Índice de Capítulo

    O sol estava começando a se pôr, pintando o céu com tons de laranja e vermelho.

    Transeuntes iam e vinham de todos os lados e o trânsito de veículos estava frenético. 

    Não que isso importasse para o garoto de cabelos pretos, que retornava para casa, sozinho, com sua expressão indiferente de sempre. 

    Ele caminhava calmamente entre as pessoas, sem nenhum plano em mente. 

    Tudo o que ele pensava era em como os dias eram pacíficos. Quando a noite caía, as pessoas eram substituídas por monstros e super humanos que lutavam com afinco, em busca de viver o próximo dia. 

    Será que as noites calmas voltarão algum dia? Quer dizer… 

    Sua expressão ficou tediosa quando ele percebeu algo. 

    Será que já foram calmas antes?

    Seu questionamento era compreensível. Antes da primavera de mudanças da sua vida, ele nunca havia notado tudo o que acontecia na calada da noite. 

    Perceber esse fato esvaziou sua determinação. 

    Mas antes de pensar sobre isso, ele tinha assuntos mais urgentes. 

    Haruo. 

    O corpo sumiu e ele não conseguia pensar em outras possibilidades além de um Ninkai estar envolvido. Na verdade, algo mais poderoso que um Ninkai. Mais poderoso e mais assustador. 

    Eu não queria aceitar isso, mas eu acho que tem alguma coisa a ver. Não tem outra explicação para algo que levou ele sem deixar rastros. O que mais me frustra é que eu não percebi nenhuma presença. Nem mesmo naquela hora. 

    A memória daquela sombra à espreita quando ele estava voltando com Haruna na noite anterior pairou em sua mente. 

    Um suspiro frustrado saiu de sua boca. 

    Se for isso mesmo, então eu não preciso me preocupar em procurá-lo. Ele vai vir até nós… até elas, na verdade. 

    Enquanto perdido em pensamentos, uma voz o chamou enquanto se aproximava.

    “Mayck!”

    Ele parou e se virou para ver quem era. 

    “Oh, Haruna. O que foi?”

    “O que foi…? Eu já estava te chamando há um tempão. Como consegue andar tão rápido?”

    “Bom, quando não se tem muito a fazer, acaba adquirindo a habilidade.”

    “Isso é sério?”

    “Sim.”

    Haruna deu um suspiro de desistência. Ela recuperou o fôlego e deslizou a mão até atrás de sua orelha direita, movendo uma mecha de cabelo para lá. 

    “Então, o que foi?”

    Mayck começou a andar e ela o seguiu. 

    Não era todo dia que Haruna corria atrás dele dessa forma. Na verdade, ele se perguntava se isso já havia ocorrido antes.

    Olhando fixamente para frente, a garota respondeu:

    “Eu queria saber o que vamos fazer com Haruo… Eu não faço ideia do que aconteceu com ele, mas você deve saber, não é? Não quis falar sobre isso ontem, afinal.”

    “Eu até pensei em algo, realmente, mas não tenho certeza sobre isso. O importante agora é nos mantermos atentos. Pode ser que ele volte… e muito pior.”

    Mayck fez um suspense para assustar Haruna, o que acabou sendo bem eficaz. 

    Ela estremeceu levemente, sentindo um calafrio percorrer seu corpo. 

    “… Não fique brincando com isso.”

    O que era para ser uma piada acabou surtindo o efeito errado. Mayck percebeu que falou algo que não devia. 

    “Desculpe. Não foi minha intenção. Mas isso é realmente sério. Se o que eu pensei for o caso, então tenho que estar preparado. Você também.”

    “‘Preparada’”, ela sussurrou para si. “Ei, o que você está imaginando é tão ruim assim?” Ela o olhou de relance com os olhos caídos. Ela não conseguia esconder o nervosismo e a hesitação de seu coração. 

