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    Mayck se esforçou para prender a respiração. Alguns minutos se passaram, mas nenhuma mudança. Aquelas coisas ainda continuavam os caçando. 

    Depois de avistá-los pela primeira vez, ele arrastou as duas garotas e se esconderam dentro de uma espécie de galeria, atrás dos pilares em volta de um buraco profundo. 

    “Era pra eles serem anjos?” perguntou o garoto olhando por cima da cabeça de Sora. 

    “Nós nunca vimos os Servos de Nivorah, então confesso que também estou surpresa”, Eirlys respondeu com a voz um pouco trêmula.

    Os três estavam sentados. Mayck no centro, Sora e Eirlys em ambos os lados, enquanto faziam o possível para se manterem em silêncio. 

    Eles não sabiam se tais seres podiam ouvi-los, mas era melhor evitar enquanto eles permaneciam vagando pelos ares, flutuando, quase imperceptíveis na escuridão. 

    Eles tinham forma humanóide, mas da cintura para baixo era desvanecido, como se cobertos por um lençol destruído pelo tempo. Os rostos eram sem forma, borrados e apenas os olhos brancos redondos viravam de um lado para o outro, procurando seus alvos. 

    Os sons que faziam eram o mesmo de vozes lamentando profundamente. 

    Como se apenas rancor e ódio estivessem vagando livremente naquelas formas.

    Olhando assim, parecem ser apenas o tipo de fantasma de ficção.

    Eles não pareciam representar tanto perigo a princípio. Mas dado o fato de que o corpo da mãe de Varian desapareceu, não podiam simplesmente baixar a guarda. 

    Sem contar que apenas olhar fazia os cabelos se arrepiarem e o corpo estremecer. 

    Do mesmo jeito que Sora estava nesse momento: com mãos firmemente agarradas às roupas de Mayck.

    “O que a gente vai fazer…?”

    Havia alguma coisa? Eram milhares deles. Não havia como escapar e nem como ficar escondido para sempre. Hora ou outra eles teriam que correr novamente e não haveria mais volta. 

    Mayck até tinha uma carta na manga para lidar com isso, mas era muito arriscado. Usando a <Manipulação de Alma>, poderia afastar os servos e abrir caminho. Mas a quantidade era demais pra isso. 

    Droga… Esse é o problema de sair sem um plano. 

    Enquanto buscava uma solução em sua mente, o garoto sentiu algo puxar seu braço direito, então ele virou-se para Eirlys. Seu rosto estava pálido, ela mal conseguia se mexer. Sua expressão de pânico apontava para um único possível motivo. 

    Havia um deles ali. Os fitando com aquela face borrada, sem expressão, falhando como um computador quebrado. 

    Num impulso, Mayck ativou sua habilidade. Felizmente, ela funcionou e jogou aquele ser para longe. 

    Mas já era tarde demais. 

    Centenas os encaravam com aqueles olhos profundos e sombrios. Olhares vazios, que causavam diversos sentimentos negativos enquanto sussurravam maldições.

    “Tava demorando…!”

    Sem hesitar, Mayck pegou as duas garotas em cada braço e correu para qualquer lugar longe deles, não que houvesse um. Deveriam simplesmente correr para a saída, mas o objetivo ainda não estava completo. 

    O enxame de servos os seguiu como lobos ferozes por todo o santuário de pedra e gelo. Até que desceram da galeria.

    No fim, foram encurralados outra vez. Esquerda, direita e em cima. Não tinha onde se esconderem.

    Sora estava trêmula. Ela tentava manter a compostura, mas isso era bem visível. 

    Com Eirlys era a mesma coisa. A princesa direcionava seu olhar para todos os lados, uma vez que tudo o que conseguia ver naquela escuridão eram os olhos e parte da silhueta. 

    “A gente não vai conseguir passar…?”, sussurrou Sora quase inaudível. 

    Por mais que pensasse, não conseguia imaginar formas de lutarem e saírem vivos. Tudo o que restava no fim de uma luta inútil era um trágico e misterioso fim. 

    Os lamentos dos servos se tornaram macabros. Eram tantas vozes de uma única vez que inundavam as mentes deles e os incapacitavam de pensar logicamente. 

    A presença assombrosa e horripilante causava um frio na espinha e outras sensações arrepiantes. 

    Tudo parecia perdido… 

    A jornada acabava ali. 

    Quando Sora percebeu, estavam na beira do buraco abismal. Haviam sido pressionados a andarem até ali e estavam prestes a cair. 

    Seus olhos se arregalaram e ela elevou sua voz pela primeira vez naquele dia.

    “M-san!”

    Ao mesmo tempo, os servos avançaram. Estavam próximos — no segundo seguinte, sabe-se lá o que restaria deles. 

    Tudo ficou escuro de repente. Silencioso. Foi quando as duas garotas ouviram a voz de Mayck. 

    “Me desculpem. Mas aguentem isso por um momento.”

    Quando voltaram a olhar, todos aqueles servos estavam parados em pleno ar, paralisados. Não. Era mais como se o tempo tivesse parado. 

