Índice de Capítulo

    Encontrar aquele homem todo dia em diferentes lugares estava sendo incrivelmente exaustivo. 

    A única coisa boa era que, se ele tentasse algo, Mayck poderia ter uma chance de abrir o jogo com Haruna. 

    Já fazia uma semana desde que ele o viu pela primeira vez. Durante os últimos dias, ele foi avistado nos arredores da escola e da casa, mas estranhamente, ele não tinha feito nenhum movimento alarmante. 

    Haruna não tinha feito um trajeto diferente do que ela fazia da casa para a escola naqueles dias, então era totalmente óbvio que ele a estava stalkeando e Mayck queria saber o motivo. 

    Durante a noite, Suzune estava preparando-se para cozinhar uma receita nova que ela estava testando. Porém, ela percebeu que havia um problema: não tinha os ingredientes necessários e só se deu conta quando já estava prestes a começar.

    “Oh… assim não vai dar… eu também não posso sair agora”, lamentou-se. 

    Ela olhou tristemente para o caderninho de capa rosa com algumas flores desenhadas que usava para anotar as receitas que tinha interesse. Se tinha uma coisa que ela gostava, era tentar recriar pratos novos e seu maior orgulho era que as pessoas apreciassem as refeições preparadas com tanto esforço. 

    Não poder fazer uma delas deixava-a com um gosto amargo na boca. 

    “Mãe? O que houve?”

    Haruna desceu as escadas depois de vestir seu pijama no quarto. Ainda não era a hora de dormir, mas ela já estava pronta para isso. 

    “Er… é que… eu queria fazer uma receita nova, mas não tenho os ingredientes que preciso…” Suzune estava visivelmente abalada. 

    Haruna percebeu isso e sabia muito bem como sua mãe se sentia, mas ela tentou oferecer uma solução simples. Mesmo sabendo que não iria dar certo, ela quis acreditar naquela pequena porcentagem de convencê-la. 

    “Nesse caso, basta procurar uma receita que tenha os ingredientes, não é?”

    “Sim, mas… eu queria fazer essa hoje…!” Os olhos de Suzune encheram-se de lágrimas, como uma criança que queria muito um brinquedo e não podia obtê-lo. 

    “Ugh…!”

    Haruna deu um passo para trás, incapaz de resistir àquela compaixão que parecia atravessar seu peito. 

    “Tá bom. Então eu vou comprar os ingredientes que você precisa.” Ela suspirou. 

    Ouvindo isso, os olhos de Suzune brilharam. Ela juntou as mãos, esperançosa.  

    “Vo-você vai?”

    “Sim. Eu vou.”

    “Mas, mas… está escuro lá fora e você tem que estudar, não é? Suas provas chegarão logo…”

    “Apenas uma noite não tem problema”, ela respondeu e foi em direção às escadas. “Eu vou me trocar, então faça uma lista do que devo comprar.”

    Suzune exclamou um “sim” com alegria e correu para pegar uma caneta e papel. Ela parecia até outra pessoa agindo daquela forma fofa, deixando de lado sua habitual feição de gentileza e maturidade. Talvez tenha sido esse lado que mais agradou Takashi. 

    Haruna se trocou e saiu do quarto. Ao passar pela porta do quarto ao lado, pensou em bater, mas se lembrou de que Mayck não estava em casa, e mesmo que ele estivesse, ela não podia falar com ele. Suas mãos tremiam apenas por pensar em chamá-lo. 

    Não que ela não estivesse tentando. Muito pelo contrário. Todos os dias ela pensava sobre isso e tentava renovar sua coragem para falar com seu irmão. Seus medos, porém, conseguiam ser muito mais fortes. 

    Ela trouxe sua mão de volta e correu para a sala, incapaz de seguir em frente com o que seu coração desejava e temia. 

    ****

    A rua estava envolta em um silêncio, quase palpável. Parecia não haver outros moradores naquela área, mas só porque eles eram cuidadosos com o barulho que faziam. 

