Índice de Capítulo

    Elias Monteiro sempre foi uma pessoa indiferente, ou melhor, ele não se importava com o que as pessoas pensavam dele, mas também não deixava uma má impressão. Quando criança sempre se esforçou para ajudar ou outros, mas nunca era recompensado por isso. Seus pais eram rígidos e o puniam quando não seguia o cronograma de estudos apropriadamente. 

    Notas boas, diplomas e certificados. Ele sempre os levava para casa, porém ninguém o elogiava ou dava importância para isso. 

    “Nada mais que sua obrigação. Você está na melhor escola, com os melhores professores. O mínimo que você pode fazer é trazer resultados excelentes.” Era o que seus pais sempre diziam. Entretanto, quando terminou o fundamental, ele acabou não passando no exame de admissão de uma escola preparatória para o ensino médio. Isso deixou seus pais furiosos ao ponto de bater nele e deixá-lo de cama por duas semanas. Os contatos que eles tinham se recusaram a colocá-lo em algumas das melhores escolas que sobraram. Por isso, ele teve que ir para uma escola pública como punição. 

    O colégio para onde foi transferido não tinha boa fama. Lá se encontravam filhos de pessoas do mais alto nível de criminalidade que se podia imaginar. Elias sofreu bullying até dizer chega, mas mesmo dizendo isso não adiantou nada, apenas piorou. Cansado de toda aquela pressão que sofria diariamente — abuso dos pais e dos colegas — Elias decidiu se vingar de um dos alunos que o tratavam mal. Depois de armar uma emboscada, ele o torturou por horas e quando sua vítima deu seu último suspiro de vida, ele enlouqueceu. 

    “Você não pode morrer agora, seu miserável!”

    Clamando com todas as suas forças, um brilho tomou conta do galpão onde eles estavam e se envolveu no corpo falecido. Em instantes, aquele corpo desapareceu e um ser intocável e de aparência bizarra surgiu frente a Elias. Sua aparência era a mesma do garoto que havia acabado de morrer, do jeitinho que ele estava momentos atrás. O garoto ficou aterrorizado e tentou fugir, gritando e com seu coração batendo mais rápido que o ser humano mais veloz do mundo. No entanto, enquanto tentava desesperadamente fugir, ele percebeu que aquela assombração não fazia nada. Ela estava imóvel, com seus olhos frios fixados nele. 

    Elias tomou coragem para se aproximar e experimentou falar com ela, dando ordens como “se ajoelhe”. Aquela figura fez isso sem hesitar. Após isso, ele começou a dar ordens e mais ordens. Ele descobriu que tinha o poder para governar a alma daquele aluno que o tinha feito sofrer tantas vezes. Aquilo subiu para sua cabeça e ele começou a matar e controlar as almas de todos os que ele odiava, os fazendo sofrer o máximo que podia antes de seus últimos suspiros. 

    Naquele momento, ele descobriu o quão doente era. Ele sentia prazer no choro dos outros e se deleitava no seu sofrimento. Mas a melhor parte era a que vinha depois. Quando ele queria, as almas voltavam como um exército imortal e lhe obedeciam sem nenhum problema. 

    Anos depois, Elias passou a ser chamado de Falcão, por dizer às pessoas que podia ver as almas daqueles que já morreram. 

    Duas batidas leves e firmes pediram permissão para entrar. 

    “Entre.” Falcão falou sem sair de sua cadeira de couro confortável e sem tirar seus olhos da janela. 

    “Senhor.” Um homem de terno passou pela porta e a fechou atrás de si. Ele estava com uma expressão séria e pronta para dar seu relatório. 

    “A investigação já terminou?”

    “Sim, senhor. Eles procuraram por toda parte e encontraram restos de tecido de Ninkais espalhados pelo gramado. Eram bem pequenos então não foi possível determinar a que criaturas pertenciam”, ele falou olhando para o tablet em suas mãos. 

    “Entendo. Se foi isso o que encontraram, então pode ser que um portador tenha lutado e eliminado o monstro.”

    “Senhor, também havia algumas horas de sangue no local. É possível que o monstro tenha devorado o portador?”

    “Ou então o portador eliminou um e se machucou no processo. Você deve pensar nas coisas mais simples também. Tentar parecer intelectual demais pode fazer seu desempenho cair. Tome cuidado.”

    “Me desculpe.”

    “Bom, de qualquer forma, tudo relacionado a Ninkais tem a ver com aqueles idiotas da organização. Vamos nos manter fora disso. Mande seus homens recuarem também.”

    “Certo. Com sua licença.” Terminado o seu relatório, o homem saiu pela porta. 

