Capítulo 14 - Previsão de problemas
A tempestade repentina não havia amenizado. Cada relâmpago era igual a um sol e não se ouvia nada a não ser as densas gotas de chuva se batendo na janela do quarto de Mayck.
Ele estava digitando em um tablet e verificando as informações, sentado em uma cadeira, de frente a seu computador.
“Então todas essas aqui são as últimas atividades da Ascension nos últimos meses?”
“Sim. Se você analisar bem, pode ver que os números que representam a energia usada é maior nos meses mais recentes.”
Nikkie se aproximou do garoto e clicou em algumas partes da tela, para que ele tivesse noção do que ela estava dizendo.
Sem que os dois se importassem, a garota tinha seu rosto bem próximo ao dele.
“Quando foi que sua irmã foi raptada?”
“Foi no dia 15 de fevereiro. Às 21:00 horas.”
Mayck digitou as informações em uma caixa de pesquisa e os resultados apareceram em um globo digital.
No globo, em todos os países haviam bolhas que representavam os fluxos de energia detectada, elas iam de minúsculos círculos até os maiores.
Mayck deslizou o dedo pela tela e chegou onde queria.
“Engraçado. Não há nenhum registro aqui em Tóquio. Tem certeza do dia e horário?”
“Eu não posso estar errada. Me lembro perfeitamente de tudo”, ela disse meio intrigada.
“Então tem algo errado com esse sistema. É possível que tenha escapado da detecção?”
“Não. Algo assim é simplesmente impossível”, ela negou. “Seria como um carro passar pelo radar sem ser pego.”
“Mas o radar seria inútil se estivesse quebrado”, Mayck retrucou, olhando-a de lado.
“Como eu disse, seria impossível.” Nikkie apontou o indicador para a tela. “Como você pode ver, todos os fluxos estão registrados, menos o de Tóquio.”
“Sim”, concordou, mas ainda com dúvidas.
O que ela disse faz sentido, mas… como isso poderia…
Um ponto de exclamação surgiu na cabeça de Mayck. Em algum ponto da história, a ausência desse dado era estranha.
“Nikkie, será que é possível que alguém tenha mexido no sistema?”
“Mexido? Está dizendo que alguém pode ter adulterado os dados?”
Mayck balançou a cabeça, confirmando o pensamento da garota. Nikkie cruzou os braços e se sentou na cama.
“Mas nesse caso, então poderia ter sido um erro, ou tem um traidor no meio da Black Room…”
“Se for isso, então tem muitas informações da Black Room sendo vazadas.”
A garota cobriu a boca e pensou por um tempo. Aparentemente a ideia de um impostor no meio da organização se encaixava em algo.
“Vamos manter isso em segredo, por enquanto. Não podemos concluir nada ainda.”
“Você tem certeza? Eu acho que Zero poderia fazer alguma coisa.”
“Não.” Balançou a cabeça. “Você sabe qual é a seu papel, certo?”
“Sim, eu tenho que agir por baixo dos panos… Ah, é mesmo.”
“Mayck, eu vou te pedir para me ajudar com isso mais uma vez. Se realmente houver alguma maçã podre em nosso meio, a Operação Primavera pode correr perigo.”
“Sim, sim. Já sei onde você quer chegar. Fica tranquila, eu vou te ajudar.”
Mayck desligou o tablet, colocamdo-o na escrivaninha e relaxando o corpo na cadeira.
“A propósito, Nikkie-san, você pretende passar a noite aqui”, falou, olhando para o relógio do celular, que marcava 23:35.
“Eu estou com um pouco de sono. Além do mais está chovendo muito forte e não há como eu voltar.”
“Isso é detalhe”, ele tentou contestar, mas foi ignorado.
“De repente eu me senti com um pouco de fome. Tem alguma coisa pronta?”
Sem se importar com os sentimentos do garoto, Nikkie saiu do quarto e desceu para a cozinha, deixando Mayck confuso.