    Ainda eram cerca de oito da noite, algumas residências estavam com algumas luzes acesas. 

    Apesar disso, Haruna caminhava rapidamente, visando realizar suas tarefas e retornar para casa o mais rápido possível. 

    Afinal de contas, aquele homem voltou. Ela não conseguia prever o que ele poderia fazer com ela se não tivesse ninguém olhando. Qualquer pessoa que ela encontrava na rua fazia seus batimentos aumentarem. 

    Felizmente ela conseguiu chegar até a loja de conveniência sem problemas. Não estava muito cheia naquele horário, e mesmo para uma sexta-feira era algo estranho de ver. Afinal de contas, as pessoas que chegavam tarde de seus trabalhos costumavam frequentar lojas de conveniência para comprar seus jantares por falta de tempo. 

    Acho que o frio tem parte nisso, Haruna pensou. 

    De fato, a temperatura impactava em diversas áreas, fossem elas estudantis, comerciais entre outras. Por exemplo, uma sorveteria lucraria menos em dias frios, mas o contrário valia para comércios de alimentos quentes. 

    Depois de pegar os itens da lista um a um, Haruna conseguiu os ingredientes restantes para o Yaki Udon que sua mãe queria preparar. Ela, então, se dirigiu para o balcão e efetuou o pagamento. 

    Havia passado pouco mais de meia hora fazendo  compras, mas ela pôde perceber que a rua parecia mais vazia que antes. 

    O frio a fez estremecer. 

    Vai ficar tudo bem. Vir até aqui foi fácil. 

    Depois de ser perseguida diariamente por aquele homem, ela manifestou uma aversão a sair sozinha, especialmente de noite. Por um momento, ela tinha pensado em pedir que Mayck fosse buscar os ingredientes, entretanto, dadas as circunstâncias, ela não pôde fazê-lo. 

    Seus passos mantinham um ritmo acelerado. Seu único foco era chegar em casa. Tinha tudo para ela cumprir esse objetivo sem problemas, mas parecia que não seria assim. 

    No contratempo de seus passos, ela pode perceber que alguém estava vindo atrás dela. O coração acelerado e o suor frio. 

    Não pode ser… ele de novo?!

    Suas mãos começaram a tremer; tudo o que ela não queria, era que aquele homem a seguisse até sua casa, já que, erroneamente, ela pensava que ele não sabia onde ela morava. 

    Eu não posso deixar ele encontrar minha mãe. Nunca!

    Mesmo que isso a tenha levado a desviar do caminho de casa, ela estava determinada a manter o homem longe de sua casa. Mesmo que suas mãos tremessem tanto, a ponto de esquecer o frio, ela tentou se distanciar o máximo possível. 

    A rua estava vazia. O silêncio era quebrado apenas pelos passos frenéticos da garota e de seu perseguidor. 

    Por favor, por favor…

    A garota fechou os olhos sem interromper seu ritmo. Seus punhos cerrados e trêmulos, acompanhando o coração acelerado. 

    Vá embora. 

    Seu desejo ardente de fugir, porém, a fez cometer um grave erro. Ao virar uma esquina, Haruna percebeu que chegou a um beco sem saída. 

    Ah, não. Não, não, não. Burra, burra!

    Encarando o muro de tijolos a sua frente, ela só pôde amaldiçoar a si mesma. 

    Os passos que a seguiam ficaram mais altos, mais perto, logo cessaram. 

    A garota virou-se para trás rapidamente e colou suas costas no muro, sem chance de escapar. 

    “Haruna. Por que está fugindo de mim?”

    O homem estava vestido com uma roupa de moletom suja e fedida, com um capuz que escondia seu rosto quase por completo. A voz rouca, os olhos contendo grandes olheiras. A presença daquela pessoa dava calafrios na garota até a alma. 

    “Por que você não me deixa em paz?!” Esbravejou Haruna, sabendo que não dava para fugir. 