    “Não estou querendo te assustar nem nada, mas é isso mesmo. Como eu já te disse antes, esse lado do mundo é pior do que você imagina. Esperar por tudo não é o suficiente.”

    Haruna apertou a alça de sua bolsa e olhou para o chão. 

    Assim como muita gente, ela conheceu esse lado do mundo de uma forma muito bruta. Não era fácil aceitar tudo como verdade tão facilmente. Sempre restaria um resquício de dúvida e uma parte que não queria aceitar. 

    Além disso, Haruna era só uma garota de 14 anos. Obviamente, existiam pessoas mais novas que ela que caíram em tal armadilha da vida. E eram elas que seriam o futuro do mundo. 

    Um mundo cruel e distorcido. 

    Mayck fechou os olhos brevemente. Levantando sua mão direita, ele afagou a cabeça da garota silenciosa. 

    “Vai ficar tudo bem. Pense bem enquanto há tempo e me diga o que quer fazer. Nós podemos evitar um final ruim.”

    Eu espero, pelo menos.

    Mayck não era mais tão ingênuo a ponto de pensar que poderia tirar um final feliz daquilo tudo.

    Ele iria tentar salvá-lo, se este fosse o desejo de Haruna. Porém, no pior dos casos, ele teria de dar um fim em Haruo e no que estava em sua posse. 

    ****

    Alguns dias depois. 

    Mayck olhou pela janela. Um trovão repentino fez seu coração pular. 

    E eu pensando que estava acostumado com isso.

    Parecia que ter o poder de controlar raios não os tornava amigos. Os trovões ainda o pegavam desprevenido.

    Eram cerca de dez horas da noite de sábado. 

    Mais cedo, Mayck recebeu um e-mail de Isha, que lhe pediu para treinar com ela. 

    “… Mas nessa chuva…”

    Ele não poderia estar mais animado que isso. 

    “Bom, eu não acompanhei ela essa semana, então acho que não posso recusar. Será que é bom eu levar Saki e Merlin juntos?”

    O garoto perguntou a si mesmo. 

    Quando Isha pediu para ser treinada por ele, Mayck teve a boa ou péssima ideia de apresentá-la a Saki. 

    Como era o responsável por fazer a garota conhecer o mundo das IDs, ele tinha que tomar conta dela, então pensou que poderia treinar as duas de uma vez. Até este ponto não foi problema: as duas se deram bem. 

    Só que havia uma pequena incógnita. Como se estivesse esperando o momento certo para interromper, Merlin apareceu de repente quando Mayck disse que iria treinar as duas juntas, e começou a dramatizar a indiferença com que era tratado. 

    No fim… eu disse que iria ensiná-lo também. Espero que isso não traga a raiva de Otohiko. 

    Antes de decidir o que faria a seguir, Mayck tinha que cuidar de uma pequena situação antes. Ele tinha dado bobeira, mas, por sorte, provavelmente, a pessoa que o vigiava de longe ainda não tinha visto ele usando suas habilidades. 

    Eu fiz um bom trabalho ao me conter até aqui. 

    Ele evitava ao máximo sair durante o pico da noite, para não ter que lidar com um Ninkai ou outro portador, então sua identidade seria revelada como uma carta na frente de um espelho. 

    Eu ouvi eles dizendo algo sobre o filho da Olívia, então talvez seja ele quem está me observando. 

    A grande questão era como driblar isso e ir encontrar Isha. 

    Sair de casa naquele horário não era incomum, mas com a chuva lá fora era uma situação diferente. Um movimento em falso e ele seria desmascarado. 

    “Acho que tive uma ideia. Vou mandar uma mensagem para Saki e ir até a casa dela. Se eu fizer ele pensar que só estou indo na casa de uma amiga, então tenho uma chance de escapar dele.”

    Uma ideia boba bolada em cima da hora. As chances de darem errado eram muito maiores, mas não custava tentar. 

