Índice de Capítulo

    A manhã começou com uma ligação de Nakata.

    Segundo ele, Haruo acordou desprovido de muitas lembranças, sem capacidade de raciocinar e dizendo palavras aleatórias. Vez ou outra ele surtava, olhando para o nada, dizendo coisas como “me deixe morrer” e “acabe logo com isso”, enquanto gritava histericamente.

    Era um fato que ele estava fora de si, então não seria possível levá-lo a julgamento naquelas condições absurdas. O que era uma notícia bem infeliz para quem sentia raiva dele. Por outro lado, ele seria internado em um hospital psiquiátrico em Saitama. 

    “Bom, quem diagnosticou ele disse que suas condições são complexas. Não era fácil dizer se ele se recuperaria tão cedo.”

    “Hm… entendi.”

    “De qualquer forma, não há nada a ser feito por agora, então não se preocupe com idas à delegacia ou coisas do tipo.”

    “Está bem. Obrigado, Nakata-san.”

    Mayck agradeceu ao policial enquanto colocava seu café em um copo de vidro e se sentava. Um pouco de leite integral para completar e um pouco de açúcar — nem muito doce nem muito amargo. 

    O vapor subia até seu nariz, levando o odor calmante do café. 

    “E olha, tome mais cuidado daqui para frente. Eu sei como você é, mas lembre-se de que há pessoas que precisam de você. Evite conflitos o máximo que der. Essas coisas são perigosas”, Nakata avisou. 

    “Hm… eu não prometo nada, mas obrigado. Até logo, Nakata-san.”

    A chamada foi logo encerrada e Mayck pôs o smartphone ao lado, na mesa.

    Um gole de café. A bebida aqueceu suas garganta e depois seu estômago, dando uma sensação revigorante. 

    Era sábado, cerca de oito horas da manhã, então ele não tinha muitas preocupações como ir à escola ou alguma obrigação da semana. 

    Inclinou sua cabeça levemente depois de ouvir um pequeno barulho. Era Suzune. 

    “Ah, Mayck-kun. Bom dia”, disse ela, sorrindo, descendo as escadas. “Você acordou cedo hoje.”

    “Bom dia. Eu acabei dormindo cedo ontem, então…”

    “Entendi, entendi.” Com um aceno, ela se sentou na cadeira à frente dele e serviu-se com o café. Uma expressão satisfeita surgiu em seu rosto. “Uau. Mayck-kun, o café que você prepara é realmente uma delícia.”

    “Obrigado por isso, mas eu não acho que seja algo tão especial. O que me surpreende é você gostar de café amargo…”

    “Bom, eu não ligo muito, na verdade. Sentir o gosto do café puro é uma ótima sensação.”

    “É mesmo?…”

    O garoto sorriu discretamente com o cenho franzido, enquanto Suzune aproveitava os ovos fritos preparados com antecedência. 

    A refeição era suficiente para os dois, afinal Haruna tinha ido para atividades do clube na escola e Takashi estava no trabalho. Não havia muito o que fazer. 

    Vendo-a tão confortavelmente, ele não pôde simplesmente contar sobre a situação de Haruo. Até porque ela parecia muito mais tranquila em relação ao ocorrido. 

    É melhor deixar as coisas como estão.

    “A propósito, Mayck-kun. Você sabe como Tsukiko-san está? Desde que a visitei pela última vez, não tive notícias.”

    “Não, realmente. Eu não a vejo já faz um tempo.”

    “Entendo. Sinto pena de Tsukiko-san. Masato-san era um homem tão gentil. Ela com certeza está arrasada com tudo isso. Até mesmo Hana-chan… uma garota tão nova…”

    Suzune arrastava suas palavras, em seu rosto havia um olhar de inconformidade e empatia. Ela sentia muito bem a dor de Tsukiko, como esposa, e também de Hana, como mãe. 

    “Meu pai falou alguma coisa sobre isso?”

