O céu começava a clarear, tingido de tons pálidos de azul e dourado. A névoa que cobria as ruas da cidade aos poucos se dissipava, revelando os contornos da aurora.

    Do lado de fora da estalagem, os primeiros sons da vida urbana despontavam, passos apressados, rodas de carroça sobre o cascalho molhado, vozes distantes de mercadores preparando suas barracas.

    Lá dentro, a luz do amanhecer atravessava as frestas da janela, banhando o corredor com um brilho suave e frio.

    Ivar permaneceu sentado até os primeiros raios tocarem seus pés. Só então se levantou, estalando o pescoço e os ombros. O cansaço permanecia, mas era hora de se mover.

    Aproximou-se da porta do quarto onde Elara e Delilah estavam. Bateu suavemente, três toques firmes.

    — Estão acordadas? — perguntou, a voz baixa, mas clara.

    Do outro lado, ouviu um leve movimento, depois passos suaves. A porta se abriu um pouco e Elara apareceu, os cabelos carmesins soltos e os olhos ainda marcados pelo sono, e vestindo uma grande e larga camisa. Atrás dela, Delilah sentada na beira da cama e enrolada na coberta, mexendo no cabelo.

    — Estamos sim… — disse Elara, abrindo mais a porta. — Ela acordou há pouco.

    — Essa camisa é minha? — perguntou Ivar como se não soubesse — Está linda.

    — É-é sim… eu não consegui achar a minha, então peguei uma sua — Ela fica corada, com um sorriso fofo no rosto.

    Ivar lançou um olhar breve e atento para a garota.

    — E então, Delilah? Dormiu bem?

    Delilah hesitou. Seus olhos ainda evitavam os dele, mas balançou a cabeça levemente em sinal positivo.

    — Sim… um pouco… — respondeu com a voz baixa.

    — Ela acordou no meio da noite, parecia inquieta… — explicou Elara — Mas depois voltou a dormir.

    — Isso já é um começo.

    Após alguns segundos, ele recuou um passo.

    — Vou descer. Encontro vocês lá embaixo.

    Elara assentiu e fechou a porta com suavidade.

    Ivar desceu as escadas devagar, os passos pesados fazendo ranger os degraus antigos.

    O salão ainda estava quase vazio, exceto por algumas pessoas que acabaram desmaiando de tanto beber e Balrik, que secava canecas atrás do balcão.

    — Dormiu com os olhos abertos, Ivar? — brincou o anão, sem nem precisar olhar.

    Ivar esboçou um sorriso cansado.

    — Algo assim. Preciso de uma informação, Balrik. Onde fica o mercado da cidade?

    Balrik ergueu uma sobrancelha.

    — Vai fazer compras agora? De estômago vazio?

    — Preciso de mantimentos e outras coisas. Não posso deixar pra depois.

    — Hmph. Muito bem. O mercado principal fica a oeste da cidade, mais precisamente ao norte da taverna. Siga a rua de pedra até ver uma estátua grande de um leão. Depois vire à esquerda. Não tem erro! — Deu um último brilho numa caneca e a colocou no lugar — Só cuidado com os preços. Os mercadores adoram cobrar mais caro de quem parece ser forasteiro.

    Ivar assentiu em agradecimento.

    Pouco depois, Elara desceu,  vestida com roupas comuns.
    — Bom dia, Balrik!

    — Bom dia, senhora Elara. Como foi sua noite?

    — Dormi muito bem! Você tem a melhor estalagem do reino.

    — Fico contente em ouvir isso. Se precisar de alguma coisa, é só me chamar.

    — Obrigada. E na verdade eu preciso. Vou querer um prato de café da manhã, por favor.

    — Claro! E te darei mais um, por conta da casa.

    — Você é muito gentil, senhor Balrik. Obrigada!

    — Vou ao mercado… — disse Ivar logo depois — Vou comprar algumas coisas antes de partirmos. Elara, é melhor que fique aqui com a Delilah.

    Elara franziu levemente as sobrancelhas.

    — Vai sozinho?

    — Vai ser mais rápido assim. Além disso… a Nyara precisa saber de tudo que aconteceu, explique tudo quando ela acordar.

    Elara respirou fundo e assentiu, relutante.

    — Certo…

    Ivar vai em direção a saída, mas antes que ele passasse pela porta, Elara o chama:

    — Ivar, tome cuidado… — Ela o puxa suavemente pela camisa e lhe dá um beijo.

    Ivar retribui o beijo, que dura algum segundos.

    — Eu irei. Nos vemos mais tarde.

    Do lado de fora, o ar da manhã estava fresco e úmido. Ivar puxou o capuz da capa sobre os cabelos brancos, conjurou ilusão para se disfarçar e seguiu pela rua de pedra, os passos firmes o guiavam através da cidade que despertava.

    O som dos sinos ao longe marcava a chegada de um novo dia. As ruas estavam calmas, mas não por muito tempo. Com o avançar das horas, a cidade começava a pulsar com vida.

    Crianças corriam entre becos estreitos, cães latiam e homens e mulheres puxavam carroças abarrotadas com mercadorias.

    Ivar caminhava entre eles como uma sombra esquecida, seu disfarce simples, um elfo comum, de aparência mediana, com roupas modestas e um semblante apagado que o tornava invisível aos olhos da multidão.

    Atravessou uma ponte estreita de pedra, onde o rio corria com leveza, refletindo o brilho dourado da manhã.