    Sinceramente, Mayck gostaria de enfrentar seu perseguidor e afugentá-lo, mas, se fizesse algo assim, estaria colocando muita coisa em risco. Só restava aguentar. 

    Depois de respirar fundo, apagou as luzes e olhou pela fresta da cortina. 

    A chuva leve, o céu nublado e o silêncio da noite, quebrado apenas pelas gotas caindo incessantemente. 

    Dali só dava para ver parte do seu quintal e do quintal do vizinho. 

    O gramado molhado. 

    Mayck não poderia usar suas habilidades para verificar almas por perto. Um portador do nível de seu perseguidor com certeza detectaria isso facilmente. 

    Quanto menos chamativo melhor. 

    Nesse momento, seu smartphone recebeu uma notificação. 

    Era uma mensagem positiva de Saki. Foi respondida tão diretamente que ele conseguia ouvi-la dizendo aquilo com um nervosismo palpável. 

    “Claro. Estarei esperando.”

    Certo. Vamos nessa. 

    Fechou a cortina, pegou um moletom, um tênis e um guarda-chuva. 

    Sem hesitar, ele saiu pela porta da frente e se dirigiu para a casa de Saki. 

    Estava tudo tão calmo. Mas apenas na superfície. Mesmo sem usar suas habilidades de ID, Mayck podia sentir que mais de uma pessoa o perseguia, de tão acostumado que ele estava com isso. 

    Ele teve muita sorte de não ter sido pego em nenhum momento com tantos espiões por perto. Não que ele fosse mais inteligente e mais habilidoso, poderia até ser isso, mas ele também contava muito com a sorte — nunca ia para a mesma direção nem saia no mesmo horário. 

    Só por isso ele conseguiu evitar ser flagrado pelos espiões da Strike Down. 

    Estar convivendo com isso todos os dias faz parecer uma brincadeira. 

    Ele sentia uma exaustão em não poder fazer nada sem ter que ser discreto naquele nível. 

    Minutos depois ele chegou à casa de Saki. Não era muito longe de sua casa, apenas alguns minutos de caminhada, já que ela ficava do outro lado da estação. 

    Ele tocou a campainha e esperou ser atendido, com o guarda-chuva acima de sua cabeça.

    A casa estava localizada numa rua não muito estreita, possuindo um pequeno jardim na frente, molhado pela chuva, que parecia não estar sendo muito bem cuidado. 

    Talvez as donas não estivessem com tempo para regar ou cortar as flores mortas. 

    Sem contar que Saki já havia falado sobre a situação de sua família. Mas o garoto não sabia o quão ruim estava.

    Mayck escutou uns passos fortes vindo de dentro e, segundos depois, a porta foi aberta, revelando uma Saki ofegante. 

    “Se-seja bem-vindo. Desculpe fazê-lo esperar.”

    “Ah, não. Desculpe por eu vir nesse horário…”

    O garoto tentou ser formal, mas não foi capaz de desviar os olhos da blusa levemente dobrada da garota, que revelava um pouco da pele clara do seu abdômen. 

    Uma fragrância doce e desconhecida por ele impregnou suas narinas. 

    “Sem problemas. Eu não estava indo dormir ainda. Haha…” Com um sorriso tímido, ela mentiu. 

    Quando Mayck mandou a mensagem, ela já estava até de pijama, então correu para se trocar e até passou um perfume, mesmo após o banho. 

    Um trovão ocorreu distante, então Saki se lembrou de convidar o garoto para entrar, dizendo para ele não reparar na bagunça. Também disse que ele podia deixar seu guarda-chuva molhado na entrada.

    Mayck não se incomodou, e apesar do que ela falou, a casa estava arrumada, não havia nada fora do lugar. 

    Ela o levou até a sala e saiu para preparar alguma coisa, enquanto Mayck se sentou no sofá e esperou pacientemente. 

