Capítulo 143 - Lágrimas que se perdem na escuridão
Quando se deram conta, já era tarde demais para fazer alguma coisa.
O corpo de Eldar congelado a partir de seu peito caiu no chão lentamente.
“Eldar!”
Lyara gritou, mas não havia mais nada a ser feito. Ela correu até ele e agarrou seu corpo frio, enquanto Kain assistia com uma expressão sombria.
“Capitão! Capitão!”
O corpo estava tão rígido e gélido que o mero toque da mulher ameaçava quebrá-lo.
“Lya…ra…”
Ele sussurrou, sua voz tão fraca que parecia ser levada pelo vento congelante que soprava.
“Aguenta firme…! Os reforços vão chegar logo—”
“Desculpe…”
Eldar a silenciou com um movimento quase imperceptível. Afinal, tinham que aceitar a realidade diante deles.
Havia um buraco em seu peito, sendo congelado de dentro para fora. Àquela altura, seu coração destruído não poderia mais bombear sangue e seus demais órgãos começaram a falhar…
Era só questão de tempo até que desse seu último suspiro.
Mas Lyara não queria aceitar esse final. Os olhos arregalados, o corpo estremecendo com o frio de fora e de dentro.
“Não diga isso! Tem que haver um jeito!”
Ela levantou a cabeça e olhou para os poucos subordinados que ainda restavam. Assim como ela, eles tinham expressões espantadas, alguns sem reação nenhuma.
“Onde estão os suprimentos?! Nós trouxemos os equipamentos, não trouxemos?!”
“…”
“…”
Apenas o vento uivou em resposta. Afinal de contas, todos os que tinham suprimentos médicos foram congelados antes.
Quando Lyara percebeu isso, ela ouviu o som sutil de algo rachando. Ela olhou para baixo. Os braços de Eldar já haviam se tornado esculturas de gelo e estavam caindo pelo próprio peso.
A esperança que existia em seus olhos segundos atrás se desvaneceu tão rápido quanto apareceu, dando lugar a silenciosas lágrimas que deslizaram por seu rosto desolado.
“Isso não pode estar acontecendo…”
O silêncio tomou conta por alguns segundos Um clima sombrio pairou sobre eles.
Então Kain abriu a boca, sem se importar com o sofrimento dos inimigos.
“Ridículo. Vocês são simplesmente patéticos.” Enquanto falava, ele começou a andar na direção de Lyara. “Esse é o destino dos vermes opositores: alcançar um final ridículo com uma morte medíocre. Se vocês apenas aceitassem o desejo do nosso rei, poderiam ter um lugar de paz para viver. Ou ao menos uma morte digna.”
Ele acelerou, então correu até a mulher. Estava prestes a conceder o mesmo destino de Eldar a ela. A mão direita brilhando com a cor azul pálida do gelo.
“Vocês vão morrer todos juntos.”
Ele chegou perto. Mas a rapieira foi mais rápida e perfurou sua mão.
“!”
Kain se afastou imediatamente quando viu Takeda parar em sua frente.
Ele nem tocou em mim.
Mas a ferida era profunda, como se a ponta tivesse atravessado, mesmo que em nenhum momento ele tivesse sentido o toque.
Esses forasteiros… têm algo mais neles.
“Foi mal aí. Eu não suporto a ideia de perder um companheiro no campo de batalha. Então eu vou fazer o favor de te entreter um pouco.”
Takeda tinha uma postura confiante, os olhos fixos no atacante. Porém, por dentro ele sentia o peso da verdade logo atrás dele.
Se Sora estivesse aqui… Não. Mesmo que ela estivesse, não poderia fazer nada.
Parece que a missão falhou. E não tivemos contato até agora.
Havia um mal pressentimento sobre tudo isso. A comunicação tinha sido cortada? No pior cenário, algo tinha acontecido com o lado de Kaelric.
Mas esse assunto teria de ficar para depois.
“Tudo bem”, disse Kain. “Eu não me importo de matar um de cada vez. Meu alvo principal já se foi mesmo.”
Ele preparou sua alabarda, e os quatro assassinos restantes se posicionaram ao lado dele.
Num mesmo movimento, Rider e os outros também se juntaram a Takeda.
“Vamos segurar eles. Precisamos esperar uma resposta. Não deixem que se aproximem da senhorita Lyara”, ordenou.
Todos assentiram. Então um novo confronto foi iniciado.
****
Lyara se manteve em silêncio. O que acontecia ao redor parecia não lhe importar de forma alguma. Ver seu mentor em seus momentos finais não era nada interessante, nem lhe trazia a melhor das sensações.
Mesmo com metade do corpo completamente congelada e quebrando aos poucos, Eldar usou suas últimas forças para enxugar as lágrimas da mulher que o apertava com tanta delicadeza.
