Índice de Capítulo

    Depois de dar um fim no sonho de Eugênio e da família Ferreira, Mayck, com rápidos manejos de espada, eliminou os Ninkais que sobreviveram à explosão. Em seguida, pegou Lorena no colo e estalou os dedos, guardando todo o seu equipamento. 

    Não importava se Célia acordasse e começasse a gritar com ele, desesperada por sua filha de volta. No entanto, a julgar pela reação dela anteriormente, ele queria acreditar que ela tivesse algum tipo de apego pelos filhos, mesmo que só um pouco. Contudo, era uma questão para outra hora. Mayck pegou o seu celular — que por milagre ainda estava intacto — e mandou uma mensagem para Jade, afirmando que havia terminado de resolver tudo. 

    Quando chegou em casa, levou Lorena para o seu quarto e viu que havia arranhões nas pernas e nos braços da garota. Aproveitou que ela estava dormindo e, com a ajuda de um algodão que ele pegou no armário da cozinha, aplicou álcool 70 nos ferimentos, esperando que servisse como desinfetante. 

    Ela está toda suja… Bom, Jade pode dar um banho nela quando voltar. Por enquanto, meu trabalho acabou aqui. 

    Sentindo o grande cansaço, Mayck arrastou seu corpo até sua cama e se jogou nela, sem nem pensar em tomar banho. Percebeu que não tinha conseguido dormir cedo por conta do incidente e decidiu que no dia seguinte ele teria uma folga — que era para ser o motivo principal da viagem — algo que Eugênio e a organização tirou dele. 

    Como não conseguia dormir, o garoto se deitou com a barriga para cima e ficou encarando o teto, buscando o sono que não vinha até ele. Aparentemente, seu corpo ainda possuía um pouco de energia e lutava contra o cansaço. Nesse tempo, a imagem do braço de Eugênio sendo cortado veio em sua cabeça e ele expressou a agonia em seu rosto. 

    Ugh…! Eu posso não ter ligado na hora… mas agora… só de pensar nisso dá vontade de vomitar. 

    Apesar dos pesares, Mayck odiava ver pessoas ou qualquer outro ser vivo se ferindo. Era uma visão que o fazia arrepiar a trazia um enorme desconforto e tontura. Percebendo que não iria conseguir pregar os olhos, ele saiu de casa novamente. 

    A rua estava pacífica. Não havia resquícios de que uma enorme bagunça aconteceu pouco tempo atrás. 

    “Que silêncio…” Mayck comentou. 

    Ele continuou andando tranquilamente, até ouvir passos atrás dele. Lentamente, ele se virou para a pessoa que o acompanhava. 

    “Eu não esperava que acordasse tão rápido, tia.”

    Célia o observava sem dizer uma única palavra. Pelo seu rosto, dava pra dizer que ela tinha muitas perguntas a fazer e uma delas Mayck já imaginava. 

    “Não precisa se preocupar com Lorena, ela vai ficar bem… Não que você ligue, não é?”

    “Isso não é verdade. Você tem um tempo?” Ela perguntou calmamente. 

    “Hm…” Mayck deu as costas e continuou caminhando e Célia o seguiu. 

    Eles andaram por um bom tempo, e o garoto ainda se perguntava como Célia havia acordado tão rápido. Naquela explosão, nem mesmo ele conseguiria se manter consciente ao ser arremessado para tão longe. Ele ter conseguido sair do raio da explosão e levar Lorena e Célia junto foi um golpe de sorte. 

    Acho que não… talvez as duas tenham desmaiado por causa da velocidade com que saíram de lá.  

    Era uma possibilidade. Diferente dele, as duas não estavam acostumadas a movimentos tão velozes. Talvez aquilo tenha desencadeado alguma reação nada boa no cérebro e corpo delas e elas ficaram inconscientes. 

    Vou tomar mais cuidado…

    Mayck declarou que a partir daquele momento ele não iria usar sua velocidade com ninguém além dele mesmo. Claro, se o indivíduo fosse acostumado com altas velocidades era uma história diferente. 

    “Eu…” Célia abriu a boca. “Eu tenho que te contar algumas coisas. Vou entender se não acreditar em mim, mas… eu preciso te contar a verdade.”

    “Vou decidir isso depois de ouvir. Sinceramente, eu pediria pra você ficar quieta. No entanto, eu quero saber essa verdade.”