“Na verdade, não tem na- não tem nada. Merda.”
Mayck não tinha voltado para casa cedo e quando voltou, ficou preso no quarto vendo e revendo dados importantes e ignorou completamente o fato de que não tinha preparado o jantar.
Levando esse tapa de realidade, o garoto disparou para a cozinha e verificou se tinha ingredientes suficientes na geladeira.
“Ufa. Parece que tem o bastante.”
“Vamos logo. Eu não quero esperar tanto”, Nikkie afirmou, estando já a mesa.
“Se quiser comer me ajude aqui.”
A garota lutou contra essa ideia, mas acabou ajudando a preparar a refeição.
Depois de uma pequena discussão sobre o que seria feito, os dois chegaram a conclusão que algo simples seria bom.
Inicialmente, Nikkie defendeu a ideia de que um jantar com diversas comidas diferentes seria algo que faria qualquer pessoa perdoar algum erro, mas Mayck rebateu com o argumento irrefutável de que não haviam ingredientes o suficiente para algo muito elaborado.
A discussão terminou com a vitória de Mayck.
“Bom, agora eu vou lavar a louça. Enquanto isso, espere no quarto, okay? Daqui a pouco meu pai vai chegar e eu não quero que ele te veja”, o garoto falou, levando as louças para a pia.
“Você tem medo do seu pai ou algo assim? Não acho que seria um problema tão grande.”
“Não é que eu tenha medo nem nada do tipo. Eu só não quero que ele te veja. Ter que explicar as coisas é a parte mais irritante de tudo.”
“Você vai fazer isso quando tiver uma namorada?”
“Quando eu tiver uma, será diferente. Você não é minha namorada, então a história é outra.”
“Se é assim que você pensa…”
A garota se deu por vencida e Mayck iniciou o seu trabalho. Arregaçou as mangas e começou a ensaboar os talheres, um por um.
“Eu preciso de um banho, então, com licença.”
O garoto gostaria de debater o quão a vontade ela estava, mas aceitou que era algo que ela precisava, por isso ficou quieto.
Depois de alguns minutos, a garota retornou para a cozinha, com apenas uma toalha enrolada em seu corpo.
“Será que você poderia me emprestar algumas roupas suas? Eu não tenho reservas.”
“Claro, claro. A vontade. Se bem que fico feliz por você ter pedido dessa vez. Mas, mais importante, o Yang também roubou seu bom senso? Quem é que ficaria andando assim na casa de um desconhecido?”
“Me desculpe. Você está certo. Não tinha intenção de te incomodar com isso.”
Ela inclinou o corpo em um pedido de desculpas.
De repente eu me sinto um pouco mal por ter falado isso…
“Fica tranquila. Pode pegar a roupa que quiser. Mas lamento, não tenho roupas de baixo que serviriam em você.”
“Tudo bem”, ela falou e se retirou.
Retornando sua atenção para a pia, o garoto não parava de pensar em algo que lhe perturbava tanto.
“Ela tem dupla personalidade, por acaso?”
Ela veio até aqui e agora decidiu passar a noite? O que tem na cabeça dela. Eu sei que ela só entrou aqui, em primeiro lugar, para revermos as informações e darmos um passo em nossa tarefa, que ainda é incerta. Mas…
O garoto soltou um suspiro e terminou sua obrigação, indo para o quarto em seguida.
Ao entrar no seu precioso local de privacidade, Mayck deu de cara com Nikkie deitada em sua cama, tendo um sono bem pesado, porém não se sentiu incomodado.
Ela parece bem cansada. Bom trabalho por hoje, Nikkie-san.
“Mas… aonde eu vou dormir agora?”
De frente a tal questionamento, o garoto lutava entre ser respeitoso e sensato e dormir em outro lugar ou deixar sua mentalidade de adolescente tomar conta e se deitar ao lado dela.