    “Ele comentou algo outro dia. Ao que parece, todo o departamento se dividiu para fazer as buscas, mas parece que as coisas não estão sendo fáceis. É difícil encontrar pistas.”

    “Espera, todo o departamento? E quanto aos outros casos? Masato não é o único, eu tenho certeza.” Mayck olhou confuso. 

    Com tantos casos envolvendo desaparecimentos nos últimos anos, como seria possível ficar em apenas um? Era compreensível que fosse difícil com um número pequeno de investigadores, mas com o departamento inteiro? 

    Parece que a Black Room fez um ótimo trabalho no último incidente. 

    Uma pista solta e a polícia chegaria ao cerne da questão. 

    “Eu não entendi muito bem. Acho que Takashi-kun falou alguma coisa sobre o governo mandar encerrar casos ou algo assim. Ah! Mas não diga que eu te disse isso. É informação secreta, aparentemente.”

    E aparentemente Takashi soltou tudo isso para sua esposa como um desabafo. Eles estão muito mais próximos do que parece, Mayck pensou. 

    “Entendi. Não vou falar pra ninguém.”

    “Sei que posso confiar em você.” Ela acenou com um sorriso e voltou ao seu café. 

    Depois do café, Mayck lavou os pratos e talheres usados. Não seria legal de sua parte deixar isso para sua madrasta fazer sozinha, então ajudou em alguns afazeres domésticos — que tinham sido sua principal tarefa até algum tempo atrás. 

    Então o que Hana me disse realmente está acontecendo… o que será que está acontecendo com o governo?

    O garoto imaginou que talvez tivesse algo a ver com a retirada repentina da Strike Down. Sendo uma grande influência no país, não seria estranho eles abafarem casos envolvendo portadores para manter o sigilo que a organização mantinha antes. 

    Acho que Zero saiba sobre isso. Vou perguntar quando tiver a chance.

    De volta ao seu quarto, a discussão com Airi e os outros passou por sua mente como um filme. 

    Mayck não podia negar que foi um pouco orgulhoso quando Asahi o confrontou, mas tinha que admitir que ele tinha um pouco de razão em suas palavras. 

    Hana precisava de ajuda e ele ainda não tinha movido um dedo para fazê-lo, além de ser coisa dele como as coisas acabaram naquele dia. 

    “Por conta da situação, eu tenho que ser cauteloso. Não quero que as coisas piorem por algum erro.”

    Ele ponderou por um momento. O que poderia fazer? Antes de tudo, precisava ver como a garota estava, depois agiria como base nisso, visando o melhor caminho. 

    Uma ideia lhe ocorreu, então ele se levantou e correu para a loja de conveniência mais próxima. Comprou alguns ingredientes e minutos depois tocou a campainha da casa de Hana. 

    Ela demorou, fazendo-o pensar que não estava em casa, mas logo apareceu na porta com um olhar surpreso. 

    “Olá.” Mayck acenou com um sorriso. 

    “Mayck? O que está fazendo aqui?”

    “Hm? Preciso de motivo para te visitar?”

    “Hã?! Não… é que…er…eu não esperava.”

    A garota tropeçou em suas palavras, seu rosto avermelhado. Abriu o portão da altura dos ombros do garoto e o convidou para dentro. A sacola em suas mãos a intrigou um pouco. 

    “Se não se importar, podemos preparar isso juntos?” perguntou enquanto trocava seus sapatos pelo calçado de visitas. 

    “Podemos sim… mas o que é?”

    “Estrogonofe de frango. Faz um tempo que não faço isso. Espero que você ainda não tenha almoçado.”

    “Sério? Mal posso esperar. Eu vou preparar o que vamos usar.”

    Ambos foram até a cozinha. Mayck descansou a sacola na mesa e retirou os ingredientes. 

    Feliz, Hana foi até os armários. Retirou panelas, talheres e o restante dos ingredientes que Mayck não havia levado, enquanto cantarolava uma música animada aleatória. 

    Vendo ela agir dessa forma, era quase impossível dizer o que estava havendo por baixo dos panos. 