    “Bom… tudo bem”, ela falou com um pouco de receio em sua voz. “Primeiro, eu sempre soube que você derrotaria meu pai. Ele ficou fora de si e começou a ordenar coisas absurdas…”

    “Como usar a própria neta em um experimento ridículo.”

    “Sim…”

    “Mas como eu posso ter certeza de que você não concordou com ele? Vai me dizer que foi obrigada a isso?”

    “É assim que as coisas são.”

    Mayck parou repentinamente e encarou sua tia, que estava com o olhar baixo e melancólico. Uma coisa que Mayck odiava, tanto em filmes quanto no mundo real, era odiar alguém por causa das circunstâncias e depois se arrepender ao conhecer o passado delas. Era tão irritante que ele odiava esse lado dele. 

    “No começo, as coisas não seriam assim. Eu nunca quis que meus filhos passassem por tudo isso.”

    “Nem mesmo Jade?”

    “Nem mesmo ela. É como você disse. Eu não posso me chamar de mãe se eu trato meus filhos como ferramentas. Essa sempre foi a parte mais difícil.”

    “Vai dizer que esteve fingindo esse tempo todo? Eu não ficaria surpreso se Jade tivesse herdado o dom de atuar de você.”

    “Talvez sim… mas eu acredito que não. Não posso dizer que era fingimento. Eram os meus sentimentos mais honestos.”

    “Você está se contradizendo.” 

    Mayck não entendia o que Célia dizia. Ele estava a um passo de pensar que ela estava se esforçando para mentir e que havia uma possibilidade de outra jogada desesperada de Eugênio. O garoto acabou ficando cauteloso. 

    “Eu sei que é estranho… mas para te fazer entender, temos que ir em um outro assunto. Se você quiser ouvir sobre isso, vai precisar de um bom tempo.”

    “Não pode dar uma resumida? Eu realmente estou com a cabeça cheia de coisas.”

    “Então… vou contar apenas sobre mim.”

    Célia abriu a boca e começou a falar sobre o seu passado. Resumidamente, sobre o que levou ela a usar seus filhos em prol dos sonhos de seu pai. Ela não tinha intenção de usá-los. Ela foi forçada a tal coisa. No início, antes do primeiro fracasso de Eugênio, ela também ansiava pela conclusão do experimento. Entretanto, ela não esperava que esse imenso desejo fosse levá-la a ter de sacrificar seus preciosos filhos para concluir aquilo. 

    Ela era contra, mas seu pai e seu marido contendiam com ela e venceram no fim. Foi difícil para ela ver sua filha mais velha ser desprezada pelos resto da família. Foi difícil para ela ter que odiar os seus sobrinhos por serem frutos daquela que fez a vida dela ficar de cabeça para baixo. Depois de tanta pressão, tantas noites de choro sem ninguém para enxugar suas lágrimas e soluços que não chegavam aos ouvidos ninguém, ela desistiu de lutar, tomando a decisão mais drástica de sua vida. Já que não havia quem a salvasse, então ela morreria para não ter que continuar com aquilo. 

    Com uma faca perto de seu pescoço, ela pedia perdão aos seus filhos por não ter sido capaz de protegê-los. Quando o fim estava próximo dela, Bruno arrancou a faca de suas mãos e lhe deu uma solução para fugir daqueles sentimentos. Ele lhe falou para usar sua ID e trancar todos os sentimentos que a prendiam a seus filhos. De início, ela resistiu e brigou com seu marido, questionado do porquê de ele ser tão frio em relação aos filhos. A resposta que recebeu foi como as linhas de um marionetista se prendendo ao seu corpo. 

    No dia seguinte, não restava nenhum interesse na mulher, senão a imensa vontade de ajudar na conclusão do experimento — Célia usou a ID em si mesma e trancou todos os seus sentimentos relacionados ao apego às crianças que ela havia gerado. 

    “E então… hoje, por algum motivo, meus sentimentos voltaram à tona. Eu não sei o que aconteceu. Talvez minha ID esteja chegando no limite, já que eu estou a usando há anos sem parar.”

    “É uma boa explicação. Mas não tem uma base, então não vou contar com isso.” Mayck virou seu rosto e olhou para o céu, onde a lua brilhava intensamente. “Vamos supor que o que você me disse é verdade. O que você pretende com isso?”