Ele respirou fundo e se dirigiu até o guarda roupa. Em cima dele havia um colchão reserva, que ele decidiu usar.
Depois de ter preparado o local onde passaria a noite, ele apagou as luzes, porém algo chamou sua atenção.
“A chuva já parou, né?”
Ele se perguntava porque Nikkie não foi embora, já que o que a prendia lá era a tempestade do lado de fora.
Acho que… tanto faz.
O garoto fechou os olhos e dormiu.
|×××|
“Mayck, Mayck.”
Essa voz já está me chamando há um tempão.
Ele estava com os olhos fechados em uma floresta, mas não ouvia o som dos pássaros, muito menos o do vento, apenas aquela voz que insistia em ter sua atenção.
Era como se ela fosse o único som daquele mundo.
Se eu tapar meus ouvidos, será que ela vai embora?
Para testar sua hipótese, ele levou as mãos até as orelhas e tentou impedir a passagem da voz.
“Mayck, Mayck.”
Ela não para. Desistiu da ideia.
Se aquele chamado constante não fosse cessar, então, para a decepção do dono daquela voz, ele iria dar um fim a si mesmo.
Dessa forma, não iria existir ninguém para ser chamado naquele mundo.
Uma mão se estendeu a ele. Nessa mão, havia uma faca.
Eu posso usar isso?
A figura, que mais se parecia um reflexo dele no espelho, assentiu, confirmando que aquele objeto cortante era para ele.
Sem um pingo de hesitação, tomou a faca para si e a levou para o próprio pescoço.
“Mayck!”
A voz gritou por fim. Mayck assustou-se e abriu os olhos. Sua bochecha queimava e doía.
Direcionou seus olhos sonolentos para o lado e viu Nikkie segurando suas mãos.
“Nikkie… o que foi?”
O rosto da garota estava levemente assustado e ao mesmo tempo calmo e sério.
Ele voltou a si e olhou para suas mãos, que portavam uma faca de cozinha.
“O que… tá acontecendo?”
“Eu gostaria de perguntar se você é sonâmbulo, mas eu tenho uma resposta.” Ela se afastou.
Sem utilidade para o utensílio de cozinha em suas mãos, o garoto colocou o objeto de volta na gaveta.
“E o que é?”
“Um Ninkai.”
“Onde?”
“Aqui.”
“Na minha casa?”
A garota balançou a cabeça em resposta.
Ele achou essa situação confusa. Não havia deixado portas ou janelas abertas para que um Ninkai entrasse. Então, como?
“Eu sei o que você está pensando. Mas não faço ideia de como ele entrou aqui, ou como ele te trouxe aqui. Apenas o vi por segundo depois que você pegou a faca.”
A ficha ainda não havia caído. O garoto não conseguia achar uma resposta, nem que fosse provisoria, para essa questão.
“Enfim, vamos voltar para o quarto. Não sabemos o que pode acontecer ainda, então dormir está proibido.”
“…” Mayck balançou a cabeça em resposta. A garota percebeu que ele não estava em condições de fazer algo sozinho, então o pegou pela mão e subiram para o quarto, mas não deixou de notar o quão fria ela estava.
Quando passaram pela porta, Nikkie se certificou de trancar a porta, verificar se a janela estava aberta e, por fim, averiguou o guarda roupas, para garantir que o Ninkai não estivesse escondido.
Ela achou melhor deixar a luz acesa e fechar a cortina.
“Já são mais de 1 da manhã… O que pode ter acontecido?”
O que aconteceu foi tão repentino, que o garoto ainda estava completamente perdido, tentando por as peças no lugar, mas demonstrava uma certa dificuldade em fazer isso.
Normalmente, ele conseguiria repor os pensamentos do dia anterior em ordem facilmente, mas algo definitivamente estava errado.