“Lyara… Não chore… Está tudo bem.”
“Como você consegue dizer isso…? Eldar, você…”
“Sim, eu sei. Não me resta mais tanto tempo… mas tudo bem… Eu nunca tive tanta expectativa sobre minha vida de qualquer forma… Cof!”
Uma tosse seca. O sangue que estava sendo empurrado agora saía por sua boca. E Eldar sequer reclamava da dor excruciante que estava sentindo, como se seu corpo estivesse sendo partido em pedaços.
“Eu já te disse antes… não disse? Porque eu te adotei…”
“Porque eu estava sozinha…”
“Sim. Mas não é toda a verdade. Tem algo importante que você precisa saber…”
Eldar respirava com dificuldade.
Ele não tinha nascido em uma família da alta nobreza do reino, mas seu pai era um comerciante com muitas conexões, então eles estavam acima das classes mais baixas do reino.
Em uma de suas viagens, seu pai teve contato com outra mulher e tiveram um filho juntos. Porém, com medo de que isso se tornasse um escândalo e afetasse sua posição de forma negativa, ele encomendou a morte da mulher, que deixou apenas um bebê para trás.
Ele adotou a criança, dizendo que a encontrou abandonada, mas nunca a amou de verdade. Ele a odiava tanto.
O menino cresceu, tratado como estorvo. Toda a sua infância se resumiu a descaso e humilhação. Eldar viu isso de perto, até o dia em que seu meio irmão mais novo decidiu fugir de casa e nunca mais foi visto.
O que o surpreendeu na época, foi que ninguém se importou com isso.
Anos depois, sendo parte da guarda real, Eldar encontrou uma caixa, enquanto patrulhava na muralha perto da Prisão das Árvores Acentuadas.
Havia uma carta presa a ela. Era de seu irmão desaparecido. Ele pedia desculpas por ter sumido. Contou que estava sendo perseguido pelos familiares de seus pais e que só podia confiar seu bem mais precioso a ele.
Dentro da caixa havia uma garotinha de cabelos cinzentos, enrolada em tecidos grossos, dormindo profundamente. Apesar de estar toda coberta, seu nariz estava avermelhado.
“Eu me lembro claramente desse dia… Aquela garotinha… era você… Lyara.”
A mulher estremeceu. Sua boca se abriu, mas não saiu nenhuma palavra.
“Claro… na época eu era apenas um soldado… Não tinha como… eu te proteger… Então fiz com que alguns conhecidos cuidassem de você.”
Ele fez uma pausa, tentando recuperar um pouco do fôlego. As palavras eram arrancadas dele com um esforço desumano.
“Você…, Lyara, é a única filha do meu irmão… é o meu bem mais precioso… eu falhei em salvá-lo, falhei em proteger meus dois melhores amigos de se perderem… Mas eu posso dizer uma coisa… Lyara… só de olhar pra você hoje, sinto que minha vida não foi em vão—”
Sua fala foi interrompida por uma súbita perda de ar.
“Eldar! Aguenta firme! Por favor!”
Ela agarrou a mão que pairava em seu rosto. Estava tão fria. Não restava sinais de que já fora aquecida.
“Obrigado… Lyara. Por me permitir sentir um pouco de felicidade no fim… Como seu mentor… e como pai… me deixe te ensinar só mais uma coisa…”
“Por favor… não …” A voz da mulher se perdeu na imensidão de neve.
Então Eldar disse, sua voz tão fraca quanto antes:
“Seguir… sem um objetivo claro… é como andar no escuro. Então… minha querida filha… seja forte. Não perca de vista quem você é agora… Você não é fraca…”
Seus olhos estavam brilhando, mas lentamente se desvaneceram, assim como suas última palavras:
“… Eu te amo…”
A mão se desfez em estilhaços de gelo e escaparam por entre os dedos de Lyara. Ela estava em choque, sua mente parecia um turbilhão.
“Pai…”
Seus olhos tremiam, enquanto ela encarava seu pai se tornando uma estátua de gelo bem em seus braços e então quebrando como uma fina camada de vidro.
“Pai… Não! Por favor, não! Espera! Eu ainda não consegui dizer nada! Só um momento! É só isso que eu te peço…!”
Sua mente se afundou em desespero. Tateou o chão, tentando juntar os estilhaços, mas em vão. O vento os carregava para longe e apenas sua voz não era o suficiente para alcançar.

O campo voltou-se a ela. O frio da neve ignorou seu choro e um clima tenso e sombrio recaiu sobre eles.
“Eldar…”
“Ele realmente…?”
Até mesmo Yoshiro e Gunner não conseguiam processar o momento.
Rider e Sky resignaram-se a manter o silêncio, enquanto os olhares severamente degradados dos demais se voltavam para onde estava o corpo de seu capitão.