    “O que eu quero é… só quero que você não guarde mais nenhum rancor contra nós e não odeie os meus filhos. Eles foram apenas peões nisso tudo. Foram ensinados a ser do jeito que são. Então, por favor.” 

    Um costume nada comum no Brasil era algo totalmente normal no Japão. O ato de abaixar a cabeça quando se pede um favor ou quando se desculpa. Para Célia fazer isso, podia-se pensar que ela aprendeu esse gesto com Takafumi ou Tomoko. Enfim, quando viu sua tia inclinar o corpo humildemente, Mayck se surpreendeu bastante. Ele não esperava que aquilo acontecesse. 

    “… Hm… eu não vou guardar rancor por toda a minha vida.” O garoto não soube o que dizer e deu as costas um pouco sem jeito. Ele não estava acostumado a ver adultos se dirigindo a ela de tal forma. No entanto, sua resposta foi positiva. 

    “Mas ainda tem algumas coisas que eu quero saber.”

    “Como o quê?” Célia levantou a cabeça e fixou seus olhos no garoto, logo entendeu o que ele queria dizer. “Sua mãe, não é?”

    “Bingo. Quando nos encontramos hoje, você mencionou ela. Eu gostaria de ouvir sobre isso.”

    “… Parece que eu não tenho escolha. Você tem o direito de ouvir a verdade sobre ela e também… o verdadeiro motivo pelo qual vocês foram embora.”

    Para tocar em um assunto delicado, o meio da rua não era o local indicado para isso. Eles então se mudaram para o parque em que Mayck se encontrou com Alexander, que também era o mesmo parque onde ocorreu a festa de aniversário da cidade. 

    Depois de se sentarem no banco de praça a uma distância razoável um do outro, Célia retornou sua narrativa — o verdadeiro motivo para tudo o que estava acontecendo, ou pelo menos o que ela sabia sobre o caso. 

    Célia começou contando sobre uma garota que ela conheceu na infância, ou melhor, uma garota que seu pai trouxe para casa e falou que seria sua filha adotiva. Na época, elas tinham uma pequena diferença de idade, tendo Célia 14 anos e Sophia 10 anos. No início as coisas eram tranquilas. As duas garotas se divertiam o tempo todo e se ajudavam nos estudos. Com o passar do tempo, elas criaram um grande apego uma à outra. No entanto, a relação familiar começou a ficar estranha aos poucos. Ryan, o irmão mais velho de Célia, possuindo 19 anos, começou a trabalhar com seu pai. Ambos passavam boa parte do tempo fora de casa e isso preocupava Inês, mãe de Célia, no entanto, ela acabou aceitando. 

    Com a conclusão do ensino médio, Célia também decidiu procurar emprego e foi recomendada por seu pai para um concurso de medicina, embora a garota nunca tivesse estudado para isso. Entretanto, o tal concurso era só uma fachada. Por trás do emprego do pai, havia um projeto em grande escala, financiado por diversas pessoas poderosas, monetariamente, do mundo inteiro. Célia aprendeu sobre as IDs e todas as coisas relacionadas a ela. A garota sempre teve uma certa curiosidade pelo sobrenatural, então, enganada pelas palavras do pai, ela abraçou o experimento de coração. Foi no laboratório onde ela conheceu e se apaixonou por um pesquisador novato, que também havia sido indicado por Eugênio. 

    Os anos se passaram e alguns dos envolvidos começaram a se retirar do projeto. Foi uma grande queda nos desenvolvimentos, porém nenhum dos que restaram queriam parar. O motivo que fez o grupo se dividir, foi um dos cálculos que não eram tão agradáveis e que colocava todos os direitos humanos à prova.

    Com seu amor correspondido, Célia engravidou aos vinte anos e acabou se afastando da pesquisa. Quando Sophia concluiu o ensino médio decidiu ir para uma faculdade de direito e não ficava muito tempo em casa e, ocasionalmente, a família deixou Inês à própria sorte. Dentro de alguns meses, ela começou a ter crises de ansiedade e, eventualmente, depressão. O que resultou em seu suicídio por ter pensar que havia sido abandonada. 