    Elias se virou e abriu uma gaveta embaixo de sua mesa. Ele tirou de lá um tipo de documento que possuía sua assinatura. Era um documento importante que garantia seus direitos como líder da região. Além de sua assinatura, possuía também os nomes de mais quatro pessoas e uma delas era Abner, o presidente da organização. 

    “Parece que tá na hora de reivindicar os meus direitos, não é?” Ele deu um sorriso malicioso. “Mas eu vou deixar acumular mais um pouco. Quando isso acontecer, a organização não vai poder mais me ignorar.” Ele guardou o documento e fechou a gaveta. 

    “Aah, que saco. E eu pensando que teria mais diversão com aquele garoto. É uma pena que foi tudo afobação minha. No fim, não passava de um mal-entendido.” Ele encarou o teto decepcionado. “Será que eu devia procurar aquele mercenário para perguntar quem era o oponente dele daquela vez?” 

    Ele riu com aquela ideia estúpida. Mesmo que ele quisesse, ele não conseguiria encontrar Alexander tão facilmente. Mesmo entre os líderes de região, a fama do Mercenário imortal era um tanto quanto preocupante. Preocupante o suficiente para eles não quererem se envolver com tal pessoa. 

    “Será que eu deveria começar uma rebelião em algum lugar? Isso aqui tá muito entediante.”

    “Você acha?”

    “É claro que sim… Mas quem é você?”

    Dentro da sala de Elias, havia três janelas que tornavam a sala totalmente iluminada. Como seu escritório estava no último andar de um prédio, ele também tinha uma visão privilegiada da cidade e não era facilmente incomodado com os barulhos que vinha dela. Alguém que gostava de sossego amaria dormir naquele local. No entanto, aquele escritório estava localizado no vigésimo quinto andar do prédio. Não tinha como chegar nele por outro lugar que não fosse pela entrada principal. Elias se alarmou com o fato daquela pessoa de manto escuro e máscara branca estar encostado na janela ao lado dele sem ter passado pela porta. 

    “Não se preocupe com isso. Pode ficar tranquilo, senhor Falcão. Eu só vim aqui conversar.”

    “Entrar sorrateiramente na minha sala quer dizer outra coisa. Mas eu estou disposto a ouvir. Afinal, sinto que você vai me trazer alguma diversão.”

    “Que bom que você pensa assim. Então vamos direto ao ponto. Eu vim aqui pra tomar o seu lugar.”

    Sem enrolar, Mayck deu voz às suas intenções. Elias ficou calado por um tempo, pensado que fosse algum tipo de brincadeira. Ele olhou para o garoto e, mesmo sem ver seu rosto, não conseguia sentir nenhum tipo de piada no modo como ele agia, então percebeu que o invasor estava totalmente sério. Nisso, ele começou a gargalhar. 

    “Hahahahaha. É sério? Você está mesmo falando sério? Que engraçado. Nunca pensei que receberia esse tipo de declaração algum dia.” Passando sua crise de riso, ele deixou seu tom de voz um pouco mais sério, mas ainda dava para sentir o sarcasmo nela. “Interessante. Eu estava quase morrendo de tédio. Então, o que pretende fazer? Não vou acreditar que veio até aqui apenas para declarar isso, certo?”

    “Você tem razão. Eu proponho um jogo. Se eu vencer, tudo o que você tem será meu.”

    “Hmm… e se eu vencer?”

    “Você vai poder fazer o que quiser. No entanto, nesse jogo teremos três regras.” Mayck levantou três dedos, dando ênfase em sua explicação. “A primeira é: não vamos envolver civis e nem a cidade nesse jogo. A segundo: não pode usar outros portadores, exceto os que estão sob seu poder. E terceira, mas não menos importante, durante o jogo não pode haver mortes. Nem naturais, nem causadas por favor externo. Se houver uma morte, o jogo acaba e é anulado.” A cada regra, Mayck levantava um dedo. 

    Elias ouviu atentamente e com as regras ele começou a teorizar o que poderia ser esse jogo. 

    “Entendo. As regras são viáveis. E como será o jogo?”

    “Você já jogou rouba bandeira na infância?”

    “Bem, sim.”

    “Vai ser basicamente isso. Você vai escolher algo de valor que servirá como bandeira e terá que protegê-la. O objetivo é simplesmente roubar a bandeira do oponente, destruí-la e proteger a sua.”

    “Que jogo fácil. Eu posso proteger a minha bandeira da forma que eu quiser, correto?”

    “Exatamente. Desde que seu método não quebre as três regras.”

    Em primeiro plano, não tinha como perder em um jogo desses. Mas isso valia para os dois lados.  Elias sabia que tinha que ser cauteloso. Principalmente quando a pessoa que lhe propôs o desafio estivesse tão calma. Ninguém faria algo assim se fosse para perder. Ele deveria ter algum plano, Elias pensou. 

