Capítulo 22: Cicatrizes Sussurrantes
Enquanto o vapor se erguia da banheira que ele preparava para si, Ivar permaneceu em silêncio, observando o reflexo distorcido na superfície da água.
Seu rosto parecia mais velho sob a luz tênue da lamparina próxima. As sombras em seus olhos não vinham apenas da falta de sono… mas das memórias, da culpa, das promessas que ainda não havia cumprido.
Ele tirou a camisa, revelando as cicatrizes espalhadas pelo torso, algumas recentes, outras antigas demais para lembrar a origem.
Mergulhou uma das mãos na água quente, testando a temperatura. Estava bom. Quente o suficiente para aliviar o corpo… mas não a mente.
Ao mergulhar lentamente, soltou um suspiro contido. O calor envolveu seus músculos tensos, puxando dele uma sensação que quase beirava o alívio.
Mas a paz era ilusória. Seus pensamentos voltavam a Delilah… à forma como ela olhava para o chão, como se tivesse medo de encarar o mundo. À forma como Elara a olhava, com uma ternura que Ivar há muito acreditava extinta nesse mundo.
Ele passou as mãos pelo rosto, depois pelos longos cabelos brancos e encharcados.
Era só uma jovem… uma entre tantos. E ainda assim, algo nela o afetava mais do que deveria.
— Você está se envolvendo demais, Ivar… — disse a si mesmo, num murmúrio abafado.
Mas talvez não fosse exatamente isso.
Talvez… fosse o fato de ver nela um eco do que ele mesmo já fora no passado. Um sobrevivente. Um náufrago em meio ao mar da guerra e da perda.
— Siga o plano, imbecil, e descubra o que Kaygon planeja fazer.
Terminando o banho, se secou, vestiu roupas limpas, era uma túnica escura e confortável, que Elara havia deixado separada, depois esvaziou a banheira e seguiu para fora.
Ao sair, passou pelo quarto de Nyara, que ficava bem ao lado da despensa e continuou andando, seus passos eram silenciosos, quase como os de uma sombra.
Parou em frente ao quarto em que Elara e Delilah dormiam, parando por um breve instante diante da porta fechada.
Não ousou bater.
Não ousou escutar.
Voltou até a cadeira que ficava ao lado da porta da despensa, sentou e iniciou sua vigia.
A madeira rangeu suavemente sob o peso de Ivar quando ele se acomodou. A cadeira era simples, mas firme, posicionada de propósito para que ele pudesse ver tanto o fim do corredor quanto a escada que levava ao andar de baixo.
Um velho hábito, sempre de costas para a parede, sempre de frente para o perigo.
Do lado de fora, a noite continuava sua lenta marcha. A chuva fina que caíra mais cedo agora era apenas umidade no ar, e o silêncio da madrugada envolvia a estalagem como um véu.
Mesmo assim, Ivar não relaxava. Seus olhos, embora cansados, permaneciam atentos. Seu corpo, mesmo após o banho, ainda carregava a rigidez da constante prontidão.
Por um tempo, apenas o leve estalar da madeira antiga e o sutil som do vento atravessando as frestas preenchiam o ambiente.
Mas então, algo mudou.
Não foi um som… não exatamente.
Foi uma presença.
Ivar se endireitou, os dedos pousando instintivamente sobre o cabo da espada encostada à parede. Seu olhar deslizou pelo corredor em silêncio absoluto, atento ao menor sinal.
E então ele sentiu… uma leve pressão no ar, como se algo invisível o observasse. Não era ameaça direta, não ainda. Era quase… familiar.
Fechou os olhos por um instante, tentando captar melhor. E foi aí que elas falaram, não com palavras audíveis, mas com aquelas vozes que só ele ouvia… vinda de dentro, ou talvez de longe demais para qualquer outro ouvir.
— Assassino… Assassino… — vozes infantis surgem — Assassino… Assassino…
A palavra ecoou dentro da mente de Ivar como uma faca arranhando pedra. As vozes infantis repetiam o sussurro em uníssono, etéreas, sibilantes… e distorcidas, como se rissem entre uma sílaba e outra.
— Assassino… assassino… assassino…
Ivar manteve-se imóvel, os olhos abertos agora, fixos na penumbra adiante. As palavras não vinham do corredor, nem da escada… vinham de um lugar mais fundo. De dentro. Do abismo que ele carregava junto ao nome que lhe deram… Darklurker.
Fechou os olhos por um momento. Respirou fundo.
— Não agora… não aqui…
Mas as vozes não cessavam. Em vez disso, tornaram-se mais nítidas, mais íntimas. E com elas… vieram as imagens.
Fragmentos… lembranças…
— Você nos matou… Porquê? Assassino… Assassino… — as vozes continuaram, cada vez mais e mais altas, mas agora as crianças eram visíveis.
Pequenas figuras tomaram forma diante de seus olhos. Não eram reais… ele sabia disso. Sabia. Mas isso não tornava a visão menos perturbadora.
Eram quatro.
Quatro crianças humanas, com vestes religiosas, cobertas de fuligem e sangue seco. Os olhos vazios, negros como o céu sem estrelas. Suas peles pálidas pareciam brilhar sob a tênue luz que vazava da lamparina distante.
— Não… eu não queria isso… foi um acidente… — Ivar responde com lamento.
— Nós éramos inocentes… Assassino… Assassino… Assassino…
— Eu sinto muito… eu não esperava encontrar vocês lá…
— Você é o culpado, Darklurker… Demônio… e nós iremos te atormentar pela eternidade… Hahahahahahahahaha…
E então, tudo ficou silencioso novamente, como se nada daquilo tivesse acontecido.
Ivar permaneceu imóvel por longos segundos, os punhos cerrados sobre os joelhos, os olhos lacrimejando e fixos no vazio. O silêncio que se seguiu era mais sufocante do que os sussurros… mais cruel do que a visão das crianças.
Ele conhecia aquele tipo de silêncio.
Era o mesmo que vinha após as batalhas… quando os gritos cessavam e só restava o som do próprio coração, batendo lento e pesado, como o som de um sino fúnebre ao longe.
Seus ombros caíram, e ele fechou os olhos por um instante. Respirou fundo, como se pudesse expulsar as vozes com o ar dos pulmões.
Mas elas continuavam ali, em algum lugar dentro de si, como cicatrizes que não se veem… mas doem sempre que o passado respira mais alto.
A madeira rangeu levemente de novo quando ele se recostou na cadeira, os músculos tensos demais para permitir qualquer descanso real. Levou a mão ao peito… que queimava nos momentos em que os mortos vinham lhe cobrar.
— Eu carrego todos vocês … — murmurou cabisbaixo — E carrego sozinho…
Dos quartos ao lado, nenhum som. A noite, do lado de fora, seguia indiferente, como se o mundo pudesse continuar ignorando o peso que ele carregava.
Mas Ivar sabia.
A cada passo que dava, a cada vida que salvava ou tirava… o preço aumentava. E a sombra atrás dele ficava mais densa.
Ele olhou mais uma vez para a espada encostada na parede, a espada que recebeu quando virou um oficial dos Guardiões da Noite. Mas não olhou como uma arma, mas sim como uma lembrança. Um lembrete de quem ele se tornou… e de quem nunca mais poderia ser.
Se ajeitou na cadeira… e esperou.
O amanhecer ainda estava distante…
E com ele, viria um novo peso…
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