    O primeiro filho de Célia nasceu e depois de terminar a amamentação, ela voltou a participar do projeto, que estava caminhando a todo o vapor. As coisas estavam sendo apressadas e Célia levou um tempo para se adaptar novamente. A causa de tudo era que as pessoas que abandonaram o projeto começaram a lutar contra ele e faziam diversos ataques na tentativa de interromper todo o desenvolvimento. Aos vinte e três anos ela teve outro filho e evitou a gravidez por um tempo. 

    Dentro do laboratório de pesquisas, Célia tinha uma amiga americana chamada Karen, que era uma pesquisadora muito habilidosa e dava bastante atenção à Célia, ajudando-a no que fosse necessário. 

    Os pequenos ataques da organização rival começaram a ficar mais frequentes e tomavam uma escala cada vez maior. As pesquisas aceleraram. Eles já estavam na reta final da conclusão do experimento. Se a organização inimiga conseguisse pará-los ali, seria como morrer na praia. 

    Após mais alguns anos, o experimento chegou ao fim. Foi como um grande evento para os envolvidos. Não só para eles, como também para toda a humanidade. O que devia ser um projeto nascido da puta curiosidade humana virou uma catástrofe. A criatura nascida do projeto não podia ser parada e ali, em solo brasileiro, ela começou a deixar rastros de destruição ferindo centenas de pessoas. Entretanto, ninguém se arrependeu. Célia não estava presente na conclusão, pois estava grávida de seu terceiro filho. Tudo o que ela chegou a presenciar foi a derrota do monstro e da organização. 

    Aquela pequena guerra durou três dias sem parar, contando com os esforços dos portadores que lutavam desesperadamente para parar aquele caos, que só acabou depois de ceifar a vida de mais de 80% daqueles que lutavam contra e a favor do experimento. Célia recebeu a notícia de que sua irmã, Sophia, fazia parte do grupo opositor e o que sobrou dela foi um marido e dois filhos pequenos, cujo filho mais novo havia acabado de nascer. 

    Como forma de arrependimento, Célia se ofereceu para ser a ama de leite do pequeno garoto, mas foi recusado pelo pai da criança. A partir daí, as coisas começaram a desandar. Eugênio e os pesquisadores que restaram, assim como Ryan, não queriam que as coisas acabassem daquele jeito e recomeçaram o experimento, mas deixaram Célia de fora. 

    Célia não sabia mais nada sobre o que estava ocorrendo nos laboratórios reconstruídos. Porém, em um certo dia, quando Jade completou seu aniversário de três anos, Eugênio trouxe duas crianças pequenas para casa e ordenou que Célia cuidasse delas sem questionar. Era um garoto de um ano de idade e uma garota com oito meses. A mulher cuidou das crianças, acreditando que elas eram órfãs e as tratava como seus próprios filhos, até descobrir que elas não eram nada mais além de cobaias para os testes que iriam começar. Foi uma grande decepção para ela. 

    Em uma noite de natal, depois de uma pequena comemoração com seus filhos em casa, Takashi tocou a campainha, sendo acompanhado de seu filho, Mayck. Aconteceu que Alana havia sido atropelada e o culpado de tudo havia sido Ryan, que atingiu o estado de loucura e queria levar o experimento ao sucesso a todo custo, resultando na morte da garota de nove anos. 

    Célia contou que o verdadeiro motivo para Mayck sair de lá não era o que seu pai havia lhe dito. Takashi afirmou que era para que o garoto não se machucasse ao se lembrar de sua irmã, mas essa não era a verdade. Junto com seu amigo, Masato Tsubaki, ele sabia que Eugênio poderia acabar matando seu filho assim como fez com Alana e sua única escolha era fugir de lá. 

    “É só especulação minha, mas… tenho certeza que essa é a verdade.” Célia terminou sua narração e olhou para o céu, onde começaram a passar algumas nuvens. 

    Mayck não sabia o que responder. Aquela era uma quantidade absurda de informações, mas cabia a ele aceitá-las como verdadeiras ou não. Mas a balança pendia para o lado da verdade, já que algumas coisas faziam sentido. Mas… porquê Alana ou a Chave nunca lhe contaram nada sobre isso? Elas não sabiam? Chave contou sobre quem a criou, então ela sabia muito mais do que isso. 

    “Bom… se o que você disse é mesmo verdade, então me ajuda bastante.” Mayck se levantou do banco. “Ainda tem algumas lacunas, mas acredito que o tempo vai preenchê-las.”