Alguns derramaram lágrimas, outros se contiveram mordendo os lábios, mas o sentimento era um só.
Por outro lado, os assassinos estavam prontos para continuar a chacina a sangue frio, sem se importar com quem choraria depois.
Foi nesse momento que os reforços chegaram. Com gritos e força para intimidar os inimigos.
Eles salvaram seus companheiros e estavam prontos para lutar, mas então Lyara gritou com todas as suas forças.
“Recuar!!”
Os olhares estupefatos se voltaram a ela, seguidos de vozes confusas.
“O quê…?!”
“Tá falando sério?!!”
Era a chance de virar o jogo. Era também a chance de vingar seu amado pai e mentor, então por quê?
A resposta era simples: Eldar não iria querer que eles fizessem isso. Não naquele momento. Embora tivessem vantagem numérica agora, eles não poderiam dizer quantos sacrifícios seriam necessários para alcançar a vitória.
Lyara sabia bem disso.
“Todo mundo! Recuem agora mesmo!”, gritou novamente.
Ainda havia ressalvas no meio do grupo, mas como poderiam contestar aquela voz desesperada, carregada de sentimentos amargos e dor?
Sem escolha, todos começaram a bater em retirada, levando os feridos na frente, enquanto os mais habilitados seguravam os assassinos que tentavam avançar implacavelmente.
No meio do caos, Takeda disse à Sky:
“Procure a Sora. Não podemos deixar que tudo isso seja pra nada. Vai!”
“Sim, senhor!”
Sem que ninguém percebesse, ela se esgueirou por entre os demais e correu para onde deveria ser o ponto de encontro.
“Isso não vai acabar assim”, afirmou o capitão.
E então ele seguiu com os demais na retaguarda, até que todos conseguiram se retirar.
A dor da perda já era grande o bastante. A vingança podia esperar.
<—Da·Si—>
Sora estava aflita. A mensagem que recebeu no dia anterior a deixou feliz, mas, agora, essa felicidade se transformou num turbilhão de ansiedade e receio.
Tá tudo bem…
Eles vão chegar.
Ela confiava em seus amigos. Eles lhe disseram para esperar até que chegassem com tudo pronto. E era isso o que a garota faria. Ela levou a mão ao peito, tentando inutilmente conter aquele desconforto.
Tinha ouvido o som distante da batalha e quis correr imediatamente até lá, mas prendeu firmemente seus pés naquela densa neve que parecia nunca desaparecer.
Houve silêncio. Apenas o vento soprou seus cabelos, fazendo-a se arrepiar. Ela ajustou o cachecol e abraçou o próprio corpo.
Se perguntou se eles viriam.
Talvez sim…
Eu acho que não…
Seus pés deram um passo à frente. Era só seguir em linha reta e ela os encontraria novamente.
Eu quero vê-los.
Desde que se separaram na tempestade, ela não tinha sinal deles. Então quando recebeu aquele estranho objeto e ouviu suas vozes, foi tomada por um êxtase que não conseguia compreender.
Tem tanta coisa acontecendo, que eu nem sei mais o que fazer.
Sora nem sabia mais se deveria confiar em Mayck. Seus caminhos e pensamentos eram muito diferentes. Enquanto ele queria fugir dali e evitar que eles se machucassem, ela queria evitar que tantas pessoas inocentes sofressem um destino tão cruel.
Eu entendo ele. Sei que quer fazer russo pelo nosso bem, mas, mesmo assim…
Ela balançou a cabeça para dispersar os pensamentos negativos.
A demora estava deixando-a impaciente. Ela quase cedeu ao impulso de sair correndo. Nada mais importava.
Quando estava prestes a fazer isso, ouviu uma voz.
“!!”
Seu rosto se iluminou, os olhos brilharam. Então ela correu na direção daquela silhueta que reconheceria até na noite mais escura.
“Sora!”
Sky vinha correndo em sua direção, os cabelos rosas claro refletindo a luz da lua, balançando ao comando do vento, os olhos repletos de lágrimas. Tinha alguns filetes de sangue em seu rosto, mas ela parecia bem.
Ela… se meteu em confusão de novo…
Mas estava tudo bem. Aquele não era o momento para bronca.
Sky saltou sobre Sora e a abraçou. As duas cambalearam, mas não caíram.
“Sora…! Sora!”
“Sim. Eu estou aqui.”
“Eu fiquei com medo…!”
“Tá tudo bem. Não precisa chorar.”
Só de olhar dava para saber quem tinha sentido mais falta de quem. Apesar de normalmente seus papéis estarem invertidos, era Sky quem tinha medo de ficar longe. As lágrimas descendo por seu rosto eram prova disso.
“Você, hein… parece uma criança.”
Apesar disso, Sora se sentia mais segura agora. Aquele abraço caloroso era tudo o que precisava. Então poderia dizer que estava tudo bem.
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