    “Não parece um jogo tão complicado. Mas eu estou me perguntando por que você faria um desafio desses.”

    “Quando eu vencer você vai entender. Estamos de acordo?”

    Mayck estendeu a mão, esperando o consentimento de Elias, que suspirou e deu mais uma gargalhada. 

    “Eu vou aceitar. Você parece ser divertido.” Retribuindo o gesto, Elias aceitou o desafio e parecia se divertir com a ideia de ter algo diferente em seu cotidiano entediante.

    Mayck se retirou pela janela, abrindo-a, no entanto. Quando ele saiu deixou Elias curioso sobre como ela havia entrado e também deixou as palavras de alerta sobre ele ter um dia inteiro para se preparar para o jogo. Quando estivessem prontos para começar, um mensageiro seria enviado por Elias para anunciar o preparo. 

    Um dia, hein. Isso vai ser divertido. 

    “Ah. Esqueci de perguntar o nome dele…” Elias se deu conta de que havia arrumado um oponente e nem ao menos sabia quem ele era. Mas ele imaginava que tal pessoa fosse o mesmo que foi relatado uma semana atrás. 

    Estando só, Elias pegou um óculos redondo com lente avermelhada e pôs no rosto. Era um sinal de que ele iria levar a sério. Após isso, ele pegou também um celular e fez uma ligação. Depois de alguns toques, a pessoa do outro lado da linha atendeu. 

    “Diogo, reúna todo o esquadrão e venha à minha sala. Temos um jogo pra vencer.”

    Diogo assentiu e a rápida ligação foi finalizada. 

    Passaram-se alguns minutos e Diogo bateu na porta do escritório. Quando ele entrou, Elias lhe passou todas as informações necessárias e lhe contou o seu plano. Os dois debateram sobre como seria a melhor estratégia que os levaria a vitória. Diogo era um ótimo estrategista e também era o braço direito de Elias. Sempre que um problema estava vindo, Falcão contava com ele para cuidar das coisas. Não era estranho que Diogo fosse visto liderando tropas para missões de ataques contra outras regiões, mas algo assim não acontecia há meses. 

    Quando chegaram a um entendimento e uma estratégia foi formada, Diogo ficou encarregado de passar as ordens detalhadas para seus homens. Eles iriam juntar cerca de 80 homens treinados, todos portadores, e que estavam sempre prontos para o combate. 

    “E o que vamos fazer quanto à bandeira?” Diogo se lembrou do mais importante. 

    “Não vou negar que, de primeira, eu pensei em eu mesmo ser a bandeira, mas isso seria contra as regras e eu pretendo ser justo nessa partida.”

    “Então você tem outra coisa em mente?”

    “Vamos usar aquilo.”

    “Aquilo…?” Diogo não entendeu de primeira, mas quando se deu conta do que se tratava, não pôde evitar de arregalar os olhos e deixar o sangue esquentar. “Espera, você está falando daquilo? Você enlouqueceu?”

    “Ei, ei. Não esqueça com quem está falando.” Elias o alertou sobre o respeito que deveria existir ali. “Fique tranquilo. Eu não apostaria algo tão importante se eu pensasse que fosse perder.”

    “Você tem razão. Me perdoe. Mas você está mesmo certo disso?”

    “É claro. Agora vamos começar a preparar tudo. Parece que vamos começar amanhã, às dez horas da noite.”

    “Certo. Com sua licença.”

    Diogo se retirou e foi cumprir sua tarefa. Ela reuniu todo o esquadrão e passou as ordens adiante, desde o propósito do jogo até como eles iriam se mover. Os homens estavam confiantes. Se Elias tinha certeza de sua vitória, então eles não tinham motivos para temer. A confiança era tanta, que eles até trataram todo o assunto como brincadeira. 

    “Por que o chefe arrumou essa briga de criança? Hahaha.”

    “Vai ver, ele estava entediado demais.”

    Murmúrios desse tipo corriam entre eles. Diogo os ouviu, mas não reclamou. No fundo ele pensava o mesmo seriamente. Após o término da reunião, Diogo saiu para realizar o segundo passo do plano. 

    “Chefe, estou aqui.” Uma voz feminina atravessou a porta de madeira da sala de Diogo. 

    “Entre.”

    A porta foi aberta e uma bela mulher de cabelos escuros e um terno preto entrou. 

    “O senhor me chamou?”

    “Sim. Eu tenho um trabalho para você e sua tropa.”

    “Trabalho?”

    Diogo assentiu e passou as instruções para Michelle. 