    “Se você perguntar pro meu pai, tenho certeza que ela vai dizer.”

    “Nem pensar. Eu posso não guardar rancor por muitas coisas, mas alguém que trata a família como nada mais que ferramentas é imperdoável. Não vou conseguir falar com ele numa boa tão cedo.”

    “Acho que você está certo. Não é tão simples assim.”

    “O mesmo vale pra você e o resto da sua família. Você falou que minha mãe foi adotada, então não posso pensar em vocês como família. Não temos nenhum tipo de laço.” O garoto afirmou. “Além do mais, você pode estar assim agora, mas eu sei que ainda tem bastante ódio contra mim no seu coração. Seu ódio por mim foi a única coisa genuína que você guardou por todo esse tempo.”

    “Tem razão. Eu os odeio porque por culpa de vocês eu fui obrigada a maltratar meus filhos.” Célia levantou e caminhou alguns passos para longe de Mayck. “Fazemos assim então. Vamos continuar com nosso ódio um contra o outro e deixar que o tempo o elimine. Pode ser que alguma coisa aconteça ainda…”

    “Não vai acontecer nada. Não com vocês envolvidos. A família Ferreira já chegou longe demais. É fim da linha pra vocês.”

    “Pode ser que sim”, Célia abaixou seu tom de voz e começou a caminhar. 

    Mayck a olhou por algum tempo e voltou seus olhos para o céu, até que algo veio à sua cabeça. 

    “Ah, verdade. Eu quase me esqueci. Meu pai vai se casar de novo em breve, então eu vou levar Jade e Lorena comigo.”

    “… Quê?”

    “Não preciso repetir. Você sabe que elas não vão te ver com bons olhos assim de repente.” Mayck se afastou, indo pela direção oposta e deu um último aviso. “Eu vou deixar Manuela ir embora, então não se preocupe.”

    Célia o encarou enquanto ele se afastava e deu um longo suspiro. Realmente, em todos aqueles anos, eles foram longe demais. Colocaram o mundo em perigo, fizeram vidas serem perdidas… Já é hora de parar, Célia pensou, não teremos mais a chance de sermos felizes como uma família normal. Tudo o que restava era ficar em silêncio e esperar que o tempo os perdoasse, não que fosse algo fácil. 

    |×××|

    Depois de caminharem com bastante dificuldade, Jade e Alexander pegaram o carro e seguiram para o galpão onde Manuela fora deixada. Quando chegaram lá, ela estava, como eles pensaram, furiosa. Não havia comida, nem água por perto para que ela pudesse se hidratar e se alimentar. Além do mais, mesmo que tivesse algo lá, ela não seria capaz de pegar por estar presa a uma cadeira. 

    “Pensei que você usaria sua ID para escapar.” Alexander debochou quando viu a garota se debatendo na cadeira. 

    “Ugh…! Você é tão irritante! Me solta logo seu verme imundo!”

    “Reveja seus modos. Tenha respeito por alguém mais velho.” O homem se abaixou e verificou o ferimento em sua perna. 

    Manuela, que estava o observando, não deixaria passar a chance de insultá-lo. 

    “Há, para alguém tão exibido como você, é patético aparecer aqui com um ferimento desses.”

    “Calada, pirralha.”

    No meio desse bate-boca entre aqueles dois inimigos mortais, uma pessoa estava encostada na parede sem prestar atenção a eles. Jade ainda estava inconformada com a situação. Em sua cabeça se passavam mil e uma formas de tudo dar errado para Mayck e a família Ferreira sair ganhando. Uma hora ela sentiu um impulso que a fazia querer voltar, mas ela também queria fazer o que seu primo lhe pediu e esperar. 

    Era um turbilhão confuso em sua mente que a deixava assustada e ansiosa. Além do mais, o pensamento de não poder ser útil a feria mais do que a ansiedade por não saber o que viria depois. Ela poderia acordar no dia seguinte e descobrir que tudo era só um pesadelo? Ela só queria fugir da realidade. 

    “Não é?!” De repente, Alexander e Manuela gritaram em uníssono, se dirigindo a Jade que não estava prestando atenção na discussão da dupla. 

    “Er… o quê…?”