    A casa estava limpa, o que não era incomum, mas estava muito silenciosa. Havia muitas coisas faltando ali. A estranheza era quase palpável. 

    Para quebrar o silêncio incômodo que estava sentindo, Mayck decidiu perguntar. 

    “Tsukiko-san não está?”

    A música foi interrompida. Hana respondeu sem olhar para ele:

    “Ela… está no quarto. Minha mãe tem estado muito deprimida desde que meu pai desapareceu.”

    “Entendi. Espero que ela fique bem logo.”

    O choque foi grande demais para ela, então se isolou quase completamente. Ela também tinha se afastado do trabalho temporariamente. 

    “…Sim.”

    O silêncio voltou e perdurou por mais alguns segundos, enquanto eles dividiam as tarefas para terminarem o mais rápido possível. Afinal, era quase hora do almoço. 

    Hana foi até a pia e colocou água em um recipiente e despejou água em seguida. Colocou o arroz e levou até a panela elétrica. Após ajustar o temporizador, ela suspirou. 

    “Mayck, você… o que acha disso tudo?”

    “O que quer dizer?”

    “Você acha que meu pai realmente quis fazer tudo isso?”

    Mayck parou sua tarefa de cortar os ingredientes momentâneamente. 

    “Eu não sei… é difícil dizer. Masato-san me confrontou com um olhar decidido, mas até eu conseguiria fingir isso numa situação daquelas.”

    “Acha que ele pode estar mentindo sobre isso tudo?”

    “Sinceramente, eu duvido. Pode ser que parte tenha sido mentira, mas acho que seus motivos são bem reais. Eu não te falei, mas conversei com Reine-san, e ela confirmou que seu pai tinha um irmão. Há muito tempo.”

    “Um irmão… eu nunca imaginei isso. Meu pai nunca foi de falar do passado. Parando pra pensar, talvez eu nem o conhecesse de verdade.”

    Hana baixou seu olhar. Todas as lembranças que tinham de seu pai eram alegres. Ele nunca foi um pai rígido e esteve sempre disposto a confortar sua filha quando algo dava errado. Masato tinha sido seu maior exemplo de confiança e justiça. No entanto, ela se viu desiludida naquele dia.

    “É irônico pensar que a pessoa que foi meu modelo me decepcionou de uma forma tão terrível. Reine-san te contou sobre o que aconteceu com ele?”

    “Uh-uh. Ela não me deu muitos detalhes, mas, ao que parece, ele desapareceu e nunca foi encontrado.”

    “Isso parece ser doloroso…”

    “Sim. Eu me pergunto se isso foi causado por algum portador ou algo do tipo. Mas é possível que não tenha nada a ver. A vida não para, afinal de contas.”

    Sendo algo relacionado ao mundo sombrio ou não, o mundo não iria parar para dar lugar a um único palco. Tudo acontecia de forma simultânea. Quando alguém desaparecia devido a uma luta de poderes, outra era sequestrada por bandidos que estavam atrás de dinheiro.

    “O mundo é mesmo um lugar cruel…”

    “O que você pretende fazer? Vai procurar por ele?”

    Mayck voltou a cortar o peito de frango. 

    “Eu até quero, mas… não sei o que fazer exatamente. Nem sei por onde começar. Tem uma chance— não. Já que ele está com a Ascension, vai aparecer uma hora ou outra e pensar nisso me assusta.”

    “Eu entendo você. Não é fácil. Mas lembre-se que você não é a única que pensa assim. Tem muitas outras pessoas que estão hesitantes com isso. É por esse e outros motivos que nós precisamos fazer algo, antes que tome proporções maiores e não dê para voltar atrás.”

    Eles não sabiam o que viria a seguir, porém, tinham a sensação de que algo estava chegando, e quando chegasse, muitas coisas seriam perdidas. Não era para se apressarem nem nada do tipo, mas também não era para ficarem parados. 

    “Você tem razão. Conto com você para me ajudar nisso.”

    “Claro. Pode contar comigo. Aliás, eu fiquei sabendo que você está cada vez menos presente na organização.”