    Com aquele evento repentino, todos os membros da facção Falcão estavam agitados. Tal agitação não passaria despercebida pelos espiões de outras regiões que estavam infiltrados na cidade sem o conhecimento de Falcão ou de seus subordinados. Essas infiltrações eram feitas por famílias, que iam para a cidade com o pretexto de mudança e geralmente eram famílias criadas com esse objetivo. Essa tática de espionagem era adotada por todos os quatro líderes que, mesmo sabendo que havia espiões, não podiam se mover para afugentá-los, visto que os moradores faziam amizade entre si, e ameaçá-los seria arrumar problemas com a segurança pública. Sumir com provas em si não era difícil, mas se eles provocassem o governo, isso claramente chamaria a atenção de outros países e, consequentemente, das outras organizações. Portanto, um acordo inquebrável foi firmado entre os líderes das regiões e a organização para evitar o pior cenário. 

    Com isso em mente, Elias não tentou esconder o fato de que ele estava envolvido em um evento que colocava sua vida e seus bens em jogo. Pelo contrário, ele viu ali que era uma ótima oportunidade para mostrar mais uma vez aos seus oponentes a sua superioridade e que ele não teria piedade com seus inimigos. Uma grande forma de mostrar seu poder. 

    Enquanto os preparativos aconteciam, as outras regiões ficaram cautelosas. Claro, levando em conta a possibilidade de Elias perder e um novo líder ser seguido. 

    Na região norte, liderada por Matias, conhecido como Vespa, as notícias chegaram quase duas horas depois do jogo ser proposto. Ele não demonstrou um interesse grande naquilo, então apenas ignorou. O que foi diferente para os líderes da região sul, Isaque, e o líder da região oeste, Giovanni, que ficaram atraídos pela chance de diversão. Poderia-se dizer que eles possuíam uma mentalidade parecida com Elias, embora fossem um pouco menos cautelosos em suas ações. 

    Estava decidido. O jogo se iniciaria no dia seguinte às dez horas da noite. 

    Assim como Elias, Mayck também correu para fazer os seus preparativos.  

    |×××|

    “Você realmente desafiou ele para um jogo de rouba bandeira?” Alexander ainda estava perplexo ao receber a declaração de Mayck. 

    “Isso.”

    “E quem vai participar?”

    “Eu e você.”

    “Tá falando sério?”

    “Não se preocupe. Eu vou pôr aquela galera para trabalhar. Enquanto isso, você mantém Miguel nas rédeas.”

    “Ah, cara…” Alexander não estava mais surpreso. Todas as ideias de Mayck eram um tanto absurdas, mas davam certo no final. Em algum lugar em seu subconsciente, Alexander tinha bastante confiança no garoto. 

    “Então, o que você vai escolher como bandeira?”

    “Ah, sobre isso…”

    Mayck se virou de costas e andou até o guarda corpo do prédio em que estavam, de onde tinham uma bela visão da cidade. Depois de encará-la um pouco, Mayck se virou para Alexander e sorriu levemente. Alexander arregalou os seus olhos quando entendeu o que o garoto estava tentando lhe dizer. Em sua cabeça várias coisas passaram como um tufão e ele acabou entendendo a jogada dele. 

    “Eu não sei se já te disse antes, mas… você é bem astuto. Não esperava que você fosse fazer isso.”

    “Acha idiota?”

    “Quem sabe?” Alexander caminhou até o lado do garoto e pôs seus olhos na cidade. 

    “Bom, eu já espero que ele use como bandeira algo que eu não possa tocar, então nada mais justo que eu escolher algo intocável também.”

    “Eu não acho que possa dar errado, mas… você não está subestimando muito seu oponente não? Ele pode ter uma carta na manga para te derrotar.”

    “É eu sei. Pode parecer arrogante quando eu digo que não vou perder. Eu entendo o quão irritante pode ser e até cansado disso.”

    No fundo, Mayck só queria acabar com aquela bagunça logo. Estender todo aquele problema seria ruim para sua saúde mental, mas agora que ele pôs as mãos no fogo, não poderia tirá-la até que ele se apagasse. 

    “Não vamos envolver os civis nisso. Seremos apenas nós, portadores.”

    “E se o Falcão quebrar as regras? Ele pode muito bem fazer, já que não tem nada que possa impedi-lo.”

    “Nesse caso, eu também quebrarei as regras. Não vou aceitar que ele saia dos nossos termos por pura ignorância. Também espero vencer de forma justa.”

    “Forma justa… hein? Entendo. Eu vou participar dessa com você. Claro, tenho meus próprios motivos, mas também não quero ver um moleque me superando.”

    “Orgulhoso você, hein. Desde que você não me atrapalhe, eu não me importo com o que você faz.”