    Elas não podiam ver o rosto de Mayck naquele momento, mas sua voz escondia certo peso, como se o que ele estivesse prestes a fazer fosse algo totalmente insano. 

    E foi. 

    Num piscar de olhos, as garotas se viram caindo para o fundo do abismo. 

    O garoto as olhou por cima dos ombros e estendeu a mão na direção delas por alguns segundos. Seus olhos naquele momento, com sua ID ativa, só transmitiam um pouco de remorso. 

    Parece que o jeito que eu faço as coisas não mudou. 

    Ele ainda colocava os outros em risco por um bem maior.

    Um suspiro exausto. Ele voltou-se para frente.

    Mas tudo bem. Assim eu posso dar um jeito. 

    O tempo voltou a correr. Ele saltou usando habilidades de vento e os servos passaram por onde eles estavam como um enxame furioso. 

    Quando pousou suavemente no chão, sentiu os efeitos que o esperavam. A dor de cabeça intensa e o sangue regurgitando em sua boca. Era uma perda quase instantânea de energia. 

    Mas o pior disso foi o que ficou em sua mente. Pensamentos tão sombrios, visões aterrorizantes. Finais trágicos e cenas perturbadoras. 

    Seu corpo tremia freneticamente, dilacerado pelo frio daquelas imagens abissais que se repetiam em sua mente.

    Era isso o que lhe restava ao utilizar <Premoção> nesses seres além da compreensão humana. 

    “Eu entendi…”, disse ele levantando-se meio cambaleante. “Então aquilo que eu vi quando toquei no portão não era de Nivorah, mas de vocês…”

    Aquelas eram suas últimas visões quando foram sacrificadas, as visões de suas vidas como ‘baterias’ de energia apenas para serem lançadas ao monstro no fim, privados da liberdade.

    “Agora eu entendo porque Arden quer destruí-la…Haha… Eu quero fazer a mesma coisa agora.”

    Aquele sentimento ficou muito mais genuíno. 

    Aliás, uma das visões que ele teve, era verdadeiramente da mãe de Varian em seus momentos finais. Ele pôde ouvir claramente a mulher chamando por seu filho. E mesmo em meio a tantos servos, era possível perceber sua presença. 

    Porém, nada podia ser feito.

    Mayck tinha uma expressão amarga no rosto.

    É uma pena… Não tem como salvar nenhum de vocês. 

    Não eram mais seres vivos. Eram só o que restou depois de serem confrontados com a verdadeira natureza de Nivorah. Seres que tiveram tudo roubado deles — sua carne, suas emoções… sua essência. 

    Agora eram apenas rancores visíveis procurando desesperadamente por um lugar para retornar. 

    Obedecendo aos seus impulsos, os servos avançaram freneticamente, disputando o corpo daquele mortal parado, apenas esperando a morte. 

    O primeiro se aproximou e Mayck estendeu a mão. Conseguiu tocá-lo. Ele sorriu. 

    A regra era clara: se era tangível, então dava para bater. 

    ****

    Pareceu sufocante enquanto caía. Era um abismo incomum, envolto de escuridão.

    Sora não sentia nada. Suas mãos, pés… Nada. Ela só conseguia repetir para si mesma que não poderia salvar ninguém enquanto continuasse fraca. 

    Eu não posso perdê-los… Não posso deixá-los se machucarem… De novo.

    “Sora!”

    Ela acordou com a voz de Eirlys. Quando abriu os olhos, encontrou um céu completamente negro. Não dava para enxergar praticamente nada. 

    O cubo brilhante da princesa estava de volta à vida, mas não estava sendo de tanta ajuda. 

    “Ufa… Você finalmente acordou…” Ela pareceu aliviada. 

    “Er… por quanto tempo eu estive dormindo?”

    “Acho que só alguns minutos… não tenho certeza. M-san nos empurrou lá de cima, mas usou algum poder para que a gente não se machucasse…”

    “Então eu desmaiei por causa do choque…”, ela concluiu, vendo que não foi a queda que a fez apagar. “Mas e esse lugar agora? Não é o mesmo, né?”

    “Eu não sei… Fiquei com medo de explorar sozinha e te deixar aqui.”

    A princesa estendeu-lhe a mão e a ajudou a se levantar. Ela ainda estava meio tonta, mas seus sentidos voltaram aos poucos.

    Ela ajustou suas roupas e olhou ao redor, mas não era capaz de enxergar absolutamente nada além de onde sua mão alcançava. 

    “A gente deveria procurar uma forma de subir? M-san está lutando sozinho agora… isso é perigoso.”

    “Acho que tá tudo bem… Ele é mais forte do que parece. Embora eu vá chutar a bunda dele quando voltarmos. Sério, o que ele tava pensando ao jogar duas garotas de um precipício?”

    Ela inflou as bochechas, com raiva. Parecia que até tinha se esquecido de onde estavam. 

    “Esse é um lado que eu nunca imaginei vir dele.”

    “Ele é uma pessoa muito imprevisível. Não dá pra saber o que ele tá pensando”, disse ela com as mãos na cintura. “Mas eu concordo que é perigoso…”

    Eirlys deu uma risadinha ao ver a forma como ela estava agindo. Sora a olhou com a cabeça inclinada.