    “Deixar vocês… em paz? Sendo que foram vocês que acabaram com a minha vida? Ha… haha…”

    “Nós?” Um olhar confuso no rosto da garota. “Você se destruiu sozinho. O que nós temos a ver com isso? Apenas fique longe da minha mãe—”

    “Vai só foder! Sua vadiazinha de merda! Eu fiz o suficiente por vocês duas. Vocês só precisavam me obedecer caladas, mas me desafiaram. Mereceram o que tiveram. Por culpa de vocês… se não fosse por essa porra, eu não teria perdido nada!”

    O homem gritou e meteu a mão atrás de si, puxando uma faca de cozinha, a qual reluziu com as luzes que vinham de fora daquele beco escuro. 

    O corpo de Haruna congelou completamente, seus olhos fixos na arma branca, suja por algo vermelho. 

    “Vocês duas vão pagar! Depois de você, eu vou atrás de Suzune e vou fazê-la sofrer dez vezes pior do que eu sofri!”

    Hã…? O que você vai fazer?

    A lâmina brilhou acima da cabeça do homem.

    “E-espera…”

    O homem deslizou a faca para baixo, pronto para desferir um golpe mortal na garota. O sorriso doentio em seu rosto denunciava que ele pretendia fazer muito mais do que esfaqueá-la; seus pensamentos e ideias para o que faria eram somente perturbadores. Dava para ver em seus olhos. 

    A lâmina traçou uma linha na direção de Haruna.

    Ele é meu pai… Não faça isso agora…

    Com os olhos arregalados e um impulso desconhecido, carregado de desespero, ela exclamou:

    “Espera!”

    O homem parou. Mayck também parou o caminho que sua lâmina estava fazendo até o outro lado da garganta dele. Uma gota de sangue escorreu lentamente, tingindo aquele silêncio que surgiu explosivamente, como se o ar fosse retirado subitamente. 

    Os olhos do garoto brilhavam com um azul intenso e apavorante, como reflexo de uma lua de outro mundo.

    A única palavra que saiu de sua boca soou intimidante; para o homem, uma ordem vinda de um ser superior. 

    “Larga.”

    O som da faca caindo quebrou o silêncio. 

    “Eu vou te dar espaço para sair, mas você só tem cinco segundos para desaparecer pra sempre.”

    O homem não ousou abrir a boca. Se Haruna se assustou ao ver a faca, ele ficou em pânico profundo, sentindo uma impotência absoluta. Por alguns segundos, ele esqueceu de respirar; suas pernas tremeram mais que as de Haruna. 

    A lâmina negra com duas pedras brilhantes se afastou lentamente. O homem não hesitou em correr quando viu sua chance, porém, sua visão se apagou repentinamente. 

    Mayck acertou um golpe na nuca dele, fazendo-o perder a consciência. 

    Os olhos de Haruna estavam fixos na cena. Ela não conseguia desviar o olhar. Seu corpo ainda estava trêmulo e a respiração pesada. 

    “Você está bem?”

    Mayck direcionou-se a ela, pegando o celular em seguida. 

    “… Si-sim…” ela olhou para o homem caído no chão. Uma pequena quantidade de sangue escorria por baixo dele. “Ele… não está morto… né?”

    “Hum? Não. Não está. Apenas desmaiou. Isso te deixa aliviada?” Após responder, ele aproximou o celular do ouvido, e começou a falar com alguém. “Eu acabei de encontrar um homem desacordado em um beco. Ele parece machucado.”

    Ele estava contatando a polícia. 

    A assustada Haruna não podia nem pensar na cara de pau que o garoto tinha de denunciar algo que ele mesmo tinha feito. 

    Depois de dizer a localização em que estava, Mayck voltou-se à sua irmã e disse para irem para outro lugar. 

    “A polícia vai chegar daqui a pouco.”

    Ele se virou e começou a caminhar lentamente para fora do beco. 

    A garota ainda não estava conseguindo processar o que aconteceu, mas seguiu após Mayck, ainda olhando para o homem inconsciente no chão, desviando do corpo em seguida, com sacolas nas mãos. 