    A resposta de Mayck foi sincera e direta. Ele não se importava com Alexander, ele só seria útil no tempo em que o garoto precisasse. Uma vez que tudo estivesse acabado, Mayck cortaria laços com ele sem pensar duas vezes. Claro que ter um aliado poderoso como ele por perto seria bom, mas Alexander era um mercenário, e ele, pessoalmente, dava a impressão que faria tudo por dinheiro. Mesmo naquele momento, ele só estava ajudando Mayck porque o garoto lhe prometeu que ele poderia ficar com o dinheiro que encontrasse sob o poder dos líderes. 

    Deixando isso de lado, o garoto torcia pelo alastramento da disputa. Se o que ele queria — que os outros líderes se interessassem pelo pequeno torneio — acontecesse, então seria um passo mais rápido em busca do controle sobre eles. Mayck entendia que ele estava apressando demais as coisas, mas ele não tinha tempo para esperar. Em cerca de uma semana ele voltaria para o Japão, para a cerimônia de casamento do seu pai, algo que ele não queria perder por nada. 

    Também havia seus assuntos com Yang…

    Por que eu perco tanto meu tempo com aquele cara?

    Mayck percebeu que ele não estava totalmente preocupado com o THF. Parte do motivo que ele estava atrás de Yang era só rancor pessoal. 

    E eu achando que não ligava para isso… Bom, não importa. Uma hora ou outra eu lido com essa parte. Por enquanto, eu vou me concentrar nesse jogo. 

    Enquanto colocava seus pensamentos em ordem, Mayck se espreguiçou, tentando preparar seu corpo para uma longa tarefa. 

    “Por que não começamos a organizar as coisas? Eu quero deixar tudo pronto para amanhã, hoje ainda, se possível.”

    “Eu vou deixar você lidar com seus peões. Se precisar de mim é só chamar.”

    “Ah, é? Okay, então. Até mais.” Mayck deu as costas e se afastou saltando do prédio e sumindo em seguida. 

    Alexander continuou parado, observando a cidade. Era difícil dizer o que se passava em sua mente. Ele demonstrava estar interessado no que o garoto fazia, mas parte dele não queria ser tratado como uma ferramenta. Era um sentimento contraditório. Mas Alexander não era um tolo que se deixava levar pelas emoções. Apesar de ser daquele jeito, ele conseguia manter sua cabeça fria e pensar racionalmente. 

    É uma pena que eu não consiga ver tão a frente quanto ele. 

    Na realidade, Mayck o assustava. Ele era apenas uma criança, mas era perigosa o suficiente para ninguém querer tê-lo como inimigo. 

    “Talvez eu só esteja ajudando ele por isso.”

    A ideia de estar ao lado de Mayck por medo era algo que parecia muito real. No entanto, ele não iria aceitar isso. Depois de vários minutos se passarem, Alexander se lembrou de algo. 

    “Eita, eu tenho que reportar.”

    Ele pegou um aparelho do bolso interno de seu sobretudo e entrou em contato com alguém. Depois de trocar algumas palavras com tal pessoa, ele guardou o dispositivo e respirou fundo. 

    “Bom, por hoje já deu. Acho que vou descansar um pouco. Parece que, a partir de amanhã, as coisas vão se agitar um pouco.”

    Em seguida, ele se retirou do local. 

    Mayck voltou para casa e se trancou em seu quarto. Jade e Lorena, assim como Takafumi e Tomoko, estavam na cozinha e na sala, mas decidiram não incomodar o garoto. 

    Estando sozinho, Mayck pegou seu celular e enviou uma mensagem para seus primos mais velhos. 

    Após a derrota da família Ferreira, Mizael e Ronaldo, influenciados por sua mãe, decidiram que precisavam se desculpar com o garoto, de alguma forma, pelos problemas causados. Não só eles, como todos os membros da família. A única exceção era Eugênio.

    Como um pedido de desculpas, Mayck propôs que eles o ajudassem com um certo problema e lhes disse que contaria os detalhes depois. 

    Apesar de tudo, o garoto só iria usá-los contra Elias. Após isso, não queria revelar mais coisas a eles e não queria que eles se envolvessem em seus assuntos. Apenas Alexander e Elias eram o suficiente para levar as coisas. 

    Com todos os preparativos feitos, Mayck escreveu em uma folha de papel sobre a sua bandeira de um jeito formal e depois de pôr sua assinatura, ele o guardou consigo. Uma regra do jogo que ele havia proposto era a de escrever um documento a mão sobre a sua bandeira e mantê-la consigo. Assim, o vencedor tomaria o documento e fim de jogo. Elias também faria o mesmo. Mayck acreditava nisso porque ele não parecia um homem que quebraria uma promessa, por mais absurdo que ele fosse. E também, ele parecia ter um pouco de senso de perigo. 

