que eu conheci. Apesar de ser um completo idiota, eu conseguia perceber que você tinha um bom coração.
Haruki correu na direção de Mayck. A adaga em mãos, pronta para cortá-lo. Ele chegou perto, mas uma luz brilhante e um som amedrontador o fez recuar, então um laser elétrico rasgou o chão violentamente, fazendo uma pequena chuva de poeira e estilhaços.
“As vezes é bom começar com o ataque mais forte.”
“Hehe… Você não brinca em serviço, né?” O ruivo sorriu nervosamente, pensando em como teria acabado caso fosse pego. Mas ele não fugiu. Lançou-se para mais um ataque. Dessa vez, eles iniciaram um confronto de lâminas.
Clang! Clang!
Sério. Quando eu descobri que matei seu pai, quase desabei. Eu sei muito bem como é perder alguém que ama. Mas eu também estava com ódio por terem matado Kin. Fiquei feliz quando nos acertamos.
Os dois rodaram o campo de batalha, alternando entre ofensiva e defensiva. O som das lâminas ecoava pela floresta, o impacto entre eles criavam faíscas. Os dois empataram em velocidade, de forma que era quase impossível acompanhá-los.
Num movimento rápido, Mayck o jogou para longe com a <Manipulação de alma>, seguindo por um <Canhão elétrico>. Apesar de ter levado alguns segundos para se recompor após ter batido as costas contra uma árvore, Haruki conseguiu escapar por um fio.
Naquela época, eu pensava que poderia superar qualquer coisa, mas não foi tão simples assim depois disso. As coisas só começaram a acontecer, e ficavam cada vez mais difíceis. Haruki, valeu por abrir meus olhos daquela vez.
“Temperatura Break”, gritou Haruki. Uma aura luminosa partiu de seus braços abertos e então parte da floresta foi tomada por uma tempestade de neve e o chão foi congelado sob seus pés.
Mayck não recuou, mas cravou sua espada no chão e dispersou uma poderosa corrente elétrica que iluminou a floresta e abriu um caminho limpo no meio de todo o gelo.
Ele disparou contra Haruki rapidamente e manejou sua katana, girando velozmente. Uma barreira densa de gelo foi destruída no lugar do garoto, que antecedeu os movimentos e saltou para cima de Mayck. Um enorme sincelo caiu sobre ele.
Uma cortina de vapor escondeu os dois, então Haruki se distanciou o esperou. Ao olhar para dentro da cortina branca, viu a silhueta de Mayck emergir, completamente ileso, mas seu corpo estava todo encharcado.
Haruki riu.
“Até controlar a temperatura da água você consegue?!”
“Ah, bom, é só juntar com eletricidade que tá de boa. Mas se prepara aí que ainda não acabou.”
“É bom eu levar mais a sério então.” Haruki pegou uma segunda adaga em sua cintura e se concentrou. Uma poderosa energia emanou de seu corpo e as lâminas emitiram um brilho forte. As mãos do garoto pareciam estar congeladas com as armas.
“Se liga nesse truque novo que eu aprendi”, disse ele. Então movimentou suas mãos ligeiramente na diagonal e dois arcos brancos rasgaram o ar em direção a Mayck, que saltou para o lado e se esquivou.
Os arcos atingiram algumas árvores caídas e elas foram congeladas instantaneamente.
“Oh. Parece que você andou evoluindo. É bom saber disso.”
“É bom saber um truque ou dois. Já chega de papo. Vamos acabar com isso logo.”
“Como quiser.”
As pedras na katana que Mayck carregava começaram a brilhar e uma tempestade de raios emanou dela, liberando faíscas poderosas e um som estrondoso. Ele se preparou para avançar furiosa e calculadamente na direção do oponente.
Haruki avançou, suas lâminas brilhavam intensamente. Ele desferiu dois cortes simultâneos, visando o peito de Mayck, porém, a lâmina do garoto em questão interceptou os dois ataques e também agiram como uma força repelente que afastaram Haruki.