    Mayck pôde ouvir Hana fazer um som como se tivesse tocado na ferida ao ouvir o tópico repentino. 

    “Er… bom… deixa eu adivinhar. Airi e os outros foram até você?”

    “Uhum.”

    “Imaginei… não é nada demais, eu só não tenho me sentido à vontade. Eu sinto que preciso estar perto da minha mãe nesse momento difícil.”

    Ela estava menos presente até mesmo no clube. 

    “Olha, eu entendo seus sentimentos, mas tem algo que você precisa fazer, não se esqueça.”

    Hana fez uma expressão amarga, abaixou sua cabeça com um sentimento de repreensão e respondeu com uma voz baixa:

    “Eu vou tomar cuidado.”

    “Ótimo.”

    Eles voltaram às suas tarefas. Não era uma receita muito demorada, então terminaram logo. Minutos depois o almoço estava pronto e o cheiro delicioso pairava pela casa. 

    “Obrigado pela comida.” 

    Os dois se sentaram e iniciaram a refeição. Hana começou a comer com um sorriso, relembrando aquele sabor único que não sentia há tempos.

    Seu olhar caiu sobre Mayck, que almoçava silenciosamente na cadeira oposta à dela. Seu semblante ficou repleto de admiração, misturado com tristeza. 

    Eu me pergunto como você aprendeu a ser tão forte…

    Hana conhecia a maior parte da vida do garoto. Mas, raramente, o via mostrar fraqueza. Na realidade, já tinha visto alguma vez? Olhando para ele, só conseguia ver uma imagem de calmaria, frieza e confiança inabalável. Ele era um modelo de ser humano?

    “Você é incrível”, ela sussurrou. Quando percebeu, seu rosto ficou vermelho. 

    “Hum? O que foi?”

    “Nã-não foi nada! Vamos, coma antes que esfrie.” Ela cortou o assunto desesperadamente e nervosamente voltou a comer, elogiando o prato. 

    Mayck franziu o cenho, confuso, mas deixou de lado. 

    ****

    A noite caiu. Mayck, que acabara de sair da casa de Hana, caminhava lentamente pela rua com uma expressão cansada, seus passos mais lentos que o normal e um olhar distante. 

    Ele não imaginava que sua amiga de infância fosse ser tão egoísta. Ela insistiu para o garoto fazer-lhe companhia por um tempo, mas isso acabou durando o resto da tarde inteira. 

    “Bom… eu acho que devia isso a ela.”

    Eles tinham estado muito distantes naqueles últimos dias, por isso aquele senso de obrigação quando ela lhe pediu com olhos de cachorrinho pidão. Ela não costumava fazer coisas assim, então ele foi pego de surpresa e acabou cedendo. 

    “Ahh! Quero minha cama.”

    Ele só queria chegar em casa logo, sem se envolver com mais nada. Mas nada estava sendo tão fácil. A vida não estava sorrindo para ele e definitivamente não se tornaria doce. 

    Quando o celular vibrou em seu bolso, ele sentiu um mau pressentimento terrível. 

    Glup!

    Hesitante, ele checou o dispositivo. Era só uma mensagem de Haruki, nada mais que isso. Mas era aí que estava o problema. Era só uma mensagem. 

    Poderia não ser nada tão alarmante uma única mensagem, quem pensaria isso? Mas era diferente quando a mensagem em questão pedia socorro e ponto final. 

    “Mas que merda— O que foi isso?”

    Mayck respondeu a mensagem perguntando o que aconteceu e onde ele estava. Mas não houve resposta. 

    Mayck bateu o pé no chão repetidas vezes, sentindo algo estranho em sua alma, enquanto encarava a tela de mensagens com um olhar apertado. 

    “Droga…”

    Mesmo após esperar uma mensagem dizendo que era brincadeira, ela não veio, nem mesmo foi vista. Sua única opção era ir atrás do seu amigo. 