    ****

    Incapaz de falar qualquer coisa, Haruna apenas caminhou a uma distância considerável de Mayck, enquanto um turbilhão de pensamentos enchiam sua cabeça. 

    Quando percebeu, eles já estavam em um parque próximo da escola. 

    Mayck pôs as sacolas que pegou dela em um banco de praça e se sentou silenciosamente, pondo as mãos nos bolsos de seu moletom. 

    “Por que não se senta também?”

    O convite após alguns segundos de silêncio agitaram a garota, mas ela não hesitou em se sentar na ponta oposta ao garoto. Ela se encolheu nervosamente, com seus cabelos prateados cobrindo seus olhos e as mãos sobre os joelhos. 

    O vento que soprou estava congelante, balançando as folhas de uma árvore próxima. 

    “Às vezes…” Mayck abriu a boca. “Quando eu quero ficar sozinho, venho até aqui. A atmosfera é bem confortável.”

    “…”

    “Aquela pessoa. Quem ele era? Você o conhecia, certo?”

    Então ele quis uma explicação. Haruna ainda estava em choque, mas moveu os lábios lentamente. 

    “… Ele… é o meu pai biológico…”

    “Pai?” Mayck ficou surpreso. “Não esperava por isso… quer dizer…”

    Um pai agir daquele jeito com sua filha? Muita coisa tinha que ter dado errado para chegar em tal ponto. 

    “Eu não considero ele meu pai. Eu odeio admitir isso. Ele é a pior pessoa que eu já conheci em toda a minha vida.”

    Ela estava transmitindo uma aura de irritação, seu tom de voz também estava levemente alterado, enquanto ela se recordava de memórias dolorosas. 

    “Desde que eu me lembro, ele sempre foi um bêbado arrogante. Ele batia e abusava da minha mãe como se ela fosse lixo.”

    Mayck tinha se perguntado como ela estava tão calma quando ele agrediu seu pai biológico. Mas estava tudo explicado. Ele podia sentir o ódio que a garota sentia por aquele homem que se dizia seu pai. 

    Ele, Haruo Yoshida, tinha tudo para ser um homem grande. Mas sua arrogância, ganância e obsessão por si mesmo o afundaram e tudo o que ele conseguia fazer era culpar os outros. 

    “Nós não estávamos aguentando mais fingir para os outros que estava tudo bem. Então, na primeira oportunidade, ela pagou um advogado e fez Haruo assinar o divórcio. Feito isso, nós fugimos para o mais longe que pudemos dele.”

    Uma história que Mayck não esperava. Ele percebeu que precisava aprender mais sobre as pessoas ao seu redor. 

    “Entendi a situação. Sinto muito que vocês tenham passado por tudo isso.”

    “Não… desculpe. Você não precisa se preocupar com isso, de verdade.” Haruna se encolheu um pouco mais e encostou no banco.

    “E o que você vai fazer agora?”

    “Como?”

    “Seu pai, a pessoa que você menos quer ter por perto, está logo adiante. O que você quer fazer?”

    Mayck a encarou firmemente. Se a situação era tão ruim — e era, pelo que ele viu antes —, então ela não podia deixar as coisas como estavam. 

    “Eu quero ele longe da minha mãe, obviamente.”

    “E como vai fazer isso?”

    “Você já deu um jeito nele, não é?”

    “Escuta aqui. O que eu fiz só transformou ele numa vítima. Não seria surpresa se ele aparecesse sem problemas nenhum daqui poucos dias”, ele afirmou e logo falou em voz baixa. “Além do mais…, eu ter me revelado daquele jeito não foi a melhor coisa a ser feita…”

    Haruna se lembrou do que viu mais cedo. Aquele semblante assustador que lhe causava arrepios. Era parecido com aquele que ela viu naquele mundo, embora fosse ligeiramente diferente. 

    “Aliás… o que era aquilo?” Mesmo hesitante, ela decidiu perguntar. 

    “Aquilo era… é uma explicação longa. Não sei se você quer ouvir…”

    “Eu quero.” Ela o olhou com um olhar feroz. 