Suas mãos tremiam levemente. Foi apenas um rápido contato, mas ele ainda recebeu o choque.
Esse desgraçado… ele realmente vai levar a sério agora, pensou o garoto.
A luta então, intensificou-se como um furacão. Cada troca de golpes era meticulosamente calculada por ambos os lados. Mayck acabou sendo atingido várias vezes, seu manto ficou com vários cortes e sua pele mostrava os sinais do congelamento causado pelas adagas.
Mas com Haruki não foi tão diferente. Seu corpo ficou trêmulo depois que ele foi atingido várias vezes pela lâmina de Mayck, a eletricidade corria por seu corpo de forma furiosa e estava quase lhe causando uma paralisia total. Sem contar os pequenos queimados em sua pele.
Ambos estavam ofegantes. Mesmo com o clima frio causado pela habilidade de Haruki, seus corpos estavam incrivelmente quentes e suados.
A luta se encaminhava para sua fase final.
Haruki avançou outra vez, e como um assassino, desferiu cortes de facas por todos os lados possíveis, aproveitando cada brecha que encontrava.
Mayck ficou na defensiva, apenas esperando o momento certo para usar a habilidade que determinaria o rumo da luta. Quando esse momento chegou, ele não hesitou e gritou:
“Moonlight Nightmare!”
Assim, a floresta congelada foi envolvida pela escuridão. Haruki recuou, mas já esperava por isso. Aquele lugar tinha sido o palco final na primeira luta entre eles. Mas agora o nível era diferente, ele pôde perceber várias mudanças naquele lugar.
Antes, aqui era apenas escuridão. Não tinha nada. Era como se Mayck não visse futuro e não pudesse enxergar o que tinha ao seu redor. Mas agora, é como se tudo não passasse de um breu. Ele pode enxergar o que tem ao redor agora, mas não vê cor nelas.
Se a ID fosse um reflexo da existência do portador, então o coração de Mayck era um lugar frio e solitário.
Eu espero que você consiga se libertar disso um dia.
Nesse novo ambiente, Haruki também deu o primeiro passo. Sabendo que estavam chegando no grand finale, sua velocidade parecia ter dobrado. Em um piscar de olhos ele estava diante de Mayck, desferindo mais cortes furiosos.
Entretanto, dessa vez, Mayck foi mais veloz e conseguiu desarmar o garoto. Olhando fixamente para ele, largou sua espada e o chutou para longe.
“Cara, obrigado, de verdade”, disse ele nesse meio tempo.
Antes que Haruki caísse, três círculos brilhantes apareceram no ar, carregando cargas elétricas poderosas. Esse seria o fim.
O garoto ruivo já tinha aceitado isso, mas antes, queria mostrar um pouco mais de resistência.
Mesmo que eu tenha escolhido isso… eu quero dar o meu melhor até o final!
Ele pôs as mãos na frente do corpo, uma luz azulada começou a se concentrar no meio delas, girando, um sincelo reluzente logo foi criado e vários outros menores ao redor dele. O sincelo brilhou tão intensamente que parecia uma estrela, emanando uma aura congelante.
Se for para acabar, que seja do jeito mais épico que puder!
Ele disparou sua última habilidade como um meteoro, ao mesmo tempo que os vórtice elétricos, rugindo, descarregaram raios poderosos.
Como esperado, o sincelo foi engolido pelos canhões e completamente dizimado, como uma única gota d’água dentro de intensas chamas.
A visão de Haruki foi ofuscada pela luz que envolvia seu corpo agressivamente e sua consciência se esvaiu. Seu último pensamento foi um simples “Obrigado…”
<—Dark·Side—>
Kaito e Rikki ainda estavam presos nos milhares de fios negros. Eles se debatiam, tentando escapar, mas eram cada vez mais pressionados. A sua única esperança era Fuka.
A garota, por outro lado, ainda tentava se manter firme, mas não tinha outra escolha. Hesitante, ela concentrou seu poder espiritual. De alguma forma, ela conseguia fazer isso muito bem, era algo tão natural quanto respirar.