    Claro, sendo Haruki, poderia ser uma pegadinha de mau gosto — ele queria que fosse isso. Porém, estava acontecendo tanta coisa ruim ao seu redor que ele não conseguia descartar a possibilidade. 

    Atordoado, ele decidiu ir até o lugar mais óbvio: a casa de Haruki. 

    Minutos depois, lá estava ele. A casa em estilo tradicional japonês, deixava a rua com um ar requintado. Não era muito grande como as que Mayck conhecia, mas ela parecia ser bem antiga. Era bem difícil pensar que apenas um adolescente morava ali. 

    Mayck sabia onde a casa ficava, mas nunca tinha ido até lá, então acabou admirando o lugar. 

    Balançou sua cabeça para voltar a realidade e caminhou pelo pequeno jardim bem cuidado. 

    Não é possível que Haruki cuide desse lugar sozinho. Ele tem tempo pra isso?

    Como membro da GSN, do clube de futebol e estudante que raramente faltava às aulas apesar das reclamações, Haruki era o tipo de pessoa que mal tinha tempo livre, então como aquele lugar estava em condições tão boas? Alguém devia estar fazendo aquilo. 

    Não era hora de se importar com isso, no entanto. Mayck analisou um pouco. Não havia luzes acesas nem nenhum barulho que revelasse alguém ali, então ele chegou à conclusão que não havia ninguém. 

    Melhor eu ir procurar em outro lugar. 

    Ele tinha a escola em mente. Virou-se e começou a se afastar da área da casa, porém, um som estranho o deteve. 

    O que é isso?

    Atentando seus ouvidos, ele conseguiu escutar algo que estava quase camuflado no barulho dos grilos noturnos. 

    Pô…pô…pô…

    Era um som simples, mas que conseguia ser arrepiante. Calafrios dispararam no corpo de Mayck e ele ficou hipnotizado pelo som. 

    Pô…pô…pô…

    No canto de sua visão, algo surgiu. Algo enorme, branco, com uma presença repugnante. O corpo do garoto estava travado, mas ele viu mãos, e um tecido branco que escondia os pés do que quer que fosse aquilo. 

    Tem alguma coisa aqui…

    Mayck sabia que não poderia ficar parado em tal presença, então teve que tomar uma atitude. Uma corrente elétrica percorreu seu corpo, desfazendo a paralisia. Em seguida, <Moonlight Nightmare> foi ativado, cobrindo toda aquela área como uma nuvem tempestuosa que cobria uma cidade. 

    Ele finalmente se virou para aquilo, mas não havia mais nada ali. 

    Pra onde foi?!

    “Mayck!”

    Uma voz chegou aos seus ouvidos, fazendo-o desativar a ID, já que percebeu quem era. 

    “Haruki? O que está havendo?”

    O garoto estava vindo dos fundos da casa e estava acompanhado de uma garota. Mayck poderia pensar que eles estavam fazendo algo, mas não era o momento para esse tipo de coisa. 

    “Desculpe a mensagem estranha. Eu só não consegui tempo para digitar outra coisa.”

    “Tá bom. Isso não importa. Que merda era aquilo?”

    “Isso era…”

    Haruki levou a mão esquerda para a nuca, sorrindo, tentando encontrar uma forma de explicar aquilo, mas Fuka deu um passo à frente, ficando entre os dois. Ela não era tão alta, então até mesmo para olhar para Mayck tinha que levantar um pouco a cabeça. 

    “Eu acho que posso explicar isso pra você.”

    “Por favor.” Ele deu a palavra.

    “Mas vamos entrar antes. Não é um assunto que eu gostaria de falar aqui. Principalmente com plateia…”

    Ela deixou a última palavra como se fosse para o ar, mas Mayck sabia ao que ela estava se referindo. Ele também sabia que seu disfarce tinha sido jogado no lixo por um mero erro. 

    Os dois garotos assentiram, então os três foram para dentro da casa. 

    Assim que entrou, Mayck não pôde evitar de olhar ao redor. Era a primeira vez que ele visitava uma casa em estilo tradicional, então era justificável. 