    Então ela já havia se decidido, Mayck pensou. Se ela ainda estivesse com o medo que estava antes, então seria impossível ter um andamento na conversa sem causar um enorme choque a ela. 

    Parece que você percebeu que esse é o momento perfeito, hein…

    Mayck suspirou e começou a falar. Ele explicou o que ele era e o que eram as IDs de forma rápida, sem entrar muito em detalhes. 

    Durante a explicação, Haruna não pôde evitar deixar uma expressão de desconfiança vazar, mas, à medida que as coisas eram explicadas, tudo ficava um pouco mais claro. 

    Os incidentes mais recentes e, principalmente, o que havia lhe sucedido há algum tempo. 

    “Você foi enviada para uma linha temporal diferente da nossa. Mais precisamente, você trocou de lugar com outra versão de você.”

    “Quê? Mas como isso aconteceu?”

    “Sei lá. Só sei que foi assim. O que importa agora é que você já sabe muitas coisas, não pode fingir ignorância quando problemas surgirem. Por isso eu recomendo que você resolva seus assuntos com seu pai antes.”

    “Espera, espera! Isso é realmente muita coisa. Como espera que eu me levante e diga que entendi?”

    “Todo mundo teve que engolir essa. Você tem que fazer isso também.”

    Mayck se levantou. 

    “Eu não tô te entendendo, idiota.”

    “Está tão difícil assim?”

    “Ah! Já chega. Só me responda uma coisa.” Ela se levantou com uma leve irritação. Típica de sua personalidade. “Se eu fui para uma linha temporal diferente, assim como você disse, então todos que eu vi lá são “pessoas diferentes” das que eu conheço aqui?”

    “Basicamente isso.”

    “… Incluindo você?”

    “Incluindo eu.”

    Haruna ficou em silêncio. Aparentemente, a resposta lhe foi satisfatória, já que ela sorriu com o rosto levemente avermelhado, enquanto dizia “que bom”.

    Não que eu esteja tão distante daquilo que você viu, Haruna. Mayck disse a si mesmo, vendo a garota tão esperançosa. 

    “Certo. O que faremos?”

    “Sobre o quê?”

    “Seu pai.”

    Por um segundo ela esqueceu disso. 

    “É mesmo!”

    “Aff… Talvez eu devesse ter te deixado por mais um tempo.”

    “Não diga algo tão frio, canalha.”

    ****

    Segundo Haruna, Haruo devia ter pego 10 anos de prisão devido aos crimes que cometeu na empresa em que trabalhava. Entretanto, isso ocorreu quando ela tinha seis anos, o que significava que ele ainda devia estar preso. 

    “A pena dele, pelo que eu ouvi e me lembro, foi de dez anos, por estelionato na empresa de consultoria e gestão de patrimônio que ele trabalhava. Eu não sei o que ele faz aqui.”

    “Nesse caso, existem duas possibilidades. Ele pode ter pagado uma fiança ou fugido.”

    Eles estavam a caminho do beco em que se encontraram anteriormente. Não iriam fazer nada demais, apenas verificar o trabalho da polícia por pura curiosidade. 

    “Mas se ele estava falido, como pode ter feito isso?”

    Haruna se lembrava de que Haruo estava com problemas no trabalho e estava perdendo dinheiro cada vez mais. 

    “Alguém pode ter pagado por ele, não é? Ou talvez ele tinha economias e conseguiu ser absolvido.”

    “Talvez ele tenha subornado alguém se esse for o caso.”

    “Vamos pensar pelo outro lado.”

    Haruna tinha um ponto, mas Mayck não queria ir muito a fundo, como pensar que um juiz ou advogados foram subornados. 

    Porém, independente do que ele quisesse, a possibilidade existia. 

    “Tá bom. Mas e se ele fugiu da prisão?”

    “Acho que não… a não ser que ele tenha desistido de tudo para andar em público daquele jeito. Enfim, nós temos muitas respostas em mãos, só precisamos encontrar a certa. Você tem certeza do que quer?”