    Depois de alguns minutos andando, a estátua do leão surgiu imponente à frente, suas garras cravadas em um escudo e o olhar voltado para o horizonte, como se guardasse a entrada do coração comercial da cidade.

    Ivar virou à esquerda como Balrik havia indicado. E então o viu.

    O mercado.

    Barracas coloridas se alinhavam em fileiras irregulares, o ar impregnado com o aroma de pão fresco, carne, frutas, legumes  e especiarias exóticas. Vozes se misturavam em um coral caótico, vendedores anunciando seus produtos, clientes pechinchando, risos e discussões ao fundo.

    Ele respirou fundo, absorvendo o ambiente.

    Mas não estava ali apenas para comprar. Precisava observar e ficar atento a qualquer coisa suspeita.

    A cidade podia parecer pacífica, mas ele sabia que sob o verniz da normalidade, sempre havia olhos atentos… e bocas dispostas a falar… ou trair, pelo preço certo.

    Passou primeiro por uma tenda de tecidos e roupas, comprando uma camisa, uma calça, uma par de botas e um manto para Delilah, de um azul escuro e tecido macio. Ela não podia ficar sem ter o que vestir.

    Depois pegou algumas frutas e legumes, pão, carne, algumas poções e ingredientes para poções futuras e dois frascos de óleo para lamparinas.

    Por fim, passou por um armeiro e comprou um cajado com uma pedra amarela mágica na ponta e uma adaga simples, com a lâmina bem equilibrada. Não para ele. Para ela.

    A lembrança do que viu na noite anterior ainda ardia dentro dele.

    Quando finalizou suas compras, parou à sombra de uma marquise, observando o movimento por alguns minutos.

    Seu olhar varria o mercado em silêncio, atento a qualquer sinal de algo fora do comum. Mas por ora, tudo parecia… normal.

    Demorou ainda alguns instantes, certificando-se de que não estava sendo seguido.

    Então, sem pressa, virou-se de volta em direção à taverna.

    Ivar caminhava pelas ruas de volta à estalagem, o sol mais alto agora aquecendo a pedra sob seus pés. O mercado ficava para trás, engolido pelo burburinho da cidade, enquanto ele seguia com os olhos atentos, apesar da aparência comum que seu disfarce mantinha.

    O movimento nas ruas aumentava, e a multidão dificultava a passagem. Mercadores, soldados, andarilhos e crianças que corriam com pães nas mãos e sorrisos no rosto.

    Foi ao dobrar uma esquina, um pouco antes de chegar ao centro da cidade, que ele os viu.

    Dois homens encapuzados se destacavam do restante da multidão. As capas cinzentas os cobriam quase por completo, mas debaixo dos capuzes, os cabelos vermelhos vibravam como brasas.

    Um detalhe que não passou despercebido por Ivar. Eles estavam parados na lateral da rua, como se observassem cada pessoa que passava, e quando seus olhos cruzaram os de Ivar, um deles se adiantou.

    — Ei, você aí! — disse o primeiro, com a voz rouca, mas controlada.

    Ivar parou, mantendo a expressão neutra, como faria qualquer viajante cauteloso abordado por estranhos.

    — Em que posso ajudar?

    O segundo homem tirou um pequeno pergaminho do manto. Era um retrato, feito à mão, com traços finos e bem delineados. Ele abriu o papel e mostrou a imagem.

    Era Elara.

    O cabelo carmesim, os olhos serenos, a expressão determinada… era inegavelmente ela. Um retrato fiel o suficiente para causar problemas.

    — Estamos procurando essa mulher. Você a viu? — perguntou o primeiro, os olhos afiados examinando cada centímetro do rosto de Ivar, como se pudessem captar qualquer mentira que ele ousasse contar.

    Por um segundo, apenas um, Ivar permitiu que seu olhar repousasse no retrato com curiosidade controlada. Depois, ergueu uma sobrancelha e respondeu:

    — Sim… vi alguém parecida há alguns dias. Não dá pra esquecer alguém assim. — Ele soltou uma risada contida, como se estivesse lembrando da cena — Muito bonita. Incomum. Tinha aquele ar de… misteriosa.

    Os dois encapuzados se entreolharam com interesse.

    Ivar continuou:

    — Vi ela seguindo pela estrada norte. Ouvi ela dizer que estava indo pra Thirel. Se não me engano, mencionou querer encontrar um criminoso… não sei ao certo.

    O segundo homem franziu levemente a testa.

    — Estava sozinha?

    Ivar assentiu com convicção.

    — Sim. Vi ela partindo sozinha. Com pouco mais que uma mochila e uma capa de cor verde e detalhes em dourado. Parecia determinada, mas… também cansada. Como alguém que tá fugindo de alguma coisa, se me permite dizer.

    Os dois se entreolharam novamente, dessa vez com mais urgência. O primeiro enrolou o retrato e o guardou de volta sob o manto.

    — Obrigado pela informação — disse com a voz seca, entregando duas moedas de ouro a Ivar.

    — Não foi nada — respondeu Ivar com um sorriso leve, já se afastando — Boa sorte na caçada.

    Os dois homens ficaram parados por mais alguns segundos, vigiando os arredores. Ivar não olhou para trás enquanto retomava seu caminho, mas seus sentidos estavam em alerta total.

    Seu disfarce permanecia, mas agora sabia de uma coisa:

    Alguém estava atrás de Elara.

    E não estavam tão longe quanto esperavam.

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