O céu já havia passado do tom dourado do início da manhã. Agora, uma camada suave de nuvens cinzentas filtrava a luz do sol, deixando o mundo num estado de calmaria fria e difusa.

    A cidade respirava com uma tranquilidade quase enganosa, como se estivesse no limiar entre o repouso e o caos.

    Uma brisa leve e úmida soprava pelas ruas de pedra, carregando o aroma de pão fresco, fumaça de lareiras e o cheiro distante da terra ainda molhada pela chuva da noite anterior.

    Ao longe, a silhueta da taverna Porto Seguro surgiu entre os telhados e estandartes esvoaçantes.

    Seu letreiro de madeira entalhada balançava suavemente com o vento, exibindo a imagem de uma âncora cravada em pedras, rodeada por ondas.

    A estrutura, de madeira escura e tijolos antigos, era acolhedora, com janelas abertas que deixavam escapar o aroma de cozido quente e especiarias.

    Ivar caminhava com passos firmes, as botas ecoando suavemente nas pedras molhadas que formavam a rua.

    Ele desfez o disfarce atravessou a entrada da taverna sem pressa, empurrando a porta com a mão livre.
    Lá dentro, o calor o recebeu de imediato, junto ao som distante de risadas e talheres batendo em cerâmica.

    A luz era suave, alimentada por lamparinas penduradas e a grande lareira ao fundo. Balrik estava atrás do balcão, limpando um barril pequeno com um pano encardido, como sempre. Ao notar Ivar entrando, apenas assentiu com a cabeça.

    Ivar retribuiu o gesto e seguiu direto para as escadas, sem dizer uma palavra. Subiu com passos calmos Ivar, mas antes de ir até Elara e Delilah, parou diante de uma porta ao fim do corredor. Bateu duas vezes.

    — Nyara? — chamou baixo.

    A porta se abriu devagar e revelou a jovem gata, de expressão ainda sonolenta e os cabelos bagunçados.

    — Hm? O que foi, rabugento? Aconteceu algo?

    — Vamos até o quarto da Elara, comprei algumas coisas para nós e precisamos conversar.

    Nyara vstiu uma túnica mais firme e seguiu Ivar pelo corredor. Caminharam juntos até o quarto em que Elara e Delilah estavam. Bateu suavemente antes de empurrar a porta e entrar.

    Elara estava de pé junto à janela, observando a cidade. Delilah permanecia sentada na beira da cama, com os olhos calmos.

    — Trouxe algumas coisas — disse Ivar, depositando os itens sobre a cama. — rações para a viagem, algumas roupas e poções… e isto — ele ergueu o cajado com a pedra mágica e a adaga simples, colocando-os delicadamente diante de Delilah.

    Ela o olhou, surpresa.

    — Para mim?

    Ivar apenas assentiu.

    — Você precisa estar preparada.

    Delilah pegou o cajado firmemente, mas a adaga com cuidado, como se nunca tivesse segurado uma arma na vida.

    Elara se aproximou, os olhos examinando o rosto dele.
    — Aconteceu algo?

    — Sim, dois homens. Cabelos vermelhos. Encapuzados… Me pararam na rua.

    Os olhos de Elara se estreitaram imediatamente.
    — O que disseram?

    — Estavam procurando por você. Me mostraram um retratos seu. É idêntico demais. E estão próximos.

    Elara encarou o chão em silêncio, os lábios se contraindo. Delilah a observava, curiosa e preocupada.

    —  Quem são esses homens, Elara? — perguntou Nyara.

    — Eu menti pra eles — continuou Ivar — Disse que você seguiu para Thirel. Sozinha. Disfarçada. Com sorte, ganhamos alguns dias ou meses.

    Um silêncio tenso caiu sobre o quarto. Elara permaneceu imóvel por longos segundos, o rosto indecifrável. Mas então, caminhou até a cama e se sentou, o peso do mundo nos ombros.

    — Eles não vão parar — disse, por fim — São da guarda real.

    Nyara ergueu uma sobrancelha, surpresa.
    — Guarda real? De onde?

    Ivar a olhou fixamente, mas sem falar.

    Ela levantou o olhar lentamente. Seus olhos carmesins brilharam sob a luz da vela.
    — Eu não sou só uma caçadora de recompensas… nem apenas uma Aasimar comum. Eu sou Elara Valarys, filha de Seraphon II, o Rei Sangue-Luz. Herdeira da coroa da nação acima das nuvens… Valarys Tharamar.

    Nyara prendeu a respiração. Delilah levou uma das mãos à boca, boquiaberta.

    Ivar permaneceu em silêncio, mas seus olhos apertaram um pouco.

    — Valarys Tharamar… — ele repetiu, o nome soando como algo arrancado de lendas antigas.

    — Um reino flutuante, oculto nas alturas. Fundado pelo primeiro vampiro e Aasimar vampiro que existiu, tocado pelo próprio Deus Sangrenocth , um ser que uniu sangue divino e maldição em uma linhagem única… a nossa. — Elara se levantou e abriu suas asas, ao máximo — Apenas Aasimars Carmesins da nobreza possuem asas desta cor. Apenas os de sangue puro.

    — Embora todas essas coisas, Aasimars Carmesins e um reino flutuante acima das nuvens fossem somente lendas e histórias antigas, eu já desconfiava que tudo era real a partir do momento em que te vi naquele beco. — disse Ivar, com um olhar sério, mas compassivo.

    Ela ficou em silêncio por alguns segundos, olhando para. Chão, depois andou até a janela, seus cabelos também de cor carmesins, tremulando com a brisa que entrava pela fresta.