Nikkie o olhava com curiosidade; poderia ser porque ele dormiu por pouco tempo e foi forçado a acordar… poderia ser isto. Porém, o que era mais estranho disso tudo, era que, mesmo com tanto sono, ele não havia piscado nenhuma vez desde que entraram no quarto.
Um tipo de habilidade que controla a mente do alvo? Não. Isso seria muito parecido com uma ID. Mas e se for? Tudo o que sabemos dos Ninkais é que eles são criaturas feitas a partir de um receptáculo humano… mas e se for além disso?
A esse ponto, todo o conhecimento que ela tinha acerca desses monstros estava em jogo. Ficou difícil encontrar uma resposta.
É possível que as IDs das pessoas transformadas em Ninkais tenham permanecido?
Enquanto ela lutava para achar uma resposta, se encostou na escrivaninha sem tirar os olhos do garoto.
Nikkie decidiu ver o comportamento de Mayck dali em diante. Ela precisava ter certeza do que estava acontecendo com ele.
Os olhos do garoto pareciam sem vida, sua respiração era lenta e ele não se movia nem um centímetro. Era como se fosse um cadáver.
A cabeça dele estava uma bagunça. Tudo o que vinha em sua mente eram as mesmas perguntas sem resposta.
Ao contrário de quando tinha sonhos estranhos, ele se achava perdido em um ambiente sem sombras e sem cor. Tudo o que existia naquele vazio era ele.
O que eu estou fazendo aqui?
Ele mantinha sua cabeça baixa, encarando o chão com um rosto sem emoções.
Não havia sinais de que existiam memórias em sua mente. Também não havia sinais de que ele sabia quem era.
Uma gota caiu do nada, e foi para o nada, mas seu som ao se chocar e se espalhar no chão permanecia.
Um grande espelho foi colocado na frente do garoto e ele levantou sua cabeça.
Olhando para o seu eu refletido, não esboçava nenhum sentimento.
Mas estranhamente, seu reflexo era independente. A imagem no espelho tinha vida própria e, diferente da apatia mostrada pelo garoto real, o reflexo possuía emoções.
Era ele, mas, ao mesmo tempo, não era.
“Por quanto tempo vai ficar aí?”
Após alguns segundos de silêncio, ele, o reflexo, decidiu falar.
“Eu não sei. O que eu deveria fazer?”
“Quem sabe… parar de fingir ser você?” Como se estivesse dando um ótimo conselho, ele sorriu.
Mas, inutilizando o feito, Mayck inclinou a cabeça, mostrando não ter entendido.
“Não quebre a cabeça com isso agora. Em breve você vai ter que parar, mas até este dia chegar, tente não gostar de como está agora.”
“Eu ainda não entendo. Por que eu não posso gostar de quem eu sou?”
“Porque você não é você. Mesmo que queira ser você, você é uma falsificação de si mesmo.”
“Era para ser uma resposta?”
“Bom, se você ainda não entendeu, então esqueça. Não é bom ficar pensando em coisas que você nunca vai entender.”
O reflexo deu as costas e partiu, para o fundo do espelho ou do corredor, puramente branco, refletido nele
“Espera. Como eu posso ser eu? Me diga.” Ele estendeu a mão, tentando alcançá-lo
“Não se preocupe em me seguir. Eu vou voltar depois.”
“Vai voltar? Quando?”
“Em pouco tempo. Afinal, eu sou você.”
Ao caminhar até o final daquele mundo branco, nada mais se via.
O mundo começou a ruir e logo se quebrou, trazendo de volta a consciência perdida.
“Nikkie?” Mayck balbuciou ao se ver em casa.
“Acordou de vez? Ótimo. Agora me ajude a pensar.”
“Pensar…” Sua confusão transparecia em seu rosto, mas depois de se concentrar um pouco ele entendeu a situação. “Você disse que tinha um Ninkai aqui, não é?”
“Exatamente. Mas não sei como ele entrou aqui ou como ele nos atacou sem avisar o detector.”