    As paredes de madeira escura eram só a entrada para uma sala de 6 tatamis, onde eles se acomodaram. O kotatsu no centro tinha algumas coisas em cima, como cadernos e copos de chá, aparentemente frios. Ao redor da mesa também havia alguns livros didáticos. Talvez eles estivessem estudando antes do acontecido que levou à mensagem. 

    “Vamos, sentem-se. O assunto não é dos mais simples.” 

    Fuka os convidou, como se fosse a anfitriã da reunião. Isso só mostrava que ela ou tinha um relacionamento bem íntimo com Haruki ou sua personalidade não ligava para formalidades. 

    Sem hesitar ou se distrair muito com o ar tradicional da residência e com as portas deslizantes que deixavam a lua lunar passar sem muitos problemas, Mayck se sentou à frente de Haruki. Apenas uma luz incandescente iluminava a sala. 

    Mayck olhou para Fuka depois de analisar os cadernos e livros ali. Tratavam-se de livros de história japonesa, bem como livros sobre o folclore japonês. Os cadernos estavam cheios de anotações relacionados a isso também. 

    “Então. O que foi tudo isso?”

    “Primeiro, vou te pedir que não compartilhe com mais ninguém o que vou dizer aqui e também prometa que vai ouvir atenciosamente o que tenho a dizer”, disse Fuka, um olhar sério, assim como seu tom de voz. 

    Mayck imaginou que o que ouviria seria ruim demais para ele ter que manter segredo. Não tinha muito sentido nisso, mas ele preferiu não criar contendas naquele momento, então apenas acenou positivamente. 

    “Certo. Vamos começar. Você com certeza sabe o que são Youkais, não é?”

    “Uhum.”

    “Pois bem. Há muito tempo, existiam grupos religiosos que acreditavam na existência desses seres, então eles se apossaram de lendas e mitos sobre os tais, levando tudo ao extremo. Rituais de todos os tipos para invocá-los eram comuns.”

    “Você está querendo dizer que tiveram sucesso?”

    “Sim e não. Apenas escute. Sempre que acontecia um desastre, ele era associado aos Youkais e mais rituais para apagar a fúria deles eram realizados. Eu vim de uma linhagem que servia a um desses cultos, então possuo uma espécie de ‘dom’ para sentí-los.”

    “Um ‘dom’, hein. Onde pretende chegar?”

    “Há alguns dias, eu senti uma onda de energia muito estranha pela cidade toda, então decidi investigar. Em suma, cheguei a conclusão que existia um Youkai por aqui.”

    “Foi difícil de acreditar quando ela me falou sobre isso, mas eu achei que seria divertido se fosse verdade, então nós começamos a investigar juntos”, Haruki completou. 

    “Por isso aquela pergunta estranha…”  Mayck se lembrou de quando Haruki abordou o tema. 

    Ele levantou uma sobrancelha. Ainda estava incrédulo, mas a visão de minutos atrás fazia pender para a curiosidade. 

    “Nós só não esperávamos encontrar… Hachishaku-sama.”

    Hachishaku-sama, a mulher de oito pés de altura, que vestia um vestido branco e um chapéu de palha, carregando uma aparência sinistra. 

    “Isso aconteceu há quantos dias?”

    “Esse é o terceiro…”

    Fuka e Haruki se olharam silenciosamente, Mayck respirou fundo, um silêncio sombrio pairou sobre eles. O som dos grilos ficou mais alto. 

    Segundo lendas sobre o Youkai, Hachishaku-sama amaldiçoava quem a visse ou fosse notado por ela, com má sorte ou até mesmo a morte. Podia ser só uma lenda — e já era assustador o suficiente —, mas lidar com a coisa real era muito pior. 

    No mundo que eles estavam, não podiam levar nem mesmo uma simples lenda na brincadeira. 

    “Eu estou protegida contra eles, mas…” Fuka olhou de relance para Haruki. “Ele pode começar a ser afetado se isso se prolongar.”