    A princípio, a ideia era fazer Alexander desafiá-lo no lugar de Mayck, mas seria mais eficaz se o garoto o fizesse pessoalmente, já que, assim, estaria mostrando que ele tinha confiança o suficiente para não ser subestimado. Com isso, Elias deveria ficar um pouco cauteloso com ele. 

    “Certo. Tudo pronto”, Mayck falou olhando para o texto de cinco linhas e o dobrou. “Acho que está tudo pronto.” Ele se deitou na cama relaxadamente. 

    Se os outros líderes se juntassem a esse jogo seria bem mais rápido… mas isso é querer demais. Como será que eu vou lidar com eles? Invento algum jogo também? 

    Mayck imaginou que poderia desafiá-los assim como fez com Elias. Entretanto, isso só foi possível dada a personalidade competitiva do líder da região leste. Era difícil saber se os outros topariam, uma vez que Mayck não sabia nada sobre eles e esperava que Elias o contasse depois do final do jogo. 

    Não era hora de dormir, mas Mayck sentiu seu corpo pesado e seus olhos lutavam por um descanso. Não podendo mais resistir ao cansaço, o garoto fechou seus olhos de uma só vez e adormeceu. 

    Com isso, ele teve um sonho e nesse sonho Alana estava presente, mas não do jeito que ele a via. Ele olhou para seus pés e um vestido branco se estendia até eles. Estava no corpo de sua irmã. Era como se ele tivesse se tornado ela. Além disso, ele não tinha o controle do corpo, tudo o que ele podia fazer era observar o desenrolar das coisas. Ele estava com seu pai, Takashi, e o ambiente em que estavam lembrava um hospital. Havia pessoas andando de um lado para o outro, algumas chorando e outras em silêncio. 

    O que está havendo aqui? Mayck se perguntava, sem conseguir abrir a boca. Seus olhos se voltaram para o seu pai e ele sorriu de volta. 

    Ah, esse sentimento… eu conheço ele…

    Quando via as pessoas desesperadas ao seu redor, mais aquela sensação ruim apertava seu coração. Uma porta foi aberta e um homem alto, usando uma roupa de enfermeiro chamou por Takashi e lhe disse que podia entrar. 

    Takashi se levantou e Mayck, no corpo de Alana, o seguiu. Eles entraram em um quarto, onde um aparelho apitava o tempo todo. Havia alguém deitado em uma cama, atrás de uma cortina branca. A cortina foi puxada e Mayck sentiu um arrepio percorrer seu corpo quando viu quem estava ali. 

    O garoto abriu seus olhos rapidamente e deu de cara com o teto da casa de seus avós. 

    Um sonho… né?

    Ele continuou deitado e virou a cabeça para a escrivaninha ao lado da cama. Estendeu sua mão e pegou o celular que repousava em cima dela. Quando o ligou, Mayck percebeu que havia dormido por quase duas horas e a luz da janela mostrava que o sol já estava quase se pondo. 

    Coisa estranha. O que foi aquilo?

    Apesar de acreditar que era apenas um sonho como todos os outros, ele não conseguia deixar de pensar sobre aquilo. Então ele se lembrou de como odiava dormir durante a tarde. Além do sentimento estranho de ter perdido a noção do tempo, ele ainda sofria com sonhos aleatórios que o faziam perder o sono.

    O garoto saiu de seu quarto e desceu até a cozinha para beber água, mas antes passou no banheiro. Quando atravessou a sala, viu Jade e Lorena sentadas no sofá vendo um programa de TV.

    Da cozinha, saia um ótimo aroma de comida pronta, já que era hora do jantar. No entanto, Mayck não estava com apetite e acabou recusando o convite de Tomoko para o jantar. Ele não pode deixar de se sentir mal com aquilo. 

    Ele voltou para o quarto e deitou novamente. Depois de vários minutos refletindo e criando teorias, que poderiam ou não levá-lo a algum lugar, ele adormeceu. 

    A manhã chegou e passou em um estalo. Quando o relógio chegou às 21:30, Mayck estava em cima de um prédio e perto dele estava Elias e mais duas pessoas. 

    A situação estava meio complicada. Era o que Mayck queria, mas não era o que ele esperava. Aquelas duas pessoas se autodenominavam representantes dos líderes da região sul e oeste. 

    Quando se encontraram, eles afirmaram ser espectadores do jogo enviados por seus respectivos líderes. Elias não recusou, ele os recebeu de braços abertos, pois achou que era a hora perfeita para mostrar aos outros líderes o seu poder.

    Mayck pensava o mesmo, no entanto. Ter aquelas duas pessoas ali para servirem de mensageiros, mostrava que os ventos estavam a favor dele, já que ele não tinha dúvidas de sua vitória e também poderia por os outros líderes em alerta sobre sua aproximação. 