“Isso realmente é estranho. Eu não consigo imaginar como um Ninkai pode ter entrado aqui… Espera. Isso não significa que meu pai tá em perigo também?”
Os dois se entreolharam e Mayck se levantou da cama. Eles saíram do quarto e foram até onde seu pai estava.
Eu espero que esteja tudo bem.
Ele pôs sua mão na maçaneta. Seu coração batia forte. Era como o experimento do Gato de Schrödinger, Takashi poderia estar bem, mas poderia não estar.
Com o peso das duas opções na balança, o garoto respirou fundo e virou a maçaneta lentamente.
A porta se abriu e o garoto forçou a vista para ver o que tinha no meio da escuridão.
Aos poucos ele pôde enxergar algo ao lado da porta. Seus olhos começaram a tremer e ele moveu sua cabeça para o lado com cautela.
Era um casaco.
Ele suspirou aliviado e voltou sua atenção para a cama, onde seu pai dormiu pesadamente.
Ainda bem.
Ele acenou para Nikkie, que recebeu a informação e fechou a porta devagar.
“Vamos voltar.”
Eles retornaram para o quarto, sem dizer mais nada.
“O que vamos fazer agora?”
“Ficar aqui parado não vai dar em nada, mas procurá-lo também vai ser inútil. Se for um monstro que pode entrar em qualquer lugar sem ser notado, então buscar por ele é perda de tempo. Vamos esperar ele vir até nós de novo.”
“Okay.”
Nikkie trancou a porta por garantia e Mayck foi até a janela, abrindo a cortina, enquanto a garota apagava a luz.
“Vai ser mais fácil se fingirmos que estamos dormindo…”
O garoto interrompeu sua fala repentinamente e Nikkie achou isso estranho.
“O que foi?”
Mayck paralisou mais uma vez. Seus olhos travaram no que estava do outro lado da janela, ou melhor, dentro da janela.
Um rosto sem vida que transparecia desespero o olhava, mas esses olhos só mostravam a escuridão. Seu corpo esquelético se estendia por, ao menos, 1 metro e meio e exibia uma cor pálida.
Envolto a uma névoa escura, o ser flutuava na frente da janela com sua cabeça atravessando o vidro.
Aquele desenvolvimento foi estranho. Tanto Mayck quanto Nikkie não sabiam o que fazer.
A reação de uma pessoa normal, deveria ser liberar um grito histérico ou, no mínimo, desmaiar ali mesmo. Mas, mesmo que com uma diferença de resposta, os dois presentes poderiam não se encaixar no quesito de uma pessoa normal em relação ao susto.
O garoto manteve seus olhos na criatura, sem se mover um centímetro. Nikkie, por sua vez, ficou parada em seu lugar, tentando encontrar em sua mente algum tipo de informação sobre esse monstro.
Mas o Ninkai não quis ficar em parado e se convidou a entrar, atravessando o corpo do ser humano à sua frente.
Ele não fazia som algum, mas por onde passava, a neblina de seu corpo cobria o quarto e a temperatura parecia cair.
O tempo de resposta de Mayck não foi lento. Sua mente apenas decidiu esperar por uma boa solução, entretanto, após não a encontrar, o garoto saiu de sua zona de choque e inutilmente tentou capturar a criatura, que nem ao menos reagiu, ao invés disso, ela passou pela porta, fechada, e seguiu seu caminho.
“Parece que não vai nos atacar… mas porquê?”
Nikkie não ficou atônita, mas Mayck a despertou para um outro grau de perigo.
“Talvez ele só ataque se estiver dormindo.”
“Então, quer dizer que ele vai até o seu pai?”
“É possível.”
Novamente, os dois deixaram o quarto e foram até onde Takashi repousava.
Diferente de alguns minutos antes, Mayck não hesitou em abrir a porta.
“Como pensamos.”
Espreitando pela porta, os dois viram a criatura flutuando acima do homem adormecido.