Um calor estranho, porém, acolhedor correu por seu corpo, assim como pequenos choques em diversas partes.
Essa sensação…
Ela não desconhecia.
Os pêlos das orelhas em sua cabeça começaram a brilhar com uma luz branca e duas caudas de luz surgiram atrás dela como mágica, os olhos se iluminaram na mesma cor, adquirindo a forma dos olhos de uma raposa. Então, Fuka foi envolvida por uma energia prateada e luminosa, que pairava ao seu redor como uma brisa calma, porém, caótica.
Isso ainda me assusta. Eu odeio ter que usar, me causa arrepios. Mas por que eu me sinto tão bem?
A garota sentia um conforto em seu coração, como se um peso enorme tivesse sido deixado para trás, mesmo que só por um momento.
Não posso mais voltar atrás. Só me resta continuar daqui…
Ela sabia o que tinha que fazer.
Levantou a mão direita, então uma rajada de vento carregada com fragmentos de energia pura cortou o ar em direção à Hachishakusama, que não teve tempo de desviar, seus cabelos longos foram cortados facilmente, deixando os dois garotos caírem.
Rikki e Kaito ficaram maravilhados quando viram a beleza daquele poder enchendo o corredor. Era tão brilhante quanto a lua lá fora, e de certa forma, parecia tão majestoso.
“Era isso que ela estava escondendo?”
“Eu só vi uma vez e bem rápido, mas agora… Isso é demais…”
Disseram eles.
Mas não hora para admirar os poderes ocultos da garota.
Emergindo das sombras, Hachishakusama os interrompeu.
Eles levantaram a guarda, mas isso parecia irrelevante, já que o youkai não demonstrava nenhuma raiva em seu semblante assustador, mas um sorriso satisfeito e vitorioso.
“Ah… Minha linda raposinha”, disse ela, olhando para Fuka com um olhar gentil e abrindo os braços “Você finalmente voltou…”
“Eu não sei o que voltar significa pra você. Eu só tenho um objetivo aqui. Deixe Haruki em paz!”
“Haruki…?” Ela parecia ter dúvidas quanto a isso. Pela primeira vez, ela agiu como se tivesse consciência. Mas Fuka não deu importância.
“Rikki, Kaito, procurem Yuno. Eu vou segurar ela aqui.”
“Beleza. Toma cuidado”, respondeu Kaito, então puxou Rikki e os dois correram pela direção oposta à elas.
Apesar da preocupação, eles não podiam se dar ao luxo de insistirem em outra coisa.
Hachishakusama não pensou em intervir. Não tinha motivos para isso. Seu principal objetivo estava bem à sua frente. A energia espiritual que emanava da garota era como sua fonte de prazer.
“Eu vou ter você… Seja minha para sempre!”
Extasiada, a mulher de vestidos brancos expeliu de seu corpo uma energia sombria que tomou conta do corredor como uma explosão e ameaçou tragar Fuka por completo, mas foi repelida pela energia da garota, que agiu como um escudo.
Em sequência, Hachishakusama lançou seus cabelos já regenerados para agarrá-la, mas sem sucesso. As rajadas de energia se chocavam contra os fios e os destruía, causando pequenos distúrbios no espaço.
“Por que você tá tão obcecada por esse monstro? O que ele é pra você?! Você nem mesmo se lembra do filho que tá fazendo sofrer lá fora, não é?!”
Por mais que Fuka gritasse, sua voz não chegava até o youkai — ou melhor, até a mãe de Haruki. Naquele momento, ela parecia ser apenas alguém cujo coração foi corrompido pelas sombras da seita, que não conseguia sequer visualizar a realidade.
Fuka despertou dentro de si o desejo de trazê-la de volta, como se fosse uma responsabilidade que só cabia a ela. Não sabia como, mas daria um jeito.
Enquanto pensava sobre isso, uma névoa densa começou a cobrir sua visão de repente. Hachishakusama desapareceu sem deixar resquícios.
Ela vai atacar?
Fuka levantou sua guarda e concentrou seus sentidos e energia espiritual para detectar de onde viria o golpe.