    “Você está tão preocupada assim com ele? Não está nem prestando atenção quando sua irmãzinha está sendo tão barulhenta”, depois de dar um enorme suspiro, Alexander falou. 

    “Eu estou sendo barulhenta?” Manuela tentou continuar a discussão, mas todas as suas palavras foram ignoradas por Alexander, que voltou sua atenção para a silenciosa Jade. 

    “Ele falou que tudo ia ficar bem. Então não tem com o que se preocupar.”

    “Alexander, você… confia mesmo nele, não é?”

    “Eu só posso fazer isso. Aquele moleque me fez passar por um perrengue, se ele falhar só vai parecer que eu sou patético e eu não vou aceitar isso.”

    Jade sorriu levemente. 

    “Faz sentido. Mas, ainda assim, eu não consigo deixar de me preocupar. Eu não quero que Mayck se machuque, mas também não quero que ele machuque a minha família.” 

    Mesmo com toda a crueldade que sofreu por vários anos, Jade ainda possuía um apego por sua família. Ela aprendeu a conviver com aquilo e não poderia explicar caso alguém lhe perguntasse se ela odiava sua família. Era um misto de ódio com simpatia ou talvez Jade fosse problemática demais para não ter qualquer rancor contra os Ferreira. Dizer que ela não possuía rancor era uma mentira, então podia-se afirmar que a garota possuía um coração bondoso o suficiente para perdoar os crimes de seus pais. 

    “Fala sério. Eu não consigo entender como você não os odeia a ponto de vê-los mortos.” Alexander suspirou de forma pesada, não tentando esconder a raiva que sentia de Eugênio e todos os outros. 

    “Eu não…”

    “Ah, no meu caso, eu já teria os matado há muito tempo. Você consegue entender, não é? Pessoas ruins devem ser punidas da pior forma. Aquele moleque também deve pensar assim.”

    “Isso não é verdade. Mayck não faria…”

    “Está dizendo que ele não tem coragem o suficiente para matar os Ferreira? Garotinha burra. Você não conhece nada do verdadeiro Mayck, não é?”

    Jade arregalou os olhos. Ela se via sendo confrontada com uma realidade que sequer poderia imaginar. Não entrava na mente de Jade a possibilidade de que Mayck mataria pessoas a sangue frio… Ela não conseguia aceitar que aquele a quem ela entregou seu coração fosse um assassino sangue frio. 

    “Não pode… ele deve ter bons motivos para isso. As pessoas devem ter feito algo terrível para ele matá-las…”

    “Hahahahah!” Alexander soltou uma gargalhada maliciosa vendo a confusão tomar conta da mente de Jade. Ele parecia estar gostando de ver aquilo. “Quando você se dar conta, ele já vai ter te dominado completamente. Você vai ser só uma marionete que acha que tudo o que ele faz é certo. Você ainda é só um filhote que acabou de sair do ovo. Não seja tão otimista.”

    “Não… Mayck nunca…” Jade tentou se apoiar nas lembranças de infância e nas memórias mais recentes que tinha com o garoto. Ela buscava algo para se convencer de que não estava errada e que Mayck não era o monstro que Alexander o fazia parecer. 

    “Você é mesmo um lixo, não é?” Manuela, que assistiu a toda a conversa, se intrometeu. “Finge que está cooperando com ele apenas para apunhalá-lo pelas costas.”

    “Você ainda está falando?”

    “Eu admito que ele é bom o suficiente para derrotar o meu avô, mas eu ainda acho que, mesmo que ele seja alguém perverso, ainda é só mais uma máscara.”

    “Oh? E como pode afirmar isso?”

    “É simples. Desde o início, eu sabia que ele não tinha nem um pouco de medo dos avanços violentos do meu pai e do meu avô. Eu queria fingir que não, mas era a realidade.” Manuela fechou seus olhos como forma de consolo por admitir aquilo. “Agora, a minha resposta para não poder fugir antes, é que eu não tenho habilidades ofensivas, nem defensivas.”

    “Então você está dizendo que Mayck pode saber muito mais do que parece?”

    “Eu não quis dizer isso. Mas, bem, eu não ficaria mais surpresa caso ele já tivesse algo para lidar com você também.”

    Alexander se calou e ponderou por um momento, mas decidiu ignorar aquelas palavras como sendo apenas delírios de uma criança assustada. 

    “Poderiam me soltar agora? Minha barriga está roncando de fome.”