    Por ter lhe parecido indelicado, ele decidiu não olhar ao redor, mas se perguntou se a garota estava sozinha. 

    Saki retornou com uma bandeja contendo dois copos. A fumacinha branca que subia deles mostrava que algo quente havia sido preparado. 

    “Er… bem, eu não sabia do que você gostaria, então acabei preparando um chá Sencha… er… espero que não tenha problema.” 

    “Tudo bem. Não precisa se incomodar com isso. Eu estou bem. Muito obrigado.”

    “Que bom.” Ela sorriu satisfeita, serviu a bebida para os dois e sentou-se ao lado dele. 

    Um silêncio tomou conta da sala, enquanto ambos tomavam o chá. Saki estava claramente nervosa. Sua tentativa de esconder isso não era tão eficaz. 

    Ela estava nervosa por receber um amigo em casa. Para piorar, um garoto que ela namorou até o começo daquele ano. 

    Seus dedos rodopiavam entre si e seus pés não paravam quietos. 

    Até que Mayck decidiu abrir a boca. 

    “Sua mãe não está em casa?”

    “Huh? Minha mãe ela… saiu há um tempo. Não deve ter voltado por conta da chuva. Haha…”

    “É mesmo? Bem… acho que tudo bem.”

    Mayck não conseguiu simplesmente dizer a ela que a chuva nem estava forte ao ponto de impedir uma volta para casa, mas deixou de lado. 

    “Então… bem, você precisa de alguma coisa? Quer dizer…”

    “Ah, claro, na verdade, Isha me pediu para ajudá-la hoje. Então eu pensei que seria bom levar você e Merlin juntos. Será que você pode?”

    Enquanto ele falava, Saki se perguntava porque ele tinha que ter ido até a casa dela, se poderia simplesmente mandar uma mensagem. Uma resposta veio logo em seguida. 

    “Eu vim até aqui porque tem alguém me seguindo, então eu não queria chamar a atenção e levar quem quer que seja até a gente. Não parece uma ideia muito tranquila.”

    “Ah. Entendi… então é isso…”

    A garota baixou o olhar, parecendo decepcionada. 

    “Algum problema. Não, não. Nenhum.” Ela pegou o copo e tomou o seu chá em um gole. “Por que não vamos indo? Isha-san deve estar esperando.”

    “Tem razão. Vamos indo, então.”

    Ele bebeu seu chá rapidamente. Saiu recolheu os copos e foi para a cozinha, levando a bandeja também. 

    Eu sou tão idiota. Pensei mesmo que ele tinha vindo aqui só pra me ver. Até me arrumei rápido. 

    A garota tinha aquela pitada de esperança. Mas a memória de tudo o que ela fez para ele inundou sua cabeça, fazendo-a atolar os pés no chão. 

    Ele não tem interesse em mim, apenas na ID que eu tenho. Eu perdi minha chance. 

    Ela suspirou, o olhar melancólico em seu rosto prestes a derramar lágrimas. 

    Não, não. Isso não é hora pra isso. Nós temos algo a fazer. Não posso deixar ele me ver desse jeito. 

    Ela deu dois tapinhas em suas bochechas, se recompondo e se preparando para encarar Mayck novamente. 

    Até que…

    Bam!

    Um som forte e seco ecoou pela casa, fazendo Saki pular. Ela correu para a sala, de onde tinha vindo o som. 

    “Mayck, você está…” Ela se calou, seu corpo paralisado. “… bem…”

    Mayck estava perto da porta, segurando uma mulher inconsciente nos braços. Na realidade, ela não estava inconsciente, estava bêbada a ponto de não conseguir se manter em pé. 

    “Er… ela bateu na porta e quando eu abri… Você a conhece?”

    Sem dizer uma única palavra, Dali caminhou até ele e tomou o lugar de Mayck, abaixo dos braços daquela mulher, cujas roupas estavam totalmente bagunçadas, assim como o cabelo, e o cheiro de álcool insuportável. 