    Mal-estar, ansiedade e um medo inexplicável seriam apenas alguns problemas que Haruki poderia ter. E até Mayck estava na lista de vítimas do youkai. 

    Já não bastava ter que lidar com os monstros que devoravam humanos sem parar, ainda teriam que se tornar exorcistas? O pensamento fez Mayck suspirar pesadamente, como se estivesse limpando sua consciência de todo peso armazenado. 

    Fuka apontou uma das anotações que fizeram anteriormente, contendo informações sobre as maldições que poderiam recair sobre eles. Mayck a analisou com cuidado. 

    “Uah… Eu não tô muito afim de sentir mal-estar nem ser caçado por ela”, Mayck comentou. “Afinal, como são esses rituais que trouxeram ela?”

    “Eu não sei. Na verdade, eu não acreditava ser possível despertar Youkais, então não tenho certeza. Se vermos registros antigos, talvez possamos descobrir como ela apareceu.”

    “Isso se não morrermos antes…”

    “Não tem como sabermos como isso vai impactar nossas vidas só com o que tem nas lendas.”

    “Além do mais, existem várias lendas. Não temos tempo para testar todos os métodos de exorcismo que há nelas. Pior, nem dá pra saber até onde elas são reais.”

    Os três se viram acorrentados em um problema que não parecia real. No entanto, o frio que eles sentiam na espinha só de falar no youkai não era mentira. 

    “Deve ter uma forma”, Haruki falou. “Nós somos portadores. Temos que dar nosso jeito.”

    “Falar é fácil. Mas até que você tem razão. Precisamos descobrir o que não funciona primeiro. Vocês tentaram atacá-la alguma vez?”

    A pergunta de Mayck foi respondida com o silêncio dos dois, os quais olharam para baixo. Se estavam envergonhados ou não, era difícil dizer. 

    “Nós tentamos… mas não conseguimos.”

    “Ficaram com medo?”

    “Não! Aquela coisa paralisou a gente só de se aproximar. Não tinha como fazer alguma coisa.”

    “Ela aparece e desaparece num piscar de olhos. Não é tão simples assim. Mas não se preocupem. As lendas também dizem que nós iremos até ela, então só precisamos cuidar um do outro.” Fuka os tranquilizou. 

    “Aaah! Que coisa chata…” Haruki debruçou sobre o kotatsu, suspirando intensamente. “Estamos ferrados se não encontrarmos um jeito.”

    “Eu não precisaria me preocupar se alguém não tivesse me arrastado pra isso”, disse Mayck, fuzilando seu amigo com os olhos. 

    “Ah, que isso. Não precisa agradecer.”

    “Bem, mas já que estamos nisso, só nos resta ir em frente. Vou pedir que vocês dois me ajudem a resolver isso, antes que pessoas comuns encontrem aquela coisa ou até mesmo a GSN”, afirmou Fuka. 

    Haruki estreitou os olhos ao olhar para ela e a encarou por alguns segundos. Fuka o olhou de volta, ficando claramente desconfortável, movendo seus pés, seus olhos foram para os livros abertos, seu rosto avermelhado. 

    “O-o que foi?”

    “Ah, não é nada… eu só não estava esperando você dizer que está preocupada com civis comuns.”

    “O que tem de errado nisso?”

    Haruki sorriu, dizendo “nada, realmente” e voltou-se para Mayck, que os olhava com uma expressão tediosa, mas logo suspirou. 

    “O que é esse papo da GSN?”

    “Hm… não sei se deveria contar, mas acontece que a GSN nos colocou em sinal de alerta. Parece que estão esperando alguma coisa.”

    “Tipo?”

    “Hmm… uma fonte massiva de radiação, que emana energia… algo assim?” Ele levantou uma sobrancelha, jogando a questão para sua colega. 

    “Se tem dúvidas, não responda.”

    Mayck inclinou sua cabeça levemente e segurou o queixo com a mão esquerda, os olhos para baixo em uma expressão de dúvida. 

