O calor da água trouxe um alívio imediato para os músculos tensos de ambas. A prisioneira ainda parecia hesitante, mas à medida que Elara ajudava a lavar seus cabelos, ela começou a relaxar um pouco.

    — Você tem um nome? — Elara perguntou suavemente, enquanto ensaboava os fios escuros da mulher.

    Ela hesitou por um momento, como se estivesse tentando lembrar.

    — Delilah… — sua voz era baixa, mas firme.

    Elara sorriu levemente.

    — É um nome bonito, Delilah.

    A prisioneira não respondeu, mas seu olhar suavizou um pouco.

    Elara continuou lavando os cabelos dela com cuidado, evitando as áreas machucadas.

    — Você se lembra de onde veio?

    Delilah fechou os olhos, respirando fundo.

    — Eu era sacerdotisa em um Templo das Cinco Deusas. (Veritara, a Deusa do Julgamento. Seraphina, a Deusa de Paz, da misericórdia e da Compaixão. Solarea, a Deusa do Dia e aquela que guia na vida. Selenea, a Deusa da Noite e aquela que guia os mortos até se julgamento. Aegis, a Deusa Protetora.)

    Elara parou por um instante, surpresa. Aquelas palavras carregavam peso, o templo das cinco Deusas era uma instituição sagrada, um dos pilares espirituais mais respeitados do mundo.

    — Uma sacerdotisa? — Elara repetiu, retomando o cuidado com os cabelos — Então você era uma das zeladoras do bem?

    Delilah assentiu lentamente, mantendo os olhos fixos na água.

    — Eu servia às Deusas… Cantava suas preces, cuidava dos doentes e acolhia os desamparados… — Sua voz fraquejou por um momento — …até o dia em que eles vieram. Queimaram o templo com as pessoas ainda lá dentro, arrastaram as irmãs para para fora e desapareceram… eu sobrevivi, mas às vezes… queria não ter.

    O silêncio que se seguiu foi pesado, quebrado apenas pelo som da água se agitando suavemente.

    — Eu sinto muito, Delilah — disse Elara, com sinceridade — Ninguém deveria passar por algo assim.

    Delilah respirou fundo, os olhos marejando, mas sem derramar lágrimas.

    — Eu não sei mais se consigo ouvir as deusas… o silêncio é tudo que resta.

    Elara apertou de leve a mão dela.

    — Talvez elas ainda falem com você… mas bem baixinho. Vai levar tempo para ouvir de novo.

    Delilah permaneceu em silêncio por alguns instantes, encarando a água turva ao redor de seus joelhos. Seus dedos afundaram na superfície, como se buscassem respostas no calor efêmero.

    — Por quê? — ela murmurou, quase para si mesma. — Por que os humanos… a minha própria raça… fazem isso?

    Elara virou o rosto na direção dela, surpresa pelo desabafo repentino.

    — Tantas vezes nos disseram que somos os filhos escolhidos da criação, que fomos abençoados com raciocínio, alma, compaixão… — Delilah balançou a cabeça, os olhos cheios de uma dor contida — …mas parece que somos os mais cruéis. Por que tanto ódio por quem acredita em algo diferente? Por que buscam a extinção das outras raças só por elas serem diferentes?

    Ela olhou para Elara, e havia uma amargura cravada em sua expressão cansada.

    — Eu vi irmãos de sangue queimando bibliotecas sagradas… soldados rindo enquanto arrastavam mulheres implorando misericórdia… homens e mulheres com olhos vazios, como se fazer aquilo fosse… comum. Como se fosse certo.

    Elara ficou em silêncio por alguns segundos, absorvendo as palavras.

    — O medo é um veneno — ela disse enfim, com suavidade. — E pessoas com medo fazem coisas horríveis. Às vezes é o medo do que não entendem. Às vezes é o medo do que pode ser maior do que elas mesmas.

    Delilah suspirou, encostando a testa na borda da banheira.

    — Mas e o amor? A bondade? A empatia? Por que tudo isso é esquecido tão facilmente?

    Elara não respondeu de imediato. Em vez disso, passou os dedos delicadamente por uma mecha limpa do cabelo da mulher, que agora é possível ver claramente sua cor dourada.

    — Porque essas coisas… exigem esforço. Coragem. E muitos preferem seguir ordens do que ouvir o próprio coração.