    Ela foi até um dos quartos, onde colocou sua mãe na cama e saiu de lá em seguida, fechando a porta atrás dela. 

    O clima ficou pesado. Não se ouvia mais nenhuma palavra. Apenas o som da chuva, que se intensificou, quebrava o silêncio sombrio. 

    Saki foi até a porta, passando por Mayck silenciosamente. 

    Aquilo, com certeza, era algo que a garota não queria que acontecesse. O desgosto que ela estava sentindo por sua mãe estar ali, naquele estado, era imensurável.

    “Vamos?” Ela perguntou depois de trocar seus calçados. 

    “Hm.” Mayck assentiu, sem conseguir dizer outra coisa e também colocou seus tênis. 

    Os dois saíram com seus guarda-chuvas, mas não trocaram palavras por um tempo.

    Mayck entendia que aquela mulher era a causa disso, ele queria entender o porquê, mas, por algum motivo, achou que o melhor a se fazer era manter a boca fechada, até que a própria Saki decidisse revelar tudo. 

    Se ela iria fazer isso, era outra questão. 

    Eu não vou julgá-la. Numa situação assim, eu também prefiro manter o silêncio. 

    Ele baixou a cabeça brevemente, concordando com a garota. 

    “A propósito”, disse a garota, de repente. “Você disse que estava sendo perseguido, não é?” seu tom de voz era baixo, demonstrando que ela estava ciente de que poderia haver um perseguidor. 

    “É… mas eu acho que ele saiu por enquanto. Pelo menos eu espero. Vamos desviar um pouco os caminhos até eu ter certeza.”

    Com isso dito, os dois seguiram pelos becos silenciosamente, acomodados em seus guarda-chuvas, por conta deles, havia uma certa distância entre ambos. 

    Mayck estava concentrado em inspecionar seus arredores. Se houvesse alguém os seguindo, seria inconveniente quando fossem se encontrar com Isha e Merlin — Mayck mandou uma mensagem para ele depois de falar com Isha.

    Espero que dê tudo certo…

    “Desculpe…” A voz quase como um sussurro da Saki chegou aos seus ouvidos. 

    “…”

    “Eu… não queria que você visse a situação da minha mãe… Me desculpa.”

    “Não se preocupe com isso. Todos temos motivos para esconder coisas.”

    “Não. Isso não está certo. Você me ajudou e eu menti descaradamente. Eu estava com vergonha de contar a você. Queria que você pensasse que as coisas estavam fluindo bem.”

    Ela hesitou em olhar para trás, então resignou-se a baixar a cabeça e diminuir a velocidade de seus passos, enquanto havia um semblante sombrio em seu rosto. 

    “Meus pais se divorciaram há muito tempo. Meu pai não era um bom homem e minha mãe sempre foi muito dependente dele. Até que ele se cansou de nós e nos deixou. Como resultado, minha mãe se perdeu em drogas e bebidas… quando o dinheiro acabou, ela…” 

    Um silêncio interrompeu suas palavras. Saki mordeu seu lábio inferior antes de dizer a próxima linha. 

    “…Ela começou a usar o próprio corpo para pagar tudo e qualquer coisa.”

    Ouvindo quieto, Mayck não conseguia dizer uma única palavra. Ele nunca poderia prever que a garota que um dia o fez sofrer estava passando por tanto. 

    “Tudo isso aconteceu depois de nos conhecermos… eu fui uma péssima pessoa com você, não fui? Talvez eu esteja pagando por tudo o que eu fiz a você… e a ela também.” 

    Suas mãos apertaram o cabo do guarda-chuva. As nuvens se abriram, a lua brilhou sobre os dois e sobre as poças d’água criadas pela chuva. 

    Saki seguiu em frente. 

    “Eu fiquei irritada com tudo, então fiz de alvo uma garota da minha escola, para tentar lidar com tudo isso, eu a atormentei. Eu fui tão terrível, que ela decidiu acabar com a própria vida.”