Porém, para sua surpresa, alguém puxou a barra de sua camiseta.
No primeiro momento, ela tomou um susto que fez seu coração saltar, no segundo seguinte, ela quase teve um ataque, já que as mãos da criança ali não pertenciam a ninguém mais ninguém menos que Hikari.
Era como olhar um espelho que refletia o passado, no entanto, um passado conturbado.
O corpo de Hikari estava todo ensanguentado. Havia hematomas e ferimentos sérios por toda parte, como se algo estivesse forçando sua saída, em seu rosto um olhar de decepção.
“Por que você não me protegeu?”
“…”
Fuka ficou incapaz de reagir.
“Hein? Por que? Eu te ajudei tanto… mas você me abandonou… Isso foi cruel. Machuca, sabia? Aquilo doeu demais.”
Hikari insistia, puxando a barra da camiseta. Fuka só percebeu as lágrimas escorrendo por seu rosto. Seu peito parecia ter sido perfurado por centenas de facas em chamas.
“Me desculpa…”
Eu não queria…
“Ei, você ainda me ama? De verdade? Se você me amar, então venha com a gente.” As mãos de Hikari gentilmente agarraram a mão trêmula da garota, puxando-a para perto dela.
Sem reação, Fuka se deixou levar. Mas o sorriso e voz serena da garotinha começaram a ficar distorcidos, como se sua mente estivesse dopada. Enquanto isso, ela era arrastada para a escuridão, um completo breu, de onde ela jamais voltaria caso seguisse em frente.
Ela não conseguia recuar. Era como se estivesse completamente dominada pelos seus desejos ocultos, mesmo sabendo que não deveria seguir.
Não. Isso não está certo… Ela não é Hikari!
Era só uma projeção criada pelas ilusões de Hachishakusama. Perceber esse fato, a fez se recompor. Então, magicamente, uma energia invisível as afastou como uma ventania, e Hikari foi sugada pela escuridão. Claro, se livrar disso não fez a dor no peito de Fuka desaparecer.
Era um fato que Hikari tinha morrido em suas mãos, e mesmo que ela não tivesse visto o final de sua amiga, não conseguia duvidar que fora daquela forma.
Mesmo assim…
Os dentes de Fuka foram cerrados fortemente e a energia em volta dela se fortaleceu.
… Não vou deixar você ficar brincando com ela dessa forma! Se é de ilusão que você quer brincar, então vou fazer a mesma coisa!
A luz branca se intensificou e tomou a sala por completo, dispersando a névoa e tomando seu lugar. Dessa vez, quem foi pega em uma ilusão, foi Hachishakusama, que teve um vislumbre de sua vida quando humana, embora Fuka não soubesse desse fato.
“Você decidiu abandonar a vida que tinha pra se juntar àquelas coisas?! Como você é idiota! Sabe o quanto seu filho deve estar sofrendo por causa disso?!”
Fuka gritou, enquanto o youkai permanecia parado, como se estivesse relembrando diversas coisas de sua história passada.
“Não me mostre…! Não me mostre essas coisas sem sentido!” Ela reagiu de uma forma que não lembrava um monstro, mas uma pessoa com a mente conturbada. Hachishakusama agarrou os cabelos furiosamente, com uma dor latejante na cabeça.
Em fúria, ela começou a atacar para todos os lados com os fios de seu cabelo, tentando se livrar daquela ilusão horrenda.
“Não me mostre… Não me mostre!”
Os ataques ficavam mais fortes e aleatórios conforme a loucura tomava conta da cabeça de Hachishakusama, que, com seus cabelos, destruía todo o corredor. Esse frenesi repentino abriu diversas passagens para cômodos aleatórios dentro daquele templo imaginário e sombrio.
“Enxergue quem você é de verdade! Você não tem porquê ser uma marionete daqueles malditos doentes! Acorde de uma vez!”
Não havia sentido nenhum em persegui-la. Se pudesse, a própria Fuka teria arrancado aquele monstro de dentro dela; ela até agradeceria que Hachishakusama o retirasse dela, mas as circunstâncias eram diferentes.