    O garoto disse seriamente, olhando fixamente os olhos de Haruna, que mordeu os lábios e assentiu. 

    “Sim. Eu quero garantir que ele vá para a cadeia. Não acho que ele foi incriminado por abuso na época, mas dessa vez… a justiça tem que ser feita.”

    Mayck sorriu; aquilo era um sinal claro de crescimento. 

    “Eu vou te ajudar. Não quero mais problemas em casa”, ele afirmou, olhando para frente fixamente e com um olhar sério. 

    Haruna o observou, entendendo ao que ele se referia e assentiu com um aceno de cabeça. 

    Após algum tempo, eles chegaram na área próxima ao beco. Assim que se aproximaram, se esconderam numa esquina. 

    As luzes vermelhas piscantes estavam tomando conta da rua, então eles não puderam avançar. 

    Quatro policiais saíram do beco e entraram no carro. Logo, partiram. 

    “O que aconteceu?” Haruna se esgueirou para ver a viatura partindo. 

    “Eu não sei… mas tem algo errado.”

    Ele havia relatado um corpo ferido. Deveria ter uma ambulância ali, mas não era o caso. 

    Mayck rapidamente correu até o local, apenas para ter uma surpresa desagradável. 

    Não estava lá. O corpo desmaiado de Haruo não estava lá. Nem mesmo uma gota de sangue restou ali. 

    “Pra onde ele foi?”

    Ele podia garantir que havia desligado Haruo naquele local, mas o que tinha acontecido?

    “…”

    Pelo que tinha visto antes, Haruo não parecia um portador. Se fosse, o mundo já saberia seu nome, com certeza. Porém, diante desse pensamento, Mayck se deu conta de que havia três tipos de IDs, mas, embora fosse uma pequena possibilidade, ela era real. 

    E também, havia uma outra possibilidade…

    “E-ei… porque correu assim?”

    Haruna chegou atrás dele, ofegante. Ao olhar para a escuridão do beco, ela quase deu um berro. 

    “Onde ele está—”

    “Shh.”

    O garoto fez sinal para ela ficar em silêncio. 

    “Escuta, nós realmente vimos algo aqui, não foi?”

    “Si-sim… não tem como nós termos ido para o lado errado.”

    Naquele momento e lugar, ambos estavam pasmos, imaginando que talvez tivessem presenciado um fenômeno além da compreensão humana. 

    Era como colocar um objeto em um lugar e não vê-lo mais ali segundos depois. 

    “Aqueles policiais… eles levaram ele?”

    “Hu-uh.” Mayck negou. “Simplesmente não tem como ter sido isso. Só se passou meia hora. A polícia leva um pouco mais de tempo que isso em uma investigação.”

    “Então o que aconteceu?!”

    “Eu não sei, tá legal? Droga. O que eu fiz de errado?”

    Os ombros do garoto caíram enquanto ele exalava o ar de seus pulmões, formando uma fumacinha branca ao sair de sua boca. 

    Ele respirou fundo e recuperou a compostura. 

    “Independente do que aconteceu, ele não pode estar tão longe… além do mais… Espera, será que…?”

    “O que foi?”

    O garoto ponderou por um momento. Se Haruo tinha recobrado a consciência, então ele iria para algum lugar. Fosse fugindo ou para terminar sua vingança, ele definitivamente ainda estava nas redondezas. 

    “… Ele sabe onde nós moramos”, Mayck concluiu. 

    Haruna congelou imediatamente, como se o ar fosse sugado de seus pulmões subitamente. Seus olhos se arregalaram em direção à Mayck. 

    “Minha mãe…” ela murmurou. Tomada por um impulso desconhecido, ela saltou sobre Mayck e agarrou seu colarinho, abrindo a boca em desespero. “Ele está indo atrás da minha mãe?!”

    “Se acalma. Eu não tenho certeza, mas é melhor verificar isso. Vamos indo.” 

    Ao afastar a garota, ele caminhou para fora do beco, com Haruna logo atrás dele. 