Mas eles ficaram em uma mesma linha de pensamento: apenas observar o que viria a seguir.
Meu pai me odiaria se descobrisse que eu o usei de cobaia… Me perdoe por isso.
A frente dos olhos dos dois bisbilhoteiros, o Ninkai continuou pairando sobre a cama, os movimentos estranhos vieram de Takashi, que começou a se remexer como se estivesse tendo um pesadelo.
Ele balbuciava algumas coisas incompreensíveis para os dois, que forçavam a vista no escuro.
“Se parecer que vai ficar perigoso, vamos interferir”, Nikkie sussurrou para o garoto.
“Não sei não. Isso já é perigoso o suficiente e, além disso, o que podemos fazer com uma criatura imaterial?” Ele sussurrou de volta. Em sua cabeça, o garoto levava em consideração que sua veterana tinha algum parafuso solto.
“Veja”, a garota chamou a atenção de Mayck para Takashi, que parou de se mover e começou a se levantar.
A criatura de repente estava desvanecendo e entrando no corpo do homem.
Tá possuindo ele? Mayck se espantou levemente.
Como se estivesse tendo um ataque de sonambulismo, ele se levantou e seguiu para a porta do quarto e Mayck e Nikkie deram espaço para ele passar, seguindo após ele.
Takashi desceu as escadas e abriu a porta. Ele fez isso com tanta naturalidade, que parecia estar acordado.
“Foi mal, Nikkie. Mas eu vou parar ele.”
“Ei, espera… Ah. Que seja.”
O garoto se adiantou e passou por seu pai, que estava chegando ao portão da saída e entrou em seu caminho.
Colocou as mãos na frente do peito do homem para que ele não se movesse mais.
“E agora, como a gente vai tirar ele daqui?”
“Se ele acordar, talvez o Ninkai saia”, a garota afirmou se aproximando.
Suas mentes trabalhavam a todo o vapor para encontrar uma forma de conter aquela criatura misteriosa.
Com todas as informações que tinham, não dava para fazerem muita coisa.
Mesmo se eles conseguissem expulsar o Ninkai do corpo do policial adormecido, eles ainda não teriam ideia de como, ao menos, tocá-lo.
“Talvez sua ID funcione.”
“Como assim?” Msyck perguntou com uma certa dúvida.
“Lembra da habilidade que você usou em um dos nossos treinos? Se você puder utilizá-la agora, teremos uma chance”, ela disse, levantando o dedo indicador, dando ênfase a sua suposição.
“Você fala daquela coisa de mover alguém? Mas eu nem sei como funciona direito.”
“Zero mencionou algo sobre ‘manipulação de almas’, então se for relacionado a isso, pode funcionar, já que o Ninkai está vivo.”
“Você está dizendo que, como ele é um ser imaterial, ele é algum tipo de alma?”
“Precisamente.”
Mayck ainda estava incerto. Ele só usou tal habilidade uma vez e foi por pura coincidência. Ele não tinha confiança de que poderia repeti-la do nada.
“Estamos agindo sob a suposição de que, se seu pai acordar, o Ninkai vai deixá-lo em paz. E após isso acontecer, temos que dar um jeito de derrotá-lo.”
“Isso eu entendi, mas…” O garoto recuou um passo.
“Não vamos saber se não tentarmos.”
“Tá bom, tá bom. Eu vou tentar.” Ele se entregou. “Mas como pretende acordar ele? Com um tapa também?”
“Você lembra disso?”
“Meu rosto estava quente. É claro que eu perceberia.”
Um vulto passou pelo canto do olho de Mayck, que se assustou e virou seu rosto para a sombra.
Tratava-se de um gato.
“Não me assuste assim.” Ele suspirou com seu coração acelerado.
“Certo. Eu vou acordar ele.”
“Fazer o quê… Beleza.”
O garoto se afastou um pouco e manteve sua concentração para que pudesse ativar sua ID.