    — Desde o meu nascimento fui criada para ser rainha. Para me unir a um outro nobre, um casamento arranjado, uma aliança entre castas. Mas eu não aceitei. Eu fugi. Deixei tudo para trás. Meu pai… minha mãe… minha irmã… meu trono.

    — E agora eles querem você de volta — completou Ivar, em tom grave.

    — Não. Eles não querem apenas me encontrar… querem me controlar. Me prender. Me moldar no que desejam. Eu não posso deixar que isso aconteça.

    Nyara parecia digerir cada palavra como se estivesse lendo um livro proibido.

    — Então é por isso… você se esconde. Sempre tive a impressão de que você estava fugindo de algo.

    — Sim — respondeu Elara. — E eles estão cada vez mais perto de me encontrar.

    O silêncio que se seguiu foi pesado.

    Delilah olhava para Elara como se ela fosse uma criatura de outro mundo.

    — O passado… sempre da um jeito de voltar. E agora está batendo à porta. — murmurou Elara.

    Ivar cruzou os braços.
    — Eu não posso deixar que isso atrapalhe minha missão, Elara, e você sabe disso. Não importa o quanto nós nos escondemos, um dia irão te encontrar.

    Ivar conhecia a perda, sabia exatamente o que é perder tudo. Ele não queria perder Elara, mas o amor pela sua filha era maior que tudo, e ele não deixaria nada o atrapalhar em sua busca.

    — Eu entendo, mas não quero voltar pra lá, Ivar. Não sem nada mudar. Eu não quero que isso se torne um problema para você, eu estarei contigo e te ajudarei a recuperar sua filha. E caso meu povo me encontre, não permitirei que eles interfiram no seu objetivo, eu te prometo.

    — Então… nós ficamos juntos, Elara… até o fim — ele respondeu — E que os malditos Deuses tenham misericórdia de quem tentar nos impedir, porque eu não terei.

    A tarde chegava, e com ele… o peso da escolha.

    Nuvens cinzentas começavam a se fechar sobre o céu, como dedos lentamente se entrelaçando para envolver o mundo numa sombra suave, mas firme.

    Lá fora, a cidade seguia seu curso, alheia ao destino que se costurava dentro daquele quarto. Uma brisa mais fria atravessou a fresta da janela e balançou as cortinas, como se os ventos soubessem que algo estava para mudar.

    Ivar olhou para todos ali. Elara, com seus olhos carmesins resolutos e a postura de quem finalmente havia deixado cair o peso; Nyara, silenciosa, mas com o olhar afiado, como se já calculasse rotas de fuga e possíveis emboscadas; Delilah, ainda confusa, assustada, mas forte, com os dedos apertando o cabo da adaga como quem sabe que, cedo ou tarde, terá que usá-la.

    — Precisamos planejar a próxima etapa — disse Ivar, enfim. — Hoje à noite, quero sair da cidade.

    — Já? — questionou Nyara. — Não seria mais prudente esperar até o amanhecer?

    — Não… — Ivar balançou a cabeça, firme. — Se os guardas reais de Valarys já conseguiram chegar até aqui, cada segundo conta. Ainda que acreditem na minha mentira, vão se dividir, vão espalhar informantes. Ficaremos cercados mais rápido do que imaginamos.
    Elara assentiu com gravidade.

    — Concordo. A essa altura, cada olhar pode ser um traidor. Vamos sair sob a escuridão.

    Nyara cruzou os braços e suspirou.
    — Então temos que preparar tudo. Eu vou verificar os cavalos e a carroça no estábulo e ver se consigo suprimentos extras e informações com Balrik. — Ela olhou para Delilah e depois para Elara — E talvez seja hora de decidir um nome falso, princesa. Se vamos te esconder… que seja direito.

    — Pode me chamar apenas de “Rys”. Foi o nome que usei quando saí de Valarys. — Elara deu um pequeno sorriso, quase triste.

    — Combina contigo — respondeu Nyara, já saindo do quarto. — Vejo vocês no salão em breve.

    Assim que a porta se fechou, Delilah se aproximou devagar de Elara.
    — Você era uma princesa… e mesmo assim preferiu viver nas ruas?

    Elara se achegou perto dela e a olhou nos olhos.
    — A liberdade tem um preço, Delilah. E eu aceitei pagá-lo. Quando você vivê-la, talvez entenda que existem prisões muito piores do que grades de ferro. Às vezes… o que te prende é o sangue nas suas veias.

    Delilah a abraçou, apertado.

    Ivar observou em silêncio, algo apertando dentro dele.
    Ele virou-se e foi até a janela, o olhar perdido no horizonte onde as nuvens pesadas já começavam a prenunciar chuva.

    Seus pensamentos vagaram até sua filha… o rosto, a risada, a esperança de vê-la viva outra vez.
    Tudo aquilo, todas aquelas pessoas, estavam começando a se entrelaçar em sua jornada.

    Mas ele sabia… cada vínculo, cada laço, era mais uma fraqueza que poderia prejudicar seu objetivo.

    — Elara… — disse sem se virar — Quando tudo isso acabar, se tiver que escolher entre mim e o seu trono… o que vai fazer?

    Ela não respondeu de imediato.
    Mas depois de alguns segundos, sua voz veio firme, sem hesitação.
    — Eu já fiz essa escolha, Ivar. Estou aqui.

    Ele fechou os olhos, permitindo-se um instante de fé. A tarde caía. E com ela… as engrenagens do destino voltavam a girar.

    Mais uma noite viria. Mais uma chance de sobreviver.

    E, no horizonte, algo ou alguém, também se movia, lentamente, em direção a eles.

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