    “Não tem nenhum problema em assistí-los, correto?”

    “Eu não vejo nenhum problema. Desde que não interfiram ou tentem alguma brincadeira, não tenho nenhuma objeção. E quanto a você?”

    “Por mim, tudo bem.” Mayck respondeu Elias. 

    “Ótimo. Sendo assim, vocês ficarão em uma sala especial assistindo ao jogo até o final. Colocarei vigias com vocês.”

    Elias estava afirmando, subjetivamente, que estava pronto para matá-los caso eles fizessem algo que pudesse atrapalhar o seu governo. 

    Após mais alguns minutos de conversa, Mayck e Elias revisaram as regras novamente e concordaram em grampear os homens de Elias para que todos os que não fossem participar diretamente pudessem ouvir o que acontecia com cada equipe. 

    Elias avisou sobre o local onde havia guardado o documento e o garoto fez o mesmo. O objetivo do jogo era simples, derrotar o inimigo e tomar sua bandeira ou se infiltrar no local que servia como base e roubar a bandeira. Essas eram as únicas formas de se vencer o jogo. Um limite de tempo foi estabelecido. O jogo aconteceria até às cinco horas da manhã, que era o horário que os civis começavam a acordar. Se o relógio atingisse esse horário e não houvesse um vencedor, o jogo seria anulado. Havia mais formas de anular o jogo do que vencer, então se um dos lados se visse encurralado poderia usar uma dessas formas e empatar o jogo. 

    “Estamos entendidos?” Elias olhou para os visitantes com um sorriso ameaçador e os dois responderam sem demonstrar que estavam intimidados. 

    “Não se preocupe. Não tenho ordens para fazer algo além de agora como espectador”, Leon falou por si mesmo, já que não sabia nada sobre seu colega. 

    “Eu posso dizer a mesma coisa”, William afirmou. 

    “Se já acabaram”, Mayck os tirou do clima hostil e os alertou. “Faltam apenas dez minutos para o jogo começar.”

    “Opa, me desculpe”, Elias falou em tom sarcástico. “Bom, eu estarei te esperando na minha sala especial. Isso é, se você chegar lá.”

    Mayck não retrucou, apenas deu as costas e saiu de lá, indo para sua posição. Ele escolheu como base um lugar bem longe da casa de seus avós. Ele não queria arriscar envolvê-los, então procurou um bom ponto estratégico: a prefeitura. Além de ser em um dos pontos mais altos da cidade, ela também era um lugar onde os funcionários chegavam cedo, então os homens de Elias não poderiam fazer um ataque grande quando podiam envolver civis. Os dois possíveis postos foram recomendados por Alexander. Sua primeira recomendação era um hospital, mas seria muito antiético usar um local desses para um jogo violento. 

    Jogo violento porque Mayck sabia que Elias e seus subordinados iriam seguir as regras de forma rigorosa. Eles iriam seguir o critério de não matar ninguém e não envolver civis. Fora isso, eles usariam o que estivesse ao seu alcance. Parte desse jogo foi decidido com base nesses critérios. Mayck não hesitaria em usar essas regras ao seu favor assim como seus oponentes. 

    Os minutos iam se passando. Mizael e Ronaldo estavam posicionados na prefeitura, esperando por Mayck, que chegou rapidamente. Alexander foi colocado junto com Miguel em um local mais distante da prefeitura, para que pudessem avisar o garoto da aproximação inimiga. Um detalhe que não podia ser deixado de lado, era que Mayck tinha certeza que Elias enviaria um grande número de homens. Por outro lado, o Falcão não tinha ideia sobre o número de portadores ao lado do garoto. Isso fazia parte dos cálculos dele para manter Elias cauteloso até o final. 

    O alarme soou. Eram 22h. O silêncio tomou conta do salão onde Mayck estava. Ele colocou um pequeno fone acoplado com um microfone em seu ouvido e o ativou para que tivesse contato com Alexander e seus dois primos. 

    |×××|

    Como ainda era um horário em que havia pessoas circulando, os dois líderes das equipes, Mayck e Elias, poderiam discutir suas estratégias e se preparar para qualquer situação. Os dois lados sabiam que o jogo começaria de verdade quando a maioria dos civis estivessem em sua casa. Por outro lado, era um ótimo momento para sair e buscar informações dos times inimigos. 

    Nenhum dos lados poderia perder esta oportunidade. Sabendo disso, Mayck colocou Alexander em um ponto que poderia vigiar as duas rotas para a prefeitura. Havia pessoas lá, mas elas só sairiam. Qualquer um que entrasse seria tratado como suspeito. 

    “Será que eles vão vir mesmo?” Alexander perguntava regularmente a Miguel, enquanto girava sua cabeça olhando por um binóculo. 