“Pronto?” Nikkie perguntou, já se preparando para despertar o homem.
“Tô pronto.” Mayck confirmou com sua ID já em atividade.
Nikkie respirou fundo e deu um passo para trás, mas logo avançou de novo. E, com um bater de palmas, ela fez Takashi acordar e imediatamente o Ninkai deixou seu corpo, mas, como se quisesse um hospedeiro a todo custo, o Ninkai se abrigou no corpo do gato que estava por perto, emitindo um som assustador enquanto fazia isso.
“O quê?!”
Mayck e Nikkie tiveram a mesma reação quando presenciaram a cena.
O animal começou a correr desordenadamente pelo quintal, dando a ideia de que a criatura não conseguia controlar o corpo de sua atual residência.
“Pegue o gato”, Nikkie declarou.
Os dois começaram a caçar o felino pelo chão, mas ele era muito rápido e o escuro não ajudava.
Era meio que uma batalha sem sentido.
“Mayck, use suas habilidades para encurralar ele”, a garota falou e se colocou em frente ao animal, que desviou seu caminho.
“Falar é fácil.”
Ele via a dificuldade e não conseguia pensar no que fazer.
Eu não posso simplesmente atacar o gato. Então, o que devo fazer?
O que faria um gato parar? Era a pergunta em sua cabeça. Mas logo ele notou que estava se questionando do jeito errado.
Só depois ele percebeu que a pergunta certa era: o que eu posso fazer para esse Ninkai parar?
Mesmo ainda sendo um animal, o que estava dentro era outra coisa.
Vou tentar isso.
Mayck se posicionou no caminho que o gato estava trilhando e levantou sua mão na direção dele.
Por favor, funcione!
Ele bradou em sua mente.
A ID se ativou outra vez e um brilho apareceu no corpo do gato, que deu um salto na direção dele. Uma pequena esfera branca surgiu próximo ao seu abdômen.
Percebendo o sucesso da habilidade, o garoto fechou a mão e o animal parou no ar.
A criatura largou seu hospedeiro e voou bem alto para os céus, desaparecendo.
“O que foi isso…”
“Parece que ele desistiu.”
“Mas isso não quer dizer que ele vai atrás de outra pessoa?”
“E o que podemos fazer? Quer sair e procurar por ele?”
“Eu passo. Seria muito complicado.”
“Não é?.”
Os dois conversavam enquanto olhavam a trilha de névoa deixada pelo monstro sumir no ar.
“Mayck?”
A voz de um homem adulto fez o garoto gelar e Nikkie tentou disfarçar o pequeno susto que levou.
Por alguns segundos eles esqueceram que Takashi estava ali.
“O que tá acontecendo?”
Aaah, que falha.
Mayck coçou a cabeça, se culpando pelo erro cometido.
Como não queria assumir a responsabilidade, a garota olhou para o lado oposto do pai do garoto.
Naquele momento o que seria mais complicado, era ter uma explicação, não só para um problema, mas, sim, para dois.
Por ordem do policial, os dois entraram e sentaram-se à mesa.
O clima de um julgamento genuíno, pairou sobre eles.
“Então, o que tem a me dizer?” Um olhar frio e severo foi lançado ao garoto.
“Você poderia especificar?”
“Eu quero ouvir sobre tudo.”
Mayck se sentiu encurralado, mais que o gato, que fugiu após o Ninkai abandoná-lo.
Nikkie manteve seu comportamento calmo, apesar dos pesares, como se jogasse toda a responsabilidade para seu companheiro criminal.
Se isso fosse um tribunal, Takashi seria o juiz e Mayck, o réu. No entanto, Nikkie seria apenas parte da plateia.