    “Você fez…?”

    “…Uhum… O pai da menina enlouqueceu e foi atrás de mim. O que aconteceu logo depois foi o gatilho para minha mãe se quebrar de vez. Você entendeu o que eu quis dizer, não foi?”

    Mayck assentiu com a cabeça. Segundo o que Saki havia falado sobre sua mãe, era mais do que óbvio o que aconteceu naquela noite terrível. 

    Saki adquiriu traumas e arrependimentos a decadência de sua vida, que só tendia a piorar. Seus amigos se afastaram, todos a rejeitaram. A única luz da vida de Saki se apagou. 

    “Eu estava perdida. Tive que me virar. Cuidar da casa, cuidar de mim mesmo, mas eu só consegui me erguer depois que te reencontrei e começamos a namorar.” Ela sorriu, seu rosto avermelhado. “De verdade, quando você me falou para ficar com você, foi o dia mais feliz da minha vida.”

    Saki tinha um carinho genuíno pelo garoto, que parecia ser sua nova chama de esperança. Inocente, ela acreditou que as coisas poderiam mudar. 

    “Mas a idiota aqui teve que estragar tudo de novo e eu acabei te desapontando. Me desculpa, de verdade.” Seus olhos começaram a lacrimejar e sua voz estremeceu.

    Não, Saki. Na verdade, isso foi culpa minha. Eu planejei fazer isso com você por conta de uma raiva idiota. Sou eu quem deve desculpas aqui. 

    Mayck tinha, em seu coração, o peso de suas ações anteriores. Para realizar um objetivo, ele precisava se tornar o mau, e nem sempre se importava com os danos que outros sofreriam. 

    Suas ações conscientes e indiferentes haviam machucado muita gente. 

    “Eu não queria que as coisas ficassem assim. Eu sou realmente uma inconsequente, egoísta e arrogante.”

    Tudo o que Saki passou e que ela acreditava ser uma punição por seus atos. Depois de trair Mayck com Rito — algo a que ela foi forçada —, a garota pensou estar tudo perdido. Por isso, se deixou sofrer e planejava sofrer muito mais. 

    A garota estava prestes a desistir de tudo. Até mesmo a morte pareceu muito leve para ela. 

    Entretanto, falar com Mayck de novo despertou algo dentro dela. 

    “Eu… eu pensei que teria uma nova chance, embora não estivesse totalmente confiante…”

    Foi um tempo antes disso que ela descobriu sua ID. Quando estava sendo importunada por uma garota de sua turma, as palavras “saia de perto de mim” se mostraram mais poderosas do que ela imaginava. 

    “Haha… eu pensei que estava amaldiçoada.”

    Mayck a ensinar sobre seus poderes se mostrou um alívio imenso. Ela poderia até mesmo descansar em paz. 

    Afinal de contas, ela não conseguiria viver sabendo que poderia destruir todos a sua volta com suas palavras. 

    “Eu não vou te culpar se você me disser para ficar longe. Eu sou uma mentirosa nojenta, afinal. Eu realmente não mereço estar viva, né—?”

    “Tá tudo bem.”

    Saki foi interrompida de repente pelas palavras do garoto. Foi a primeira vez que ela levantou a cabeça desde que saíram. Ela olhou o garoto perplexa. 

    “Huh?”

    “Foi doloroso, não foi? Ter que aguentar tudo isso sem ter ninguém pra contar. Ter que se segurar porque tem medo de machucar alguém que pode ser importante pra você.”

    Mayck se aproximou dela. 

    “Você fez um bom trabalho até aqui, Saki. Você lembra? Disse que iria lutar para proteger sua mãe. Não perca esse objetivo de vista.”

    Os olhos da garota brilharam. As lágrimas contidas começaram a vazar como uma cachoeira e ela não conseguiu conter sua voz. Então a levantou e chorou. 