    “Humpf. Tanto faz. Você já não tem utilidade mesmo.” 

    Mesmo com esses insultos, por incrível que podia parecer, Manuela não retrucou e ficou em silêncio. Alexander caminhou até ela e soltou as amarras de suas mãos, a libertando.

    “No carro lá fora tem algumas coisas no porta-malas. Vê se te ajuda.”

    “Eh? E onde você espera que eu faça minhas necessidades?” Manuela ficou surpresa por não receber a notícia de que seria levada para casa e foi deixada à própria sorte na busca pelo local adequado para se aliviar. 

    “Não vamos te levar até que recebamos a confirmação. Então comporte-se até lá.”

    Manuela estalou a língua. Ela não tinha escolha a não ser obedecer, uma vez que ela não sabia o caminho de volta e também estava muito escuro para tentar fugir pelo matagal. E não era como se a vida dela estivesse em risco de qualquer forma, então não havia motivo para desespero. A garota abriu a porta do galpão e correu para o carro, comendo as coisas que tinham lá, apesar de serem besteiras, como refrigerantes, salgadinhos e alguns doces. 

    Alexander ficou sozinho com Jade. Ambos mantiveram o silêncio, cada um preso em seus próprios pensamentos. Só de vê-los de longe dava para sentir a aura intimidadora de Alexander e a insegurança de Jade. Após alguns minutos, o celular de Jade vibrou em seu bolso. Ela o olhou e apareceu a notificação de uma mensagem. 

    “Ele já acabou”, Jade disse em voz alta quando terminou de ler o pequeno texto enviado por Mayck. 

    “Sério?” Alexander quase saltou de susto. Ele não esperava que acabasse tão rápido. “Bom, que seja. Pense bem no que te falei e tente descobrir por si mesma, vai ver que ele não é o que parece.”

    Deixando essas palavras para trás Alexander saiu do galpão. 

    “Pode ficar feliz, fedelha. Você já pode ir pra casa.”

    “Demorou, hein.”

    “Ah, e parece que vocês perderam.”

    “Tsk. Tanto faz. Eu nem ligo mesmo.”

    Jade continuou imóvel. Alexander fez várias dúvidas e receios brotarem em sua cabeça.

    Se ele estiver falando a verdade… como eu posso encarar Mayck agora? Eu não quero acreditar que ele esteja certo, mas não consigo evitar. 

    Jade ficou com medo de se encontrar com Mayck e não poder mais vê-lo como antes. Ela não queria pensar que ele estivesse mentindo para ela e agindo como boa pessoa.

    De repente, os faróis acesos e a buzina do veículo a despertaram e, rapidamente, ela correu para o carro depois de fechar a porta do galpão. Sem demorar muito, os três abandonaram o local. Após uma longa viagem de carro, eles chegaram a praça da cidade, onde Mayck esperava ansiosamente — ou não — pelo retorno deles. 

    Quando o carro parou, Manuela pulou para fora e, furiosamente, usou seus conhecimentos de artes marciais e avançou em Mayck com um Side kick. O garoto desviou facilmente, por já estar esperando tal reação da garota. No entanto, ela não parou e avançou com um back kick, que também foi evitado. Para não estender a luta, Mayck correu até ela e segurou sua perna quando ela pretendia outro back kick, a derrubando. Em seguida, ele girou os braços Manuela e os prendeu nas costas da garota, evitando que ela continuasse a atacar. 

    “Já deu, não é?”

    “Você ter me sequestrado não tem nada a ver com a surra que você deu nos outros.”

    “Fique quieta. Você resistir não vai ajudar em nada.”

    Depois de confirmar que Manuela se acalmou, Mayck a libertou e voltou sua atenção para Alexander. 

    “Valeu por cooperar.”

    “Não precisa me agradecer. Mas eu fiquei mesmo surpreso por você ter acabado tão rápido.”

    “Hm.”

    “Pensei que você teria trabalho ao menos com os Ninkais.”

    Mayck fixou quieto apenas olhando para Alexander, enquanto ele sorria sarcasticamente. Quando notou que Mayck não estava entrando na brincadeira, seu semblante ficou sério. 

    “O que foi?”

    “”O que foi?” Eu não esqueci que você tem rancor contra eles. Estava me perguntando o que você estava planejando fazer.”