    “Como é que eu vou saber?!” O homem já estava enfurecido. Aquela já era a quinta vez que Alexander fazia aquela pergunta. Mas aquela era só parte de sua raiva. Apenas por ser obrigado a participar daquele jogo ridículo, como ele achava, já era um grande fator para fazer nascer seu ódio contra Mayck. No fundo de seu coração, ele jurava que iria dar uma surra humilhante no garoto. 

    As pessoas e os veículos que transitavam tiravam a atenção de Alexander, já que ele pensava que cada pessoa que passava por lá poderia ser um dos subordinados de Elias. Ele repetia no microfone o tempo todo, perguntando se Mayck tinha certeza de que eles viriam. 

    “Se acalma.” O garoto dizia a cada vez que Alexander questionava. “Se está com tanto medo assim, eu vou mandar Ronaldo ou Mizael darem uma checada.”

    Assim dito, os dois irmãos saíram pelas ruas em busca de pessoas suspeitas. Mayck não queria ser atacado de surpresa, então ordenou que os dois voltassem depois de 30 minutos. Passando-se esse tempo, eles retornaram sem novidades. Elias não havia feito nenhum movimento e nem dava sinais. Ronaldo e Mizael foram até poucos metros do prédio em que Elias estava posicionado e não viram ninguém. 

    Estranho… o que ele está planejando? Será que está esperando que eu faça o meu primeiro movimento? Mayck suspeitava que ele não fosse se mover ao menos que o garoto desse o primeiro passo. 

    Se é assim, então tudo bem. Nada contra eu ter o primeiro turno. 

    Depois disso, Mayck não fez mais nada. Ele iria esperar pacientemente durante o tempo em que as pessoas se acolhiam em suas casas e os portadores tivessem liberdade para agir. Enquanto isso, o garoto formava diferentes planos e discutia isso com seus aliados. Para ter um plano eficaz, Mayck não se importava em ouvir as opiniões dos outros envolvidos. Saber o que cada um tinha em mente era importante para que ele pudesse considerar situações que não passaram por sua cabeça. Um ataque direto, por exemplo. Se Elias decidisse efetuar um ataque frontal com todas as suas forças, como medida de contra ataque, Mayck faria armadilhas de grande escala para eles. 

    Outra possibilidade era a de infiltração. Elias poderia mandar uma ou mais pessoas para se infiltrar na prefeitura e tentar roubar o documento, uma vez que essa era uma das formas de vencer. No entanto, os dois sabiam que essa era uma forma de vitória complexa, já que os dois com certeza colocariam guardas para os documentos ou os protegeria, eles mesmos. A regra proibia de manter os papéis junto a eles, mas não proibia de tê-los por perto. 

    As horas se passaram e o jogo se iniciou de verdade. Elias, como Mayck pensou, mandou um grupo de 20 pessoas para um ataque frontal. Alexander reportou assim que os viu. Mas essa era apenas uma distração. Pelo outro lado da cidade, uma dupla de especialistas em espionagem de Elias se infiltraram na prefeitura em busca do documento. 

    Esse foi o passo inicial dos dois lados. Elias decidiu acabar com o jogo rapidamente e, quando Alexander e Miguel tentaram voltar para dar apoio à Mayck e os dois irmãos, uma nova unidade de mais de 30 pessoas se aproximou. Parte dessas forças invadiu a prefeitura e encurralaram os três que estavam lá dentro. Mayck não tinha escolha a não ser se render. A regra de não bagunçar a cidade ou envolver civis se voltou contra ele. 

    Elias usou a regra a favor dele? Droga. Eu devia ter pensado nisso. 

    “O que vamos fazer, Mayck?”

    “Já era pra gente, né não?”

    Ronaldo e Mizael sacudiam a mente do garoto para fazê-lo dizer o que fazer, mas Mayck não respondia às suas perguntas. Ele apenas ficou calado, observando aquela multidão que parecia ter ido reclamar com o prefeito. Após uma longa pausa, Mayck respirou fundo e cedeu à pressão que os homens de Elias faziam para que ele desistisse. 

    Depois de empurrá-los várias vezes é assim que acaba? Que decepcionante. 

    Do outro lado da linha, Alexander também soltou suas reclamações e pressionou Mayck, na esperança de ele ter uma forma de virar o jogo. Entretanto, Mayck lhe respondeu que já havia acabado. 

    E foi assim que, apenas três horas desde o início do jogo, ele acabou com um desenvolvimento que ninguém esperava.

    “Senhor…!” Ofegante, um homem chegou até Elias, que estava olhando pela janela de seu escritório.

    “O que foi?”

    “O documento… o documento sumiu!”

    Nota