    “Doeu demais. Eu pensei que não tinha mais salvação. Eu queria ter morrido há muito tempo, queria nem ter existido. Por que minha presença só faz mal às pessoas? Por que eu tenho que fazer tanta burrice e sofrer no final? Eu não entendo.”

    Então era isso que ela precisava. Apenas um gatilho para suas emoções explodirem de vez. Sua vida cheia de dúvidas e medo a pressionavam a ponto de ela acorrentar a si mesma. 

    Ela havia se perdido no breu de seu coração, à sombra de seus erros e culpa. 

    “Ninguém entende, Saki. Não tem problema errar. É assim que crescemos. O fato de você não ter desistido até agora é louvável. Eu não vou me afastar de você por isso. Fica tranquila.”

    Mayck podia se ver na garota. A dor que ela carregava era parecida com a dele. 

    Viver escondendo tudo de todos, enquanto se é obrigado a suportar a dor, é difícil. É sufocante. Porque quando você decide fazer algo a respeito eles apontam o dedo na sua cara e te dizem que você não tem direito. Eu entendo isso. 

    O mundo era cruel, e sempre seria desse jeito. As pessoas se recusavam a se compreender, visando alimentar um ego que, se destruído, as derrubaria completamente. Elas estavam firmes em seus julgamentos impiedosos; se não fosse com elas, estavam contra elas.

    Os sofredores estavam fadados a viver em suas próprias correntes de culpa e desespero, um lugar monótono, sombrio e insano. 

    Mayck tocou a cabeça de Saki e sorriu. 

    “Você foi ótima até aqui. Continue em frente, okay?”

    <—Da·Si—>

    Era cerca de três horas da manhã. 

    Haruna saiu da cama subitamente após um pesadelo. Ela estava ofegante, seu corpo completamente suado. 

    Apenas um sonho…?

    Se aquelas mãos infernais a tivessem levado, realmente seria traumatizante. 

    Ela olhou pela janela. A chuva não havia passado, se havia, retornou com mais força. 

    “Preciso ir ao banheiro.”

    Rapidamente ela o fez. Enquanto saciava suas necessidades, ouviu um som na cozinha e pensou que talvez sua mãe tivesse se levantado também. 

    Ela saiu, sua primeira ação depois disso foi verificar a cozinha. Afinal, a luz estava desligada e ela teve a impressão de que havia sido acesa minutos atrás. 

    Ela também ouviu alguns estalos. 

    Que estranho. Minha mãe sempre acende a luz quando se levanta nesses horários…

    Olhou para todos o cômodo e não viu ninguém. 

    Ela pensou estar imaginando coisas. Dando de ombros, ela se virou, decidida a voltar ao quarto. 

    No entanto, assim que pisou no primeiro degrau, seu corpo parou, como se paralisada repentinamente ou agarrada por alguma coisa. O topo da escada parecia distante e algo sobre sua casa não parecia estar correto. 

    Haruna olhou para trás. Nada. Apenas o som ininterrupto da chuva lá fora. 

    Mas assim que se virou novamente, não havia nada também.

    Devo estar imaginando coisas. 

    O ar parecia seco demais, mas talvez fosse só impressão mesmo. Então, ela subiu as escadas. 

    Crack! Crack!

    Esses sons não eram dos seus pés. Ela não estava pisando em uma escada de madeira, mas, sim, sobre ossos?

    No primeiro momento, ela pensou estar alucinando, já que acabara de acordar. No entanto, algo se pôs entre o silêncio da casa, do ranger da escada e do som da chuva: sussurros incoerentes, que nem ao menos eram palavras, mas Haruna estava entendendo, por algum motivo, o seu significado. 

    A voz estranha, reverberando como uma edição de áudio ecoou, cheia de distorções. 

    “Você não pode escapar de novo. Eu posso ver você.”

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