    O que quer que tivesse acontecido não estava cheirando bem. Os maus pressentimentos que Mayck sentia pioravam cada vez mais, como se ele tivesse deixado algo escapar. 

    Foi quando se deu conta. Já eram mais de nove horas da noite. A rua estava silenciosa. Não se via mais ninguém do lado de fora. 

    O ambiente estava perfeito para certas criaturas indesejadas. 

    Se eu estiver certo ou ele foi devorado ou então…

    Se fosse a primeira possibilidade, então estava tudo bem. Não tinha como ele se importar menos. Porém, se fosse a segunda, então ele estava com um belo problema nas mãos. 

    Antes que percebesse, Mayck estava correndo e deixando Haruna para trás. 

    Espero que dê tempo. Assim que eles tomam o controle de um corpo, eles seguem as ambições da vítima até o fim. Merda. Pensei que nunca encontraria um deles. 

    A sensação sombria em seu peito fazia seu coração disparar de forma enlouquecida. 

    “…?”

    Quando olhou para trás, ele não viu Haruna, então voltou rapidamente, a pegou no colo e continuou correndo. Dada as suas capacidades físicas, isso não era nenhum problema. 

    Assim que chegou perto da casa, Mayck ativou sua ID, visando identificar quem estivesse por perto. 

    Eu vou saber imediatamente se ele estiver aqui. 

    Como esperado, muitas esferas brilhantes surgiram ao redor, pertencentes a cada um dos vizinhos e também de Suzune. 

    Entretanto, o que ele não esperava aconteceu. 

    Naquela fração de segundos em que ele identificou as almas, ele identificou algo mais. 

    Uma sombra negra com um sorriso cheio de dentes pontiagudos. Ela estava lá e sumiu no momento em que Mayck parou sua corrida. Olhou ao redor. Nada. Parecia ter sido apenas uma ilusão. Não tinha ninguém além de Haruna e ele ali. 

    “O-o que foi?” Com o rosto vermelho, Haruna questionou, ainda estando no colo do garoto. “Me põe no chão…”

    “Não é nada.”

    Mayck fez o que ela pediu e seguiu para averiguar os arredores da casa, sendo acompanhado por aquela estranha sensação de que algo deu muito errado. 

    Haruna não estava entendendo nada, mas correu para dentro. Ela suspirou ao ver que sua mãe estava bem. 

    “Haruna? O que houve? Você está ofegante.”

    “Haha… não é nada não… eu estava correndo um pouco. Aqui. Eu comprei o que você precisa.”

    Suzune a olhou com desconfiança e questionou o motivo da demora. Porém, obviamente, Haruna não iria dizer que encontrou seu pai no caminho. 

    Que desculpa ela daria?

    “Eu pedi que ela fosse comigo até o mercado. Eu queria comprar algumas coisas.” 

    Como um salvador, chegando na melhor hora, Mayck mostrou a sacola que tinha em mãos. 

    A garota ficou abismada, sem saber quando foi que Mayck pegou aquilo. Mas, na realidade, ela só não tinha percebido que ele estava com aquela sacola desde que se encontraram. 

    “É isso mesmo? Bom, tudo bem. Parece que vocês estão se dando bem. Certo, eu vou fazer Yaki Udon agora.” Feliz e com a determinação renovada, Suzune sorriu confiante e foi para a cozinha, colocando seu avental e cantarolando alguma coisa. 

    Haruna riu sem graça. 

    Ela se virou e viu Mayck guardando algo no armário. Eram ingredientes para Yaki Udon. 

    “Ei… o que é isso?”

    “Nada importante”, disse ele, indiferente, e se levantou. “Enfim, evite comentar sobre hoje para alguém. Tenho certeza que algumas coisas ficaram claras para você. Se quiser perguntar algo, fique à vontade.”

    “Hm, tá…”

    Com essas palavras, Mayck subiu para o seu quarto, deixando para trás uma Haruna pensativa.

    Ela estava feliz por nada ter acontecido com Suzune. Fazer as pazes com Mayck também não foi ruim. 