A energia espiritual pulsando fortemente, reagindo aos ataques do youkai de forma tão natural que parecia ter consciência própria.
Isso é estranho… Eu não deveria estar me sentindo tão segura por estar usando esse poder… É tão acolhedor…
Ela abraçou o próprio corpo enquanto seu poder a protegia. Nenhum perigo iria alcançá-la enquanto estivesse daquele jeito.
Mas…
A garota olhou para sua oponente incontrolável. Era assustador no começo, mas agora parecia apenas uma mulher com medo do próprio passado.
… Não deve ser a mesma coisa pra ela…
Era doloroso, sombrio, assustador.
A mulher dentro daquele corpo certamente estava clamando por ajuda — ainda que ela mesma tivesse escolhido aquele caminho.
A energia luminosa repelindo todos os ataques, Fuka caminhou na direção de Hachishakusama, sua luz engolia as trevas de forma calma e serena.
“Aaargh! Fique longe! Não venha até aqui”, gritava, mas a garota não se importou nenhum um pouco e continuou se aproximando até que tocou no peito da mulher.
Tudo parou de repente. As sombras que envolviam Hachishakusama eram as únicas que restavam.
Quando Fuka encostou nela, foi como se uma onda de energia positiva destruísse uma barreira sombria que pairava entre as duas consciências habitando aquele corpo, revelando um campo extenso, totalmente sem cor, cheio de flores mortas.
Aquele era o coração não de Hachishakusama, mas de Yukimura Miyuki; um reflexo do que aconteceu com sua vida no decorrer dos anos.
“Então é aqui que você esteve o tempo todo?”
Miyuki, agachada no meio das inúmeras flores, levantou os olhos sem cor ou brilho, olhos sem nenhuma esperança.
“Hikari…?”
“Uh-uh. Não sou Hikari”, ela negou balançando a cabeça. “Sou só uma cópia dela. A verdadeira já está morta.”
“Entendi… Eu não consegui, não é?”, perguntou com um semblante entristecido.
Fuka não sabia o que ela queira dizer exatamente, mas deduziu que se tratava de proteger Hikari, então respondeu calmamente:
“Infelizmente, não.”
“Mas você também não pôde protegê-la.”
“Eu sei. Eu falhei totalmente naquele dia. Não consegui ser a melhor amiga que ela merecia.”
Ela não sabia como, mas as memórias estavam fluindo naturalmente em sua mente. Usar aquele poder provavelmente estava influenciando-a.
“Não tem mais nada pra mim… Eu não consegui salvar nenhuma delas… Eu deveria apodrecer aqui pra sempre…”
“Mas você não pode. Você se lembra que ainda tem Haruki? Ele está vivo, mas está sofrendo por não ter você por perto. Ele lutou sozinho por todo esse tempo… Você não pode simplesmente desistir assim…”
“Mas o que eu poderia fazer? A minha vida inteira foi repleta de sujeira. Eu cresci já fazendo mal para pessoas inocentes. Todo o meu horizonte estava cheio de rituais e cultos para coisas que eu sequer conhecia. Minhas únicas felicidades, meu filho… meu marido… Como eu poderia encarar os dois depois de tudo isso?”
Um ciclo vicioso do qual ela não conseguia escapar. A seita estava profundamente enraizada em seu corpo e mente desde que nasceu.
“Eles me mudaram. Ter dado a luz me mostrou que as crianças merecem uma vida feliz. Uma vida que elas possam escolher, não uma vida decidida por um bando de lunáticos doentes. Eu decidi que ia cuidar das garotas, mas perdi todas elas, uma a uma.”
Hikari foi a única esperança. Mesmo após se oferecer como cobaia para quaisquer que fossem os interesses da seita, ela não obteve sucesso. Resultado: Hikari morreu.