“Bom, então vamos começar do começo…”
“Eu sou Emiko Shinobu. Sou uma senpai do Mi… Mayck-kun. Prazer em conhecê-lo e me desculpe por estar aqui sem avisar”, ela se apresentou com um leve sorriso sem se importar. “Eu estava passando pela rua e acabei sendo pega pela chuva, no entanto, acabei me encontrando com ele, que me convidou para entrar. A chuva estava muito forte, então acabei passando a noite aqui. Me desculpe.”
Para a surpresa do garoto, Nikkie tomou a liderança, se retirando do papel de secundária. Um milhão de coisas se passavam pela cabeça dele, entretanto apenas seguiu o fluxo.
“Mayck?”
“Desculpe. Eu devia ter avisado.”
“A culpa não é dele, Mizuki-san. Ele só foi gentil comigo e eu acabei abusando disso. Me desculpe, eu irei embora agora.”
Ela se levantou, deixando clara as suas intenções.
“Espere. Eu realmente fiquei irritado por não ter sido avisado. Porém, agora não faz diferença, certo? É perigoso ir embora nesse horário, por isso, fique aqui até de manhã.” Takashi apertou os olhos com os dedos e suspirou. “Você avisou seus pais?”
“Sim, senhor”, ela assentiu.
“Entao, tudo bem. Voltem para o quarto.”
“Muito obrigada. Boa noite”, a garota agradeceu.
Os dois deixaram a cozinha e fugiram para o quarto.
Aparentemente, o julgamento havia sido encerrado ou talvez apenas adiado para o dia seguinte.
“Você está bem com isso? Ter revelado seu nome e tudo mais?” Mayck perguntou, trancando a porta.
“Não é como se fosse um problema tão grande e, afinal de contas, não é totalmente mentira.”
“Bom, é verdade, mas… quando você disse que era minha senpai, isso era na escola?”
“Exatamente.”
“E isso é mentira?”
“Não”, ela negou e se deitou. “Eu sou apenas dois anos mais velha que você. E, além disso, minha irmã já nos apresentou uma vez.”
“Eh… Eh?! É sério? Dois anos?” A reação dele foi lenta, mas ele acabou ficando surpreso com essa revelação. “Eu pensei que você já passava dos vinte…”
“Eu não pareço tão velha, pareço?”
“Não…”
Ele suspirou e apagou a luz. Tinha jurado que nada mais o surpreenderia, mas a vida veio mostrar o quão imprevisível podia ser.
Espera… ele não perguntou sobre o Ninkai. Será que ele não percebeu? Se ele notou, decidiu ignorar… Bom, assim é melhor.
“O que será que era aquela coisa, afinal?”
“Quem sabe… Parece que você se tornou um ímã de problemas. Esse já é o segundo que você encontra.”
“Isso não me dá orgulho… Como vamos fazer ele ser analisado? Não temos nada que comprove que nós o vimos.”
“Nos vamos ter que esperar por uma nova oportunidade.” Nikkie olhou a lua pela janela. “Vou relatar esse encontro para Zero e vamos ver no que dá.”
“Acho que isso é o máximo que conseguimos fazer no momento. Bem, Boa noite.” Mayck se virou e fechou os olhos.
“Boa noite.” Ela também se deitou.
Ainda na cozinha, Takashi colocava seus pensamentos em ordem. Seus olhos mostravam que ele sabia mais do que o garoto pensava.
O que era aquilo? Um tipo de fantasma? Não parece ser o tipo de coisa que Sophia enfrentava, embora isso seja o menos importante no momento. O problema é aquilo… Será que Mayck consegue usar aquele poder estranho de novo? Isso não é bom. Eu não posso deixar meu filho fazer aquilo outra vez.
Uma memória ruim invadiu a cabeça do policial.
Talvez eu deva falar com aquela pessoa. Ela pode me ajudar.
Takashi suspirou com o conflito que se iniciou em seu coração. Um medo que ele já sentiu uma vez… ele não queria presenciar o seu filho naquele estado nunca mais.
O seu coração doía apenas por lembrar daquela cena, aquela visão que machucava sua alma.
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