    Porém, apesar disso, o que aconteceu com Haruo a deixou inquieta. Não sabia para onde ele tinha ido e como tinha ido, era torturante. 

    Haruna levou a mão ao peito, como se fosse amenizar aquele sentimento sombrio. 

    Então, tanta coisa estava acontecendo sem que eu soubesse. É irreal demais pensar nisso. 

    Seu corpo estremeceu. 

    Isso é assustador. 

    Era coisa demais para absorver. Mesmo que tivesse aberto os olhos para a realidade, aceitá-la como um todo seria difícil. 

    Um mundo que parecia ter saído de uma ficção. 

    Só foi por ter presenciado aquele lugar caótico e desolado que ela conseguiu compreender parte das palavras de Mayck, embora a ficha ainda não tivesse caído totalmente. 

    <—Da·Si—>

    Uma chuva fraca começou a cair naquela noite, um sentimento sombrio pairando sobre a cidade. 

    Acima de um telhado, um gato preto correu assustado, devido ao som estridente de uma garrafa de vidro sendo quebrada. 

    “Cala a boca…!”

    Haruo gritou, segurando a cabeça com as mãos, quase arrancando os próprios cabelos. 

    “Cala a boca!”

    Ele andava desnorteado, batendo em todas as paredes, tal como um embriagado. Seus olhos esbugalhados tremiam sem parar e a dor de cabeça que ele sentia era como se seu crânio fosse perfurado por algo rotativo, que o pressionava impiedosamente. 

    “Aaargh! Me deixe em paz!”

    Gritando e agonizando de dor, ele lutou com o ar, como se visse algo ali em sua visão cheia de distorções psicodélicas. 

    “Ele é um demônio igual a você…! Por que não me deixam descansar em paz…?! Aaaah!”

    De fato, visto por terceiros, ele parecia apenas um louco berrando sem parar. Mas era diferente para ele, e apenas para ele aquela coisa aparecia. 

    Aquela sombra sorridente que parecia ter todos os ossos do corpo quebrados, enquanto se contorcia em dor, sussurrando inaudíveis palavras do inferno. Seus olhos refletiam o abismo profundo, o sorriso era grotesco, como uma ferida aberta no tecido da realidade.

    Haruo caiu de joelhos. O pavor estava estampado em seu rosto, de forma que ele parecia ter tido um encontro com a morte ou algo ainda pior. 

    “Eu não posso mais… eu não quero morrer… é tudo culpa deles… Some de uma vez!”

    Um silêncio pairou de repente, restando apenas o som rítmico da chuva que aumentava. Junto a ela, um sussurro de dar calafrios ecoou. 

    Acabou pra você.  

    “Eles tem que pagar por tudo isso…”

    Você está sozinho.

    “São eles quem devem morrer e sofrer… eu não fiz nada…”

    O seu lugar não é no inferno. 

    “Vá embora de uma vez!”

    Você está preso comigo pra sempre.  

    A sombra riu, seus olhos arregalados e brancos davam um pavor inexplicável. A cada frase que ele dizia, ele ficava mais perto de Haruo, e o som de ossos quebrados ecoavam em seus ouvidos como a temível melodia da morte. 

    Crack! Crack!

    Aquela coisa se aproximou. Até começar a devorá-lo vivo. Não a sua carne, mas sua alma. 

    Haruo elevou sua voz em um berro desesperado, de dor e puro sofrimento, enquanto a sombra arrancava sua alma do seu corpo e a devorava brutalmente. 

    A chuva ficou mais forte, e acobertando os gritos do homem, que nada podia fazer diante daquela coisa que só poderia ser descrita como um demônio. Se existia coisa pior, era totalmente desconhecido. 

    No leito do fim da sua existência, Haruo só podia pensar no quão culpado era o mundo que o fez sofrer. Quão amarga era a sua vida desde que ele se lembrava. 

    Naquele momento de tortura, não havia nada que ele pudesse fazer além de sofrer. 

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