    “Vocês sabem o que pode ser a tal fonte de radiação?”

    “Nem ideia. Mas se eu for chutar, com certeza é um monstro. Eles não deram nenhuma pista afinal. Assim como os Youkais, parece que é algo que consegue escapar dos detectores normais.”

    “Um monstro… parece que temos que estar em alerta.”

    Se fosse algo como o que Mayck presenciou quando estava no Brasil, ou como o que se mostrou a ele algum tempo atrás, então a situação era crítica. Não eram só os Ninkais que causavam problemas. 

    “Enfim”, disse Fuka. “Vamos ficar atentos aos passos de  Hachishaku-sama. Não dá para prever onde ela estará, mas eu vou continuar olhando alguns documentos sobre ela e peço que vocês façam o mesmo. Quanto mais informação melhor.”

    A garota se levantou rapidamente e ajeitou o capuz em sua cabeça. 

    “Você já vai?”

    “Sim. Tenham uma boa noite.”

    “Hm… Okay. Eu te acompanho até a saída.”

    Haruki se levantou, e como disse, acompanhou Fuka até a saída. Minutos depois, ele voltou. 

    “Ué? Não vai embora também?”

    “Eu tô um pouco curioso sobre essa situação toda… você tem mais informações, não tem?”

    Mayck fixou seus olhos em Haruki que, por sua vez, pôs a mão direita na cintura e sorriu, olhando para baixo. 

    “Eu tenho.”

    <—Da·Si—>

    Depois que Mayck saiu, restou apenas o silêncio. Hana trancou a porta e voltou à cozinha. 

    Havia sobrado estrogonofe, então ela guardou em um recipiente para sua mãe e pôs na geladeira. 

    Faz um tempo que eu não comia isso. É realmente muito bom. 

    Aquele sabor era um que a deixava feliz. 

    Ela decidiu tomar um banho. Logo chegaria a hora de dormir, além do mais, as provas escolares estavam chegando e ela queria dar o seu melhor, mesmo estando numa situação tão delicada. 

    Aquela altura, a notícia poderia ter chegado até os ouvidos de suas amigas, então ela não queria preocupá-las ficando deprimida ou algo do tipo. 

    No entanto, ao se virar para ir até seu quarto pegar uma troca de roupas, ela se deparou com Tsukiko na porta. Seu coração disparou e ela quase deu um salto para trás. 

    “Argh— mãe?! Desde quando está aí?”

    Tsukiko tinha um olhar sem brilho, seu rosto normalmente gentil e sorridente agora estava frio e sombrio. Hana mal a reconhecia. Os cabelos bagunçados mostravam que ela já não se importava com sua aparência. 

    Com sua voz baixa e quase sussurrante, ela falou:

    “Desculpe… eu não queria te assustar. Quem estava aí era Mayck-kun?”

    “Ah… Sim, sim. Ele saiu há pouco. Disse para te mandar um oi quando você acordasse.”

    “É mesmo? Mayck-kun é um bom rapaz.” 

    Lentamente, ela caminhou até Hana. Seus olhos se encontraram. Os olhos vermelhos que já não tinham o mesmo brilho cristalino. Tsukiko tocou o topo da cabeça da garota. 

    “Hana, seu pai vai voltar. Então não se preocupe. Está bem?”

    “Uhn… Sim, eu sei.”

    Hana respondeu com seu olhar caído.

    Tsukiko foi até a cozinha pegar um copo de água deixando sua filha para trás, olhando-a com uma expressão tristonha. 

    Na realidade, Hana já tinha aceitado a situação. Sem mentiras, sem ilusões. Ela sabia que mesmo que seu pai voltasse, arrependido, as coisas já não seriam as mesmas. 

    Mesmo que todos o perdoassem, o que ele fez não seria apagado. 

    Eu espero que nós possamos ficar bem, mãe. 

    As palavras de Mayck ressoaram em sua mente. Ela tinha algo a fazer, então não podia ficar parada. 

    Talvez eu saia essa noite. 

    Regras dos Comentários:

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