    “Hm?”

    Ela não parecia mais tão tensa quanto antes.

    “Vocês são bem próximos um do outro. Estão juntos desde que chegaram aqui.”

    Durante todo esse tempo, ela observou as interações entre os dois e sempre notou isso.

    Mas os ombros de Sora caíram e ela soltou um suspiro cansado. 

    “Na verdade, não é bem assim. Nós nos conhecemos há pouco tempo. Ele disse que ia me ajudar e eu iria retribuir. É só isso. Não tem nada de especial…”

    “Hã? Mesmo que vocês parecessem tão próximos…?” Eirlys relutou em continuar, mas ela ficou verdadeiramente confusa.

    No entanto, Sora não manteve a conversa. Ela se virou de costas, pesquisando para onde deveriam seguir.

    “É melhor a gente ir andando. Mesmo que M-san seja forte, ele também não deve aguentar lidar com tantos servos.”

    “É… claro… sim.”

    Talvez não devesse ter tocado no assunto? De fato, o clima entre as duas ficou um pouco mais pesado e elas começaram a andar por aquela escuridão em silêncio. 

    Ocasionalmente Eirlys movia o cubo azul para os lados, verificando se o caminho era seguro. A pouca iluminação também permitiu enxergar gravuras nas paredes, e foi isso que as fez parar.

    Havia desenhos de um barco, uma montanha e então uma criatura de forma indescritível próxima ao que pareciam ser pessoas. 

    “Essas pinturas… o que elas são?” Sora olhou mais de perto. Seus dedos tocaram a superfície irregular onde estavam. 

    “Não sei. Elas parecem contar uma história… O que é isso?”

    Eirlys apontou para a figura que Sora explicou ser um navio destruído.

    “É verdade. Como vocês não precisam atravessar os rios congelados, não sabem o que são navios.”

    Fazia mais sentido quando elas estavam no centro da Antártida, longe dos oceanos.

    Foi então que algo ocorreu em sua mente.

    “Espere, se vocês não sabem o que é um navio… então… Será que alguém de fora já veio aqui?”

    “Um forasteiro? Mas esse lugar esteve fechado por décadas.”

    Sora ponderou por um momento. Mesmo que fosse assim, não poderia ter certeza se alguém tinha ido ou não até lá. 

    No entanto, ela imaginou algo. Algo simples, mas que a vinha incomodando desde que pôs os pés naquele lugar. 

    E isso era o fato dos idiomas misturados. 

    Além do japonês, ela também ouviu algumas palavras em inglês, ditas de forma que tornaram difícil reconhecer imediatamente, como as que ouvia vindo dos capitães. 

    Além disso, aquele idioma que o rei e a princesa usavam.

    “M-san conseguiu nos entender”, revelou Eirlys. “Se mais pessoas vieram de fora, então isso conta a verdadeira história de Nevéria?”

    “M-san?”

    “Sim. Ele conseguiu conversar comigo sem problemas no idioma real.”

    A princesa inclinou a cabeça.

    Então Mayck era fluente na língua que ela não reconheceu? Sora piscou algumas vezes, questionando-se, mas decidiu que não era hora de pensar nisso especificamente. 

    No lugar, ela se concentrou na outra questão.

    Um grupo de pessoas veio para Nevéria no passado e disseminou sua cultura. De acordo com as histórias que a garota conhecia, os idiomas foram divididos de forma a diferenciar os militares, a nobreza e a realeza. 

    “Nessa lógica…”

    “Meu pai disse que esse lugar é uma prisão… Não esse em que estamos, mas toda Nevéria.”

    Isso explicaria os idiomas. A hierarquia criada seria outra história envolvendo conflitos passados. 

    “Pessoas naufragaram aqui e ficaram presas, então elas construíram um reino em volta de Nivorah”, concluiu Sora, interpretando os desenhos.

    Adicionando isso, havia muito mais sobre o reino do que imaginavam. 

    A princesa não disse nada, apenas refletiu enquanto o chiado do silêncio interminável ampliava as vozes em sua cabeça. 

    Em resumo, mentira. 

    Nada do que ela conhecia era verdade. 

    Apenas histórias moldadas convenientemente para transformar Nivorah em divindade. 

    Mas enquanto seus pensamentos afundavam ainda mais nesse mistério, uma sensação agonizante percorreu as costas da garota de cabelos azulados. 

    E então…

    “Cuidado!”

    Ela puxou a princesa por reflexo e as duas caíram no chão, enquanto um vulto passava por elas enlouquecidamente. 

    Não precisavam pensar demais. Era um dos servos. 

    “Eles chegaram aqui?!”

    No entanto era só um.

    E parecia bem diferente dos outros. 

    Sua voz carregada de rancor, soltando palavras desconexas, tinha um peso que deixava o ar ainda mais denso. Seus olhos cintilando como brasas. 

    “Saiam… Me soltem… Saída… Vão embora…!”

    Algo em sua voz era familiar. 

    Sora o encarou com os olhos trêmulos, reconhecendo-o de alguma forma.

    Foi quando ela teve um rápido vislumbre.

    “Esse é… Viktor…?”

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