“Eu não sou nada. Apenas uma pedra no caminho dos heróis. Minhas mãos nunca poderão alcançar a tal felicidade que todos dizem… Eu só queria conhecê-la, passar mais tempo com minha família…”
As palavras de Miyuki atingiram Fuka profundamente. Ela entendia esses sentimentos. Olhando para a mulher como uma mãe olhava para seu filho que estava passando por problemas.
Eu consigo me lembrar agora.
Ela se abaixou e abraçou a mulher, calorosa e gentilmente.
“Foi difícil, não foi?”
Ela passou seus dedos entre os fios ruivos dos cabelos dela, enquanto dizia baixinho.
“Você enfrentou muita coisa sozinha. Se esforçou muito sozinha. Você é uma mulher muito forte.”
Eu sei como você se sente. Eu também estava com medo. Agora, assim como estava naquela época.
Devido a um ritual que deu errado, uma Kitsune jovem foi invocada. Por ser fraca demais, ela foi espancada, acorrentada e maltratada por dias e noites, incapaz de fazer qualquer coisa.
Ela era uma entidade muito fraca e inútil, por isso foi descartada.
Mas ela conheceu uma garota amável, com um sorriso radiante e sonhos secretos que pareciam até bobos se ditos em voz alta. Apenas uma garota inocente que lutava contra uma escuridão muito maior que ela.
Ela era especial. Eu tinha medo no começo, mas passei a amá-la. Hikari foi a única que me deu algo que eu passei todo aquele tempo desejando. Eu queria ser igual a ela.
Nomeada de Fuka por Hikari, ela tomou também a forma dela, não por inveja, mas movida por um sentimento puro, algo que uma mãe sentia pelo filho em seus braços que acabou de nascer.
“Você não estava sozinha. Hikari também estava lutando. Não é culpa sua que as coisas acabaram daquela forma.”
Naquele fatídico dia, o ritual não deu errado, mas atraiu algo tão horrível quanto deveria. Aquela coisa possuiu Hikari, torturou-a, a fez chorar.
“Por favor… me ajuda…” Com lágrimas de profunda dor e agonia escorrendo pelo rosto e um último sorriso para esconder, Hikari pediu ajuda.
Foi por isso que a pequena raposa usou seus poderes. Movida por um misto de sofrimento e ódio, ela eliminou todos o que estavam presentes naquele maldito ritual.
“Miyuki, obrigada por ter lutado por ela também.”
O real motivo que fez Miyuki entrar em coma era diferente do que Fuka havia pensado antes. Não foi por culpa dela, mas uma escolha da própria mulher, que, como um último ato de redenção, tomou para si aquele ser maligno invocado, aprisionando-o dentro de seu próprio corpo depois de realizar um rápido ritual de possessão.
Era ninguém mais ninguém menos que Hachishakusama.
Sentindo aquele calor gentil e voz serena, Miyuki mal pôde reagir. Ela não conseguia se afastar, era aconchegante demais.
“Mas… eu não tenho esse direito… você não tem que agradecer nada… eu…”
“Shh… Não diga nada. Eu sei o que você passou. Está tudo bem. Você fez tudo o que podia. Nós perdemos aquela luta, mas isso não é culpa nossa. Nós fizemos o que podíamos, está tudo bem.”
A mulher não conseguiu reprimir aquele choro, então ela levantou sua voz e deixou sair toda aquela dor e frustração, toda a amargura e rancor, enquanto apertava os braços de Fuka, que ficou em silêncio.
Você foi muito forte. Não é uma portadora, mas aguentou o poder daquele monstro por vários anos. Seus desejos foram fortes o suficiente para passarem por cima dos desejos de Hachishakusama. Você lutou muito bem.
Fuka sorriu levemente.
Nós somos parecidas… assim como você, eu me escondi, com medo de encarar a minha realidade.
Uma pequena Kitsune que foi jogada à própria sorte e uma mulher cuja vida fora roubada sem piedade, girando em torno de uma garota que teve seu futuro destruído.
O monstro, na realidade, não existia. Era apenas o resultado de ter rejeitado a si mesma. Fuka era aquilo que passou a odiar em seu coração depois de ser cegada pelo trauma de perder a garota que ela amou como uma irmã.
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