    O vapor da banheira subia em redemoinhos silenciosos. Por um momento, ambas ficaram quietas, unidas pela dor compartilhada de um mundo quebrado demais para entender seus próprios pecados.

    Delilah fechou os olhos, como se tentasse ouvir alguma prece distante.

    — Talvez… talvez um dia elas voltem a falar comigo.

    — Elas nunca te deixaram — disse Elara, firmemente — Só estão esperando que você volte a ouvi-las.

    Delilah não respondeu, mas pela primeira vez, seu semblante suavizou, mesmo que por um instante.

    — Você fala como alguém que já passou por isso… — murmurou Delilah, sem abrir os olhos.

    Elara hesitou, a mão ainda repousando sobre o ombro da mulher.

    — Talvez tenha passado — ela respondeu, com um tom mais contido — Já estive no fundo de um poço escuro… onde achei que ninguém me ouviria, nem mesmo os deuses. Mas às vezes, quando tudo está quieto demais… é quando eles mais falam.

    Delilah abriu os olhos, virando a cabeça devagar para encará-la.

    — E você… conseguiu ouvir?

    Elara sorriu, triste.

    — Um sussurro. Pequeno, quase imperceptível. Mas foi o bastante pra eu não desistir.

    Delilah observou a espuma dissolver-se na água. Sua respiração estava mais calma agora, menos tensa, mas havia um vazio profundo ainda aninhado atrás de seus olhos.

    — É difícil acreditar que ainda exista luz… depois de ver tanta escuridão.

    — Mas ela existe — disse Elara com convicção — Você está viva. Está aqui. E isso já é um milagre. Eles queriam te silenciar, Delilah… mas você ainda tem voz. E talvez… ainda tenha um propósito.

    Delilah desviou o olhar, mas seus olhos estavam úmidos.

    — Você acredita mesmo nisso?

    — Acredito em você — disse Elara, com um sorriso pequeno, mas sincero — E sei que as deusas não escolhem à toa quem sobrevive ao inferno.

    Elas ficaram ali por mais um tempo, em silêncio novamente, mas agora o silêncio era diferente. Era um silêncio mais leve. Como se, por um instante, a dor não fosse tão insuportável.

    Do lado de fora, Ivar ouvia apenas os murmúrios abafados das vozes e o ocasional respingar da água. Ele permanecia sentado, braços cruzados, protegendo a porta como uma sentinela silenciosa, mesmo que seu semblante parecesse distante, pensativo.

    Quando a água começou a esfriar e os corpos finalmente se sentiam mais leves, Elara se inclinou levemente para o lado, observando Delilah com um olhar gentil.

    — Pronta pra sair?

    Delilah assentiu, os cabelos agora soltos e limpos, caindo como fios de ouro derretido sobre os ombros. Eram loiros de um tom quase etéreo, como se carregassem fragmentos de luz em cada mecha.

    Sua pele, ainda marcada por hematomas e cicatrizes, parecia mais viva, como se o banho tivesse levado consigo não apenas a sujeira, mas parte do peso que esmagava sua alma.

    Elara se levantou primeiro, envolvendo-se em uma toalha espessa. Estendeu outra para Delilah, que a aceitou com um pouco mais de firmeza desta vez. Vestiram-se em silêncio.

    A túnica limpa que Delilah recebeu era simples, mas o tecido macio e claro se harmonizava com sua aura serena, quase angelical.

    Elara amarrou o cinto ao redor da cintura, ajeitando a bainha da roupa antes de se virar.

    — Vamos?

    Delilah respirou fundo, os olhos pousando por um momento na porta fechada. Então assentiu.

    — Sim.

    Elara abriu a porta com cuidado. Do lado de fora, Ivar se ergueu da cadeira, os olhos recaindo sobre Delilah.

    Ele congelou por um breve segundo, não esperava aquilo.

    A mulher diante dele parecia uma visão antiga das lendas, com os cabelos dourados reluzindo sob a luz tênue do corredor e a expressão serena, apesar de cansada.

    Nada lembrava a figura trêmula e suja que haviam arrastado das sombras.

    — Bem melhor — disse ele, com a voz mais baixa do que pretendia, os olhos encontrando os de Elara por um instante.

    Delilah desviou o olhar, tímida, mas seus lábios se moveram num murmúrio contido:

    — Obrigada… a vocês dois.

    Elara sorriu, tocando o braço dela com carinho.