    “Ah, isso? Não se preocupe. Só de saber que os planos dele foram por água abaixo por causa da pessoa que ele queria matar já me deixa satisfeito.”

    “Hmm… Eu me pergunto se é assim mesmo. Bom, de qualquer forma, não precisamos mais nos preocupar com eles. Podemos nos focar no que vem a seguir.”

    Alexander concordou. Com a ameaça de Eugênio fora do caminho, eles poderiam lutar contra os líderes das regiões sem mais preocupações. Era uma ótima oportunidade não só para reinvidicar alguns territórios como também conseguiriam um bom dinheiro dos derrotados. O homem do chapéu de côco estava apostando tudo nisso. 

    Manuela estava lá, escutando tudo atentamente, porém, Mayck e Alexander evitaram os detalhes e trocaram apenas palavras superficiais que deixava dúvidas sobre o próximo passo. Jade continuou em silêncio, ainda refletindo sobre as palavras de Alexander e evitando olhar para Mayck, com medo de encontrar seus olhos. 

    Com aquela parte resolvida, Mayck falou que contaria os detalhes a Alexander mais tarde e ele assentiu e se retirou sem muita enrolação. 

    “Vamos indo?” O garoto falou para suas primas. 

    “A-ah, claro.” Jade, saindo de seu transe, acenou com a cabeça e correu para o lado dele. 

    No caminho, o trio ficou em silêncio por um tempo, no entanto, Manuela começou a exigir que Mayck lhe fizesse um pedido de desculpas e que pensaria em perdoá-lo com certas condições. Condições essas que tornariam o garoto um escravo, caso ele aceitasse. Mayck ainda tinha seu orgulho, então não hesitou em entrar em uma discussão com a garota, dizendo que não pediria desculpas nem por um milhão de reais e também reclamou das condições que eram horríveis. 

    Jade, porém, não repreendia os dois. Ela se mantinha de cabeça baixa, como se estivesse em um outro mundo, onde não podia ouvir suas vozes. Ela não estava prestando atenção nem mesmo no caminho de casa, apenas seguia como algo automático. Vez ou outra seus olhos se direcionavam para o garoto, mas nada além disso. 

    Estou com medo. 

    Jade tinha vontade de perguntar, mas sua voz não saia. 

    E se eu perguntar e ele disser que sim? Eu não quero saber. Mas eu vou ficar assim até quando? 

    Se ela não seguisse em frente naquele momento, uma hora a verdade poderia aparecer do nada, como um tiro. 

    Eu não consigo…

    “Jade? O que foi?”

    “Huh?! Não é nada, não. Só estou cansada.” Ela se agitou e balançou as mãos nervosamente na frente de seus rosto, evitando olhar para o garoto. 

    “Não se preocupe”, ele falou e Jade o olhou lentamente. “Eu não matei eles. Vai ficar tudo bem a partir de agora.” Mayck notou que Jade estava assustada, embora não soubesse o motivo. Mas ele sabia que poderia deixá-la aliviada com aquelas palavras. 

    “Entendo. Você não os matou…” Sem que ela percebesse, um sorriso se estampou em seu rosto. 

    Manuela os olhou com desconfiança. 

    “A propósito, Mayck, você confia mesmo naquele idiota?”

    “Está falando do Alexander?”

    “Sim. Ele mesmo. Não tem medo de ele te trair?” Por algum motivo desconhecido, Manuela se sentiu tentada a alertar Mayck sobre o perigo que Alexander reapresentava, lembrando-se das palavras que ele disse a Jade. 

    “Tá de boa. Ele não é um cara tão ruim assim. Eu confio nele.”

    Mesmo não esperando aquela resposta, Manuela apenas respondeu com um “entendi” e encerrou o assunto. Jade percebeu que Manuela tinha feito aquela pergunta por ela e não pôde evitar de sentir uma pontada de alegria em seu peito. Talvez Manuela tivesse sentimentos fraternais dentro dela, mesmo sendo uma garota mimada com duas faces. 

    Regras dos Comentários:

    • ‣ Seja respeitoso e gentil com os outros leitores.
    • ‣ Evite spoilers do capítulo ou da história.
    • ‣ Comentários ofensivos serão removidos.
    AVALIE ESTE CONTEÚDO
    Avaliação: 0% (0 votos)

    Nota