    — Um passo de cada vez, certo?

    Ivar fez um gesto com a cabeça, indicando o corredor à frente.

    — Elara irá te levar para nosso quarto. Lá você pode descansar… e amanhã decidir o que deseja fazer depois.

    Delilah assentiu, os ombros ainda um pouco retraídos, mas havia uma centelha diferente em seu olhar agora. Algo que resistia.

    — E Elara, eu passarei a noite aqui fora vigiando.

    Elara faz uma cara de negação.

    — Não mesmo, Ivar. Você precisa descansar, tem que dormir!

    Ivar da um leve sorriso enquanto abaixa a cabeça.

    — Não se preocupe, eu estou bem, só preciso de um banho quente. E também não acho que ela irá se sentir muito confortável comigo no mesmo quarto. Está tudo bem.

    Ele se dirige às escadas, para pegar mais água quente pro seu banho.

    Elara observou Ivar desaparecer escada abaixo, os passos dele ecoando suavemente pela pousada silenciosa.

    Ela suspirou, balançando a cabeça, mas sem insistir. Conhecia aquele olhar. Ivar não mudaria de ideia tão facilmente.

    — Ele sempre foi assim? — Delilah perguntou baixinho, caminhando ao lado de Elara pelo corredor.

    — Sempre. Um teimoso gentil — respondeu Elara com um sorriso pequeno. — E mais protetor do que admite.

    Delilah ficou em silêncio por alguns segundos, os dedos tocando o tecido da túnica como se buscasse alguma segurança ali.

    — Vocês dois… são próximos?

    Elara olhou de relance para ela, arqueando levemente uma sobrancelha e ficando corada

    — S-sim, somos companheiros de estrada há algum tempo — disse com nervosismo e vergonha — Já salvamos a vida um do outro muitas vezes. Isso cria laços.

    Pararam diante de uma porta simples, de madeira escura e entalhes discretos nas bordas. Elara empurrou-a com cuidado, revelando um quarto modesto, mas limpo e acolhedor.

    Uma cama com lençóis limpos, uma pequena mesa com uma vela acesa, e uma janela semiaberta que deixava o ar fresco da noite entrar, carregando o cheiro de terra molhada.

    — Aqui será seu quarto por esta noite — disse Elara, abrindo espaço para Delilah entrar.

    Delilah olhou ao redor com um certo receio, como se ainda esperasse que tudo aquilo fosse uma ilusão prestes a se quebrar.

    Mas quando deu o primeiro passo e sentiu o chão firme sob os pés, algo dentro dela pareceu se aquietar.

    — Faz tanto tempo… desde que estive em um lugar assim — murmurou. — Silencioso. Seguro.

    Elara fechou a porta suavemente atrás delas e acendeu mais uma vela, deixando a luz dourada preencher os cantos escuros.

    — Você está segura agora. Nenhum caçador vai atravessar essa porta.

    Delilah sentou-se na beirada da cama, os cabelos dourados caindo em cascata sobre os ombros. Ela passou os dedos por eles, pensativa.

    — Quando fui capturada… eu achei que morreria com o nome das deusas nos lábios. Que ninguém me encontraria. Que não haveria mais dias assim…

    — Mas houve… — Elara interrompeu, suavemente — Houve este dia. E haverá outros. O passado não desaparece, Delilah. Mas ele também não é tudo que existe.

    Delilah a olhou, os olhos agora cheios de algo entre gratidão e temor.

    — Você acredita… que as deusas ainda me veem?

    — Eu acredito que elas nunca deixaram de ver. E que talvez, só talvez… elas tenham nos enviado para garantir isso.

    O silêncio que se seguiu foi diferente, não mais pesado, mas cheio de possibilidades não ditas.

    Elara se levantou e foi apagar as velas.

    — Agora vamos descansar. Eu estarei aqui ao seu lado, se precisar de qualquer coisa.

    Delilah assentiu lentamente, e pela primeira vez, sorriu. Um sorriso pequeno, ferido… mas real.

    — Boa noite, Elara.

    — Boa noite, Delilah.

    Elara voltou para para cama depois de apagar as velas, deixando apenas a suave luz de uma vela no criado-mudo.

    E lá embaixo, no salão já quase vazio, Ivar enchia o balde de água quente, os pensamentos distantes, e o olhar, mais sombrio do